Sete-Estrelo escrita por sabrinavilanova, Nathymaki


Capítulo 1
Capítulo Um- God Save The Queen




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[Epígrafe]

"Certa vez, ouvi um poema sobre lançar a linha. 

Ele dizia que, quando o pescador lança a linha, 

é como se jogasse seus problemas para a correnteza

levá-los embora. Por isso, continuo jogando."

(Em Algum Lugar Nas Estrelas - Clare Vanderpool)

 

[Capítulo Um - God Save the Queen]

“Nunca se pode confiar nas águas tempestuosas dos mares ao norte”, aquela voz ainda estava em sua mente, como uma sombra das poucas memórias que tinha daquele momento. Foi a primeira e última vez que vira seu tio, o homem mais corajoso que um dia conheceu. O murmúrio dolorido ainda tamborilava em sua cabeça, junto com os roncos no chão de madeira daquele navio. No princípio, ele não havia acreditado, mesmo que tais palavras emanassem uma convicção advinda de muita experiência, mas horas já haviam se passado e o mundo parecia resumido ao balançar interminável e ao vai-e-vem das ondas contra o casco daquela embarcação, o que fazia com que seu estômago acompanhasse o ritmo e a cabeça rodasse com as ondas de náuseas que o acometiam. 

Os dedos frios e incômodos da mulher ao seu lado ainda estavam parados no emaranhado de fios vermelhos de seu cabelo. Enquanto o menino de olhos miúdos e corpo franzino a abraçava, como se não pudesse soltá-la, como se necessitasse daquele agarre para sobreviver. E, do lado de fora dos vidros circulares e embaçados, a tempestade rugia, sem dar sinais de estar sequer perto de acabar. O garoto ainda podia ouvir aquele ruído abafado pelo som das ondas, os pés dos marinheiros sobre o chão inseguro daquela embarcação e o som desesperado que saía da boca da mulher que o segurava era apenas mais uma notificação de que as coisas não iam bem. 

Mama, eu estou com medo ― ele sussurrou, sentindo o tremor do corpo aumentar com o sair da sua voz. 

Shhh, não há o que temer, mi pequeño. ― Os braços apertaram ao redor dele quando um trovão estrondou lá fora e a boca do menino se fechou, assim como as pálpebras, apertadas uma na outra. ― Você ainda lembra da história que eu te contava para dormir quando pequeno? ― O garotinho assentiu, ainda sem abrir os olhos ou afrouxar o aperto em volta dela. ― E o que ela dizia? ― incentivou-o.

― Um pirata corajoso nunca abaixa a cabeça para algo tão pequeno como um trovão numa tempestade. Ele sobe aos céus e o enfrenta. ― A voz pausou por alguns instantes, incerta. ― Mas eu não sou alto o suficiente para alcançar o céu. E o mar… é assustador! Sinto como se as ondas fossem me engolir e os monstros fossem me  puxar para as profundezas. 

A mãe riu docemente e o puxou mais para si. Ali, no conforto seguro que eram seus braços, com o cheiro que tanto amava, ele sentiu o medo abrandar e o corpo começou a relaxar.

― Não tema o mar, mi amor, ele nunca leva aquilo que não pretende devolver.

E, como a maioria das coisas que marcam nossas vidas, essas palavras o acompanhariam pelo resto da sua. 

⚙⚙⚙

 

Reprimendas realmente não eram de seu agrado. Mas o que poderia dizer quando não deixavam um sabor bom na boca de qualquer um que as levasse? No caso de Shouto, ele as odiava. Odiava as marcas deixadas em seu corpo, odiava o ardor de cada pancada, de cada ferida. Odiava o fogo que tomava seu peito, como um incentivo para que revidasse. Mas não podia, sabia que não podia. 

Suas costas reclamavam, doloridas pelo castigo do dia anterior. Era verdade que o chão não se fazia um bom lugar para dormir nem mesmo para os pobres coitados que não tinham um pouco de liberdade que fosse. Seu colchão havia sido retirado de sua cama minutos antes de chegar ao quarto, uma cortesia de seu tão querido pai. 

De algum modo, Endeavor conseguia transformar aqueles momentos em verdadeiras sessões de horror, dominando o ambiente e a obediência da tripulação, não por lealdade, e sim por um medo irracional incutido por meio daquela prática. Sempre servindo de exemplo aos demais que apenas baixavam os olhos com o aviso pairando sob suas cabeças: “Você pode ser o próximo.” E era ainda pior quando o exemplo era ele, seu próprio filho, apenas para mostrar que não haviam privilégios para ninguém na hora das punições. 

