Ensaios escrita por DiasLuiza


Capítulo 2
Bossa


Notas iniciais do capítulo

[Prólogo de uma história rascunho intitulada Bossa, que se passa entre os anos 1950 e 1960]



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Prólogo

O mundo estava ensolarado apesar de a lua estar alta no céu. Era sempre assim no Rio de Janeiro.

A brisa marítima soprava levemente, retirando o calor do dia. O clima era saudosista, íntimo, carioca. Vera conversava enquanto eu olhava para a porta do bar, ansiosa para que João, Rita e Benjamin chegassem. O lugar estava ficando cheio, as mesas quase todas ocupadas. O ar começava a ficar translúcido com a fumaça dos cigarros e os tim-tins dos copos e vivas das comemorações eram ouvidos por vezes debaixo das risadas e da música. O cantor dedilhava alguma música da bossa. O violão chorava em uníssono com o cantor. Um choro corrido por dedos negros que dedilhavam o violão com maestria. A voz do cantor saía como um sussurro.

Todo o mundo conhecia a bossa nova.

Olhei ao redor. Havia olhares em minhas costas, além de pessoas cantando baixinho e casais na pista. Vera continuava a falar sobre sua rotina com as crianças da patroa. Eu estava muito ansiosa para a chegada do restante do pessoal para prestar atenção em tudo o que ela dizia. Captei o mais interessante ─ um dos pequenos estava doente; Vera flertou com o carteiro algumas vezes; havia uma viagem programada para o interior.

─ E como é esse tal de Benjamin, Bia? ─ Vera apoiou o braço direito nas costas da cadeira, em uma pose esguia e desleixada.

─ Maravilhoso. Acho que vocês vão gostar dele... ─ estiquei a cabeça para ver entre as cabeças os recém-chegados ─ Chegaram!

Sorrimos ao ver João e Rita se aproximarem. Eles estavam com as mãos dadas, radiantes. Rita, com um vestido rodado e as faces rosadas, nos cumprimentou e se sentou enquanto João ia pegar algumas cervejas.

─ Como vocês estão, garotas? ─ Rita sorriu ─ Onde está seu amigo, Bia?

Mais uma vez, ao olhar para a entrada, não o avistei.

─ Deve estar chegando.

Vera entrelaçou a mão com a de Rita e apertou.

─ Quanto tempo não vemos vocês. Como estão?

Os olhos de Rita brilharam quando ela os levantou em direção ao teto e suspirou.

─ Ótimos. João fica até à noite na construção da casa, ele sempre vai depois do expediente.

João voltou, pousando duas garrafas e quatro copos na mesa.

─ Querido, você esqueceu um copo para o amigo da Bia.

Antes que João respondesse, levantei prontamente abanando as mãos:

─ Tudo bem. Eu pego mais um com a Neném.

Entre corpos balançando no ritmo do violão, passei pela pista tentando não esbarrar em ninguém. Havia uma tristeza velada naquela boemia. A bossa nostálgica exaltava o Rio enquanto todos faziam brindes ao humor carioca. E bebiam. Bebiam. Bebiam. E, ao final de cada garrafa, dançavam. No próximo dia, viria a ressaca. Do mar, de preferência. A maioria daquelas pessoas estaria de volta na próxima noite para mais uma rodada, para encontrar os mesmos amigos, para ouvir, cantar e dançar as mesmas músicas. E exaltar o Rio.

O balcão já estava cheio e a todo momento as garçonetes de Neném pousavam garrafas na pedra. O vidro estalava, as gotas percorriam o pescoço da garrafa lentamente, como se acompanhassem o ritmo da música. Pousei os cotovelos no balcão assim que um espaço se abriu e me inclinei para frente para que pudesse chamar uma das meninas. Mesmo que todas estivessem muito ocupadas, uma delas me notou. Olhos negros, boca carnuda e um sorriso admirável. Para mim.

─ Por favor, pode me dar mais um copo?

Ela tocou na ponta dos meus dedos ao entregar o copo.

─ Obrigada...

Virei lentamente na ponta dos calcanhares e me deparei com uma mão estendida. Um rapaz me chamava para dançar, suas pernas bambaleavam um pouco, como se estivesse bêbado. Ao virar a cabeça para trás, percebi que a garçonete já havia saído, foi atender outras pessoas. Aceitei o convite, hesitante, encaixando minha mão na palma dele. Áspera, muito diferente da de Rodrigo.

