Ensaios escrita por DiasLuiza


Capítulo 1
Aurora


Notas iniciais do capítulo

[Pequena narrativa; não faz parte de algo maior]



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Lascas de gesso caíam formando um tapete branco aos seus pés. Conforme moldava, o pescoço da figura afinava e a clavícula se evidenciava. Parecia que ela a olhava, com olhos tenros, macios, embora o gesso fosse frio. Os seus movimentos, no entanto, eram enérgicos com o trabalho do martelo e do cinzel.

Parou, jogando o cabelo para trás e recuando para ver o seu trabalho, se faltava algum ajuste no manto que ela vestia, no trigo que carregava, no busto ou nos cabelos. Ainda a via com ternura, como sua criação, tal como as outras figuras que se prostravam em frente ao cenário branco do galpão. Pareciam camufladas, sobressaindo-se como se estivessem saindo da parede.

Ainda entrava uma réstia de luz nas altas janelas quando retirava com um pano úmido o pó branco de suas pernas e mãos. O branco contrastava com sua pele. O laranja do pôr do sol coloria as esculturas do lado oposto conforme as atingia, colorindo-as de cima para baixo gradualmente, mas aquela na qual ela trabalhava estava sendo consumida pela escuridão.

A escultura, no entanto, continuava com o aspecto carinhoso na qual ela havia moldado. Ela calçou os sapatos e se aproximou do seu trabalho – não, chamar de trabalho seria uma relação muito distante. Obra-prima, tampouco. Chamavam de obra-prima obras que tinham valor simbólico para a humanidade e, apesar disso, sua escultura tinha um valor para ela. Simbólico?

Não parecia seu melhor trabalho. Com certeza a clientela não consideraria visto que acabara de entregar os leões de bronze para uma famosa família aristocrática. Um par de leões imponentes, sentados sobre as patas, que levaram meses para serem finalizados e a deixaram com calos nas mãos. Pareciam verdadeiros, se fossem vistos de certa distância.

Analisou suas mãos. Aquele trabalho, comparado ao outro, fora prazeroso. Feito com tanto amor quanto poderia transmitir a uma escultura. Ela, contudo, sentia pesar por ter que entregá-la dali alguns dias para enfeitar o jardim de uma família qualquer.

O que a fazia tão diferente das outras esculturas, então? Aproximou-se ainda mais, deslizando os dedos pelo seu ombro, sentindo o material áspero ainda por lixar. Os cabelos cacheados caíam por seus ombros em um coque mal arrumado. A leveza a encantava. A leveza que fora capaz de criar. Ela segurava um manto, que ondulava, na altura de seu quadril. O quadril estava um pouco levantado, como se andasse rebolando. Os pés afastados davam a impressão de que estava andando. Ela tinha um corpo protuberante, forte, com traços másculos nos braços. Tudo nela era leveza e movimento. Então, o que a atraía?

Aquela era a mulher que ela queria.

Aproximou-se de seus lábios. Finos em comparação aos seus. A pouca luz pouco a permitia ver com clareza, mas a sentia. Ainda fria. Ainda imóvel. Ainda irreal. Ainda sua.

Com um suspiro vindo de olhos fechados, afastou-se, guardando os materiais e atravessando a alça da mochila sobre o corpo. Deslizou a porta do galpão, esforçando-se por conta do peso, até que ela fechasse com um barulho abafado. Não gostava de imaginar suas obras trancadas durante a noite, mas as trancou com uma grande chave de prata para que os animais da noite não as estragassem.

O exterior estava frio, o vento, cortante. Puxou as mangas da camiseta para baixo e cruzou os braços. Subiu a rua com a noite a engolindo, enquanto os postes antigos e ornamentados eram acessos gradativamente.

*

A aurora tingia o céu com róseos-dedos e aquela cor doce penetrava as janelas do galpão. Um pouco mais tarde, quando as ruas estavam ensolaradas e uma brisa leve fazia com que a copa das árvores farfalhasse, a artista abriu o galpão...

... mas não viu sua escultura no lugar em que deveria estar.

O susto inicial fez com que sua visão se anuviasse e demorou para que suas vistas se ajustassem ao que estava à sua frente. Apoiou-se à porta do galpão que não havia terminado de abrir com uma das mãos e, com a outra, esfregou os olhos.

Organizando seus materiais, na mesa central da oficina, estava uma mulher branca ─ não tão branca quanto gesso ─, a toga dourada pendendo apenas em um dos seus ombros, enquanto o outro estava descoberto. Ela não parou o trabalho ao avistar sua criadora, apenas a espiou de canto de olho e deu um pequeno sorriso.

─ Você voltou – ela disse – É muito chato ficar sozinha aqui.

Virou-se para fechar a porta do galpão, não a deixando aberta como de costume. Talvez aquilo chamasse atenção de algumas pessoas, mas não sabia reagir de outra forma.

─ O que...

─ Tive muito trabalho esta noite. Será que todos os artistas são desorganizados como você?

Havia um pouco de riso em sua voz. Seu cabelo desarrumado caía irresistivelmente em seus ombros. Os olhos, muito claros, estavam ocupados com os materiais de trabalho. Os braços eram bonitos, fortes, e as mãos um tanto quanto delicadas, trabalhando firmemente, colocando cada ferramenta em seu devido lugar. Observando-a boquiaberta, fechou seus lábios quando ela se sentou calmamente no banquinho ao lado da mesa, cruzando as pernas e colocando as mãos sobre o joelho.

─ Como você...?

─ Não faça perguntas complexas, amor. Você não me queria aqui? Eu não sou a materialização do seu desejo?

Sim. Com certeza. Era absurdo, sim, mas não era decepcionante. Sentia-se tão sozinha que seria bom ter companhia. Uma companhia que desejou ardentemente. Uma companhia que fizera para ser sua e agora se materializou. Ouvi-la a chamando de “amor” fez com que os pelos de sua nuca se arrepiassem. Sua voz tinha um som melodioso, como cantos de primavera. Era gostoso ouvi-la falando assim, um pouco manhosa. Ela sabia o efeito que suas palavras provocavam com o tom certo. Não era mais uma estátua, era uma mulher. Sua mulher.

Aproximou-se. Um passo de cada vez. Hesitante não por estar com medo, mas por não saber exatamente o que fazer. Sempre estava tão ocupada com seu trabalho que nunca imaginou estar naquela situação com uma mulher de verdade. Não poderia tratá-la como estátua novamente, já que não era mais uma. Como se comportar na frente de uma mulher de verdade?

Seus olhos eram ainda mais claros de perto. Os lábios, rosados. E o nariz, fino, um pouco arrebitado. Não podia acreditar que fizera algo tão bonito. Assim, real, parecia o seu melhor trabalho.

Ela pegou em sua mão. Os dedos um pouco frios e ásperos. O contato a fez estremecer. E a mão dela subiu para seu braço, traçando o caminho com as unhas até a envolver pela cintura e se aproximar, beijando-a levemente no canto dos lábios para em seguida beijá-la na boca. Fechou os olhos automaticamente. Não estavam mais frios os lábios de ambas. E apenas o coração de uma batia forte. Tão forte que aquilo era tudo o que ressoava dentro de si, confusa e nervosamente. E no seu estômago pareciam revoar borboletas, como contam nas histórias para mocinhas apaixonadas. E ela estava apaixonada. E estava feliz.

E quando ela abriu os olhos, para sua surpresa, a estátua estava novamente ali. Dessa vez, com um sorrisinho irresistível no canto dos lábios.


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Notas finais do capítulo

Obrigada a quem leu até aqui!



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