Mas o que podia dizer? A liberdade tinha um preço alto. Para aqueles que não a tinham, a carga era mais pesada do que parecia. E ardia como o fogo do inferno não poder fazer nada, não poder se mover nas piores horas. Ter de se manter impotente, indiferente à maneira como era tratado. Manter a cabeça erguida e a expressão impassível, reforçando a demonstração de que nada daquilo importava.

Mas o fazia. 

Mais do que qualquer coisa.

Ergueu o corpo ao sentir a leve mudança no movimento do navio, o mínimo suavizar das ondas lhe indicava que logo estariam atracando. Esticou os braços a frente, evitando encarar por muito tempo as feias marcas que os desfiguravam, e alongou o corpo conforme o costume criado há muito tempo. Era fundamental para um marinheiro que seu corpo estivesse em boa forma, do contrário não haveria sorte que os fizesse vencer as tempestades. Levantou-se de vez, agora apoiando a perna direita nos suportes de madeiras pregados às paredes e contou os segundos antes de repetir o mesmo procedimento com a outra perna. Abaixou o tronco até que as mãos se espalmassem no chão e cerrou os dentes ao sentir suas costas reclamarem. Ignorou. 

A mente voou à sua frente, separando-se dos exercícios de rotina os quais repetia com tanta frequência que poderia fazê-los até mesmo de olhos fechados e analisou o que aquela mudança poderia significar. Após tanto tempo no mar, ele estava ansioso por voltar a terra firme e ter a chance por menor que fosse de se livrar mais uma vez da voz odiosa de Enji gritando comandos em seu ouvido, como se Todoroki fosse seu escravo; bem como ter uma trégua nos castigos. Concluído o último exercício, atirou o casaco por cima das roupas leves que usava para dormir e apertou bem as botas antes de se considerar pronto para enfrentar mais um dia.

O barulho das chaves mexendo-se na fechadura causou um leve arrepio em seus braços, rezava para que não fosse ele a recepcionar sua descida. Então, suspirou, antes de virar-se para encontrar a pessoa parada no batente, tentando não pensar demais no que falaria. Na verdade, imaginava as palavras que ouviria com a típica rispidez com que o homem sempre se referia a si. Entretanto, nunca sentiu tanto alívio ao constatar que era Kamui ali, olhando-o com aquele ar debochado e sorriso travesso. 

Shouto semicerrou os olhos instintivamente, cauteloso em relação a forma como aquele homem se portava, era quase impossível de dizer quando algo que ele dizia era de fato sério ou não passava apenas de mais uma história fajuta. E aquele sorriso logo nas primeiras horas da manhã não poderia significar boa coisa. Suas esperanças de que aquele fosse um dia tranquilo sofreram um golpe imenso com a chegada daquele imbecil. Revirou os olhos sopesando se ignorava-o ou mantinha o mínimo de decência e o cumprimentava como mandava a etiqueta. Exceto que piratas não se importavam muito com etiqueta. A escolha foi retirada de suas mãos quando o homem decidiu ignorar seu mau-humor matinal e avançou, passando um braço por seus ombros como se fossem velhos e grandes amigos.

― Princípe! Que honra ver Vossa Alteza tão cedo! Você parece acabado. ― Ele falou, com seu bom-humor característico, mesmo que soubesse que não era hora para aquilo. ― Como estão suas costas? Espero não ter sido muito duro ontem à noite. 

Shouto murmurou uma resposta ininteligível, avançando pelo convés com a clara intenção se livrar dele. Coisa que, obviamente, o parasita agora grudado em seus ombros não fez. 

― Hey, não seja assim, Alteza. ― Riu. ― Logo estaremos em terra e você não terá de ver o Capitão por um longo tempo. Ao menos, o suficiente para descobrir o que o deixou tão irritado assim logo cedo.

Um xingamento inevidente passou por sua mente, enquanto tentava defeituosamente não dar atenção às palavras de seu companheiro. As feridas se repuxaram em sua pele, enviando uma onda de dor que atravessou o seu corpo. Tentando parecer displicente, lançou um olhar ao virar o pescoço como se analisasse o porto que se assomava a bombordo. De fato, Enji ostentava uma expressão ainda pior que a habitual, os lábios repuxados sobre os dentes e a barba desgrenhada, a postura rígida e os olhos gélidos que esquadrinhavam os demais tripulantes, não perdendo a oportunidade de reclamar com algum por qualquer mínimo deslize cometido.