Agora, instrumentos de sopro acompanhavam o violão. Sussurrantes. Ainda estava com o copo na mão e tentei guiar o rapaz para a outra ponta do salão, onde meus amigos estavam. Não foi difícil guiá-lo, ele já não estava sóbrio e não conseguia acompanhar direito o ritmo. Passos lentos, sacolejos, que definitivamente não combinavam com a cerveja em excesso.

Vera estendeu a mão para que eu entregasse o copo a ela assim que me aproximei da mesa deles. Ela murmurou algo sobre eu não saber negar pedidos. Notei que Benjamin ainda não havia chegado, ainda que eu o procurasse incessantemente ao redor do salão.

Uma música se passou e decidi não mais fazer com que o rapaz cruzasse o salão comigo. Deixei que ele me guiasse ─ ainda que muito mal ─ e paramos em frente ao cantor. A batida diminuiu o ritmo e, apesar de o rapaz ter se aproximado perigosamente, eu me afastei um pouco, tentando não deixar que ele me forçasse a deitar em seu peito. Virei o rosto para que não sentisse seu hálito perguntando qual era meu nome.

O cantor me olhava fixamente, a testa um pouco enrugada de preocupação. Sorri sem mostrar os dentes, uma mensagem clara para que ele não se preocupasse. Não havia nada de errado. O rapaz tropeçou nas próprias pernas e o segurei para que não caísse. Podia sentir meu rosto ficando vermelho, as lágrimas à beira dos olhos. Mas respirei. Uma. Duas vezes. O dançarino bêbado repetiu mais uma vez a pergunta que eu não conseguia responder sem me sentir irritada. O cantor afastou o microfone da boca com um movimento de uma mão, e voltou a tocar o violão enquanto murmurou para mim:

─ A senhorita quer ajuda?

Uma mulher ao lado dele me observava. Não sabia distinguir sua feição translúcida: compaixão ou antipatia.

─ Não. ─ saiu um fio de voz e, quase despercebida, soltei as mãos do rapaz com quem dançava e caminhei em direção à varanda.

*

A diferença de temperatura no interior do bar e da varanda era tremenda. Ali, a lua pintava o mar em tons de prateado e o odor salgado me tranquilizava. A música, ao fundo, agora me acalmava. Segurei firme a balaustrada, pendendo o corpo para trás e deixando que o cabelo caísse por minhas costas. Sentia o vento carioca entrando e saindo das minhas narinas. Aquela beleza natural do Rio me acalmava mais uma vez e aquele mar prateado iluminava a noite.

Um forte cheiro de cigarro tomou o lugar do cheiro do sal. O vento soprava para o meu lado e, à minha esquerda, uma mulher me espiava de relance. Mais uma tragada. Mais uma baforada. Um arrepio trespassou pelo meu corpo como um choque elétrico.

Aqueles olhos negros refletiam o brilho lunar. As luzes amarelas refletiam em seus cachos. Fui atraída pelo contraste. Aproximei-me.

─ Oi...

Parecia um ronronar, a voz preguiçosa como a bossa.

─ O-oi. - minha voz tremulou e abracei o corpo ao sentir uma brisa repentina perpassando pelo meu corpo.

Ela apagou o cigarro o pressionando na mureta de pedra. Repousou-o e olhou para mim, debruçando-se em uma pose felina.

─ Como você se chama?

─ Beatriz.

Apoiei-me na mureta também, com a mão apoiada no queixo e os olhos fixos no negrume dos olhos dela.

─ E você?

Ela sorriu. Era um sorriso provocante.

─ Elisa.

─ Prazer, Elisa.

─ Prazer, Beatriz.

O movimento de um casal na sombra me fez perceber novamente o som da música. A música continuava, as luzes ainda tremulavam sob a névoa, o rapaz bêbado ainda estava lá, meus amigos me esperavam. O mundo não havia parado, como parecia. Mas eu, sim. Eu estava hipnotizada.

─ Está procurando alguém?

─ Fugindo.

Rimos baixinho para não atrapalhar a tranquilidade da paisagem. A risada dela era sonora, vinda do fundo da garganta, sincera.

─ Ele? - perguntou Elisa enquanto puxava outro cigarro da carteira.

Ofereceu um a mim.

─ Ele. E não fumo, obrigada.

Antes de riscar o fósforo, trocou de ideia e guardou o cigarro. Da ponta dos lábios para a carteira. Voltou a se debruçar, o quadril meio de lado. Corpo largo, sinuoso, cabelo longo igualmente negro. Os olhos se fixavam no horizonte.