De repente, sua ânsia para estar longe daquele navio aumentou exponencialmente, o estômago revirou como todas as vezes em que levantava e o via gritar alguma besteira para todos, como se fosse um maldito imperador ordenando que seus criados fizessem a mesma coisa quatrocentas vezes até estar de acordo com o seu gosto. O rapaz voltou o olhar para Kamui e o viu engolir em seco ao coçar a barba mal feita. Seu amigo sabia ― sabia muito bem ― o que aquele olhar sério em seu rosto simbolizava. Era hora de partir. 

Viu-o tatear a calça de tecido aparentemente confortável, em busca de algo não muito grande. Shinji, como era intimamente chamado, segurou sua mão com força, colocando algo entre seus dedos calejados. 

― O que é isso?

Shhhh, apenas abaixe a cabeça como se estivesse recebendo uma dura e me siga.

Empurrou-o com leveza até a parede de madeira ao lado, sempre conferindo se havia alguns olhares indesejados postos em si e constatando que todos pareciam com os nervos à flor da pele, focados em sua tentativa de escapar das vistas grossas do Capitão. Colocando uma mão sobre sua boca, levou o rosto até a altura do pescoço e sussurrou: 

― Vá para o bar Cobra na Bota e mostre esse papel a quem quer que esteja guardando a reunião, diga que fui eu quem o mandei. Quando entrar, um homem chamado Neito Monoma vai te ajudar. Ele vai te pôr numa sala com algumas pessoas e você vai fazer um tipo de prova. 

― Prova? ― perguntou em um murmúrio.

― Isso, você sabe daquele navio, como é que ele se chamava… Plus Ultra! O capitão maluco está recrutando pessoas, uma possível viagem louca, tanto que metade dos tripulantes foram embora. Coisa braba pelo que ouvi.

― E por que caralhos eu embarcaria numa viagem dessas? 

― Uma chance, não era isso que queria? Você me pediu uma chance, eu estou te dando. Quer sair daqui ou não? ― Ele concordou com a cabeça, silenciando a resposta ríspida que estava na garganta. ― Só me escute! Cale essa boca uma vez na vida, moleque.

Seus dedos se fecharam no papel e deslizaram-no sutilmente até um bolso interno. Quando ergueu os olhos de novo, a face séria do marinheiro o fitava com um olhar estranho, como se seus olhos não estivessem totalmente naquele lugar.

― O que foi?

― Nada ― hesitou, uma compulsão que não estava acostumado tomando-o, como se as palavras implorassem para sair, para serem ditas. ― Apenas estava pensando que minha dívida de tantos anos enfim está paga. ― E assentiu para si mesmo com um ar satisfeito.

― Então, essa é a razão para isso? Uma dívida não paga. A quem? 

Kamui riu e lhe deu alguns tapinhas nas costas como se houvesse acabado de contar a melhor piada do mundo. Pelo convés, os demais tripulantes agitavam-se em suas tarefas, descendo a âncora, jogando cordas e puxando o barco para mais perto do píer, os dedos trabalhando com velocidade de experiência nos complexos nós que os ligavam a terra firme.

A prancha foi estendida e todos ouviram a voz do Capitão trovejar:

Mais rápido, seus ratos imundos! Nós temos que atracar agora! O próximo que eu pegar vagabundeando vai passar uma semana trancado no porão sem água e ração.

Enquanto a balbúrdia se instaurava, Kamui se inclinou até o rosto estar bem próximo ao de Shouto e sussurrou a resposta para a pergunta que havia feito:

― Você conhece… Rei Todoroki? ― A palidez pintou o rosto do rapazote e os olhos se arregalaram tanto que ameaçavam cair das órbitas. 

― Rei? Aquela Rei? ― Shinji sorriu complacente e anuiu com a cabeça. 

― Mas por quê? Eu não entendo, por que depois de tudo isso ela… 

É o que ela quereria que eu fizesse, Shouto. Ela te amou até o último instante. Agora suma daqui, espero nunca mais te encontrar de novo, garoto.

Ele engoliu em seco e, antes mesmo que tentasse falar algo, Kamui se afastou, pisando duro no chão.

― Mas… ― O homem parou em sua caminhada, olhando para trás com um leve sorriso e uma expressão dolorida estampada a face. 

― Não é uma história para agora. Até a vista, ou não. ― E piscou, divertido.

E assim, deixou o rapaz ali, sem que tivesse respostas definitivas. Aquela era uma verdade de Shinji que Shouto nunca descobriria. Para ele, na vida, não existiam respostas certas, muito menos certezas. Cada um teria que encontrar suas verdades, suas perguntas. 