Segurei a mureta com firmeza, contendo um suspiro com a boca cerrada. Mordi o lábio inferior em seguida, não contendo as seguintes palavras:

─ Há elas também. Desde que não beijem mal.

Um sorriso de canto. Igualmente provocador.

─ Eu não beijo mal.

*

Não havia ninguém na nossa mesa. Apenas o casaquinho de Vera e algumas garrafas demarcavam o local. Rondei os olhos rapidamente pelo bar, mas já estava tão cheio que seria difícil encontrá-los. A pista era o lugar mais disputado depois do balcão e, pelo que parecia, mais pessoas aguardavam na porta para entrar. Não sei se a música era o único atrativo; também havia o preço da cerveja.

─ Seus amigos deveriam estar aqui?

Elisa perguntou ao pé do meu ouvido.

─ Sim... mas ele já devem voltar. Senta com a gente.

Ela havia soltado minha mão assim que saímos da varanda, mas tornei a segurá-la quando sentei ao seu lado. Um solo de saxofone fez com que eu gritasse um pouco para ela:

─ Um amigo meu ainda não chegou, eu acho. Ele é bem alto e usa muito gel...

Ela brincava com meus dedos e olhava para a pista tentando reconhecer alguém que tivesse as características que descrevi.

─ Parece que todo mundo nessa cidade é alto e usa muito gel.

Ri.

─ Você não parece ser daqui. Tem o sotaque diferente.

─ Meus pais são baianos, mas morei em São Paulo até vir pro Rio há um mês e meio.

Não pude responder, porque senti braços envolvendo meus ombros e, em seguida, a bochecha de Benjamin tocou a minha. O cheiro que senti e a garrafa em sua mão denunciavam que ele já estava bêbado.

─ Bia! Pensei que nunca ia te encontrar!

Ele puxou a cadeira de um jeito meio desastrado e se sentou ao meu lado. Cumprimentou Elisa com um meneio de cabeça e levantou as sobrancelhas para mim, um pouco intrigado para saber quem era, enquanto tomava um gole de cerveja.

─ Benja, essa é a Elisa. Acabei de conhecer ela. Elisa, esse é o...

─ Seu amigo alto que usa muito gel.

Benjamin riu.

─ Essa é uma das minhas famas.

─ Vera, João e Rita estão dançando.

─ E você já dançou?

─ Não tive uma experiência muito boa mais cedo.

Ele encostou a garrafa no meu ombro. Já tinha esquentado um pouco com o calor de sua mão. Ele tinha uma expressão divertida, um pouco presunçosa.

─ Você poderia me conceder o prazer de dançar com você. ─ e um pouco mais baixo em seguida: ─ Apenas dançar, porque parece que está muito ocupada com outra pessoa.

Benjamin riu ao ler meus olhos e tomou o último gole da garrafa, repousando-a na mesa com um baque vazio. Minha face parece ter ficado um pouco vermelha, porque quando Vera chegou ─ acompanhada de um desconhecido ─, perguntou se eu estava bem. Apresentei Benjamin e Elisa. Já não segurava a sua mão. Não voltei a segurá-la naquela noite.

─ Esse é o Rafael. E desculpa por não ter ficado na mesa, ele me chamou pra dançar...

Rafael era branco, alto e tinha olhos muito claros. O típico tipo por quem Vera se apaixonava. Ele fez questão de cumprimentar a todos que estavam na mesa. Ao menos era educado e encantador. E Vera só tinha olhos para ele.

─ Tudo bem, Vera. Esse aqui é o Benjamin e essa é a Elisa.

Rita e João apareceram, com os lábios muito vermelhos. Vera e eu refizemos as apresentações. Sentamos todos à mesa e pedimos mais algumas cervejas. Regados pela cevada e pela bossa, rimos, contamos causos e nos conhecemos melhor. Durante toda a noite, quis aproximar minha mão de Elisa. Ela ficou ao meu lado a noite inteira, assim como Benjamin, que, já não sóbrio, me abraçava a todo instante.

A noite terminou tarde. Um tom amarelado começava a pintar o céu quando Vera e eu descemos o morro, segurando um Benjamin excessivamente bêbado, com cada um de seus braços ao redor de nossos ombros. Virei a cabeça para trás apenas para ver Elisa, caminhando para o lado oposto, baforando uma fumaça que se misturava ao ar de boemia da manhã.


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Notas finais do capítulo

Agradeço a quem leu até aqui!



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