Todoroki mal sabia que as dele eram complicadas demais para serem respondidas.

 

⚙⚙⚙

 

Seus pés batiam apressados pelo chão a cada metro posto entre ele e o navio. O papel em seu bolso agora ardia, como um brilhante talismã de esperança o qual sussurrava em sua mente com uma voz doce e compreensiva. O coração batia agitado no peito a cada amarra que se soltava, libertando-o um pouco mais na necessidade de permanecer naquele antro de maldade e covardia e impulsionando-o rumo ao desconhecido. Rumo à vida.

A loucura amarga da fuga batia dentro do tórax coberto, como se Todoroki estivesse desbravando as tortuosas e profundas águas do oceano. E o estômago revirava com a ansiedade cortante, os ventos lhe sussurravam sobre o maior dos prazeres, a maior das riquezas da vida: A Liberdade. O coração ribombava dentro de si e o rapaz já não podia negar que aquilo era tudo que sempre quisera, que sempre ruminara em seu âmago. Era tudo o que sua mãe um dia quis. 

E aquela era sua tão esperada oportunidade, a saída do inferno onde tanto sofreu, sem que as lágrimas pudessem descer por sua face, sem que o grito pudesse sair de sua boca, ficando preso na garganta. Aquilo doía mais que as chibatadas em suas costas, doía mais que o pisoteio metafórico em sua cabeça. Por isso, estava ali agora, avançando em seu caminho para novos horizontes. 

Era verdade que o sonho de todo marinheiro, que desejava ser pirata um dia, era estar a bordo do famoso navio Plus Ultra. Era escutado em muitos cantos que seu nome era apenas um gostinho de como o Capitão e seus tripulantes sempre iam além. Além da paisagem vista pelo olhar de qualquer um, além das estrelas que brilhavam no céu e das coisas grandiosas que conquistavam. Mais importante que tudo, além do fim do mundo, como comentavam dizer os mais supersticiosos. 

Sempre despertando a atenção dos mais curiosos, o temor dos mais corajosos e o coração daqueles que eram aficionados por uma boa aventura, os mais desejosos pelo bater das espadas e o grito dos mares. Por isso, eram tão famosos, mas do que o esperado, aliás. E talvez fosse essa a razão também para que Shouto saísse tão apressado pelas ruas daquela cidade, levando apenas o que tinha no corpo ― mesmo que não fosse muito ―, uma garrafa de rum, como cortesia de Kamui e um presente que havia ganhado há muito tempo, o seu tesouro mais precioso. 

O peso do papel, agora em seu bolso, ficava maior a cada passo que dava para mais próximo àquele estabelecimento duvidoso que seu amigo havia o mandado ir. Cobra na Bota. Era o nome que estava cravado na placa de madeira envelhecida e apagada pelo tempo. O bar a beira do cais, sujo e abafado, fedia a rum e cerveja, coisas que não agradaram muito ao seu olfato. Aquele odor estava tão entranhado no local que não restavam opções ao estômago de Todoroki, senão revirar diversas vezes. A vida em um navio pirata não era exatamente a coisa mais limpa do mundo, mas era certo que o rapaz não necessariamente havia se acostumado com o cheiro podre de seus companheiros. 

Adentrou o lugar, correndo os olhos pelas mesas e banquetas dispostas no balcão e sua atenção se voltou ao indivíduo que guardava a porta que levava ao armazém. A postura séria e rígida não lhe deixava dúvidas de que ele estava guardando algo. Se encaminhou para lá, agradecendo pelo movimento estar baixo, o que lhe permitia um pouco mais de discrição. Lançou um olhar para o homem alto que não moveu um só músculo e levou a mão à maçaneta. O movimento rápido lhe passou despercebido e se surpreendeu ao ter o pulso agarrado e torcido com a força mais que necessária para uma ameaça. 

― O que faz aqui? ― As íris faiscaram quando um sorriso nada simpático surgiu na face do homem bem trajado. Melhor do que o esperado para um pirata. 

― Recebi esse papel. Shinji Nishiya me mandou aqui. ― Todoroki estendeu o papel que lhe fora entregue. Os olhos azuis sob as lentes arredondadas do óculos de armação grossa o percorreram duas vezes e as sobrancelhas se franziram ao ver a assinatura. 

― Meio franzino demais para um tripulante ― ele resmungou antes de soltar o seu punho. 

― Então, precisam de novos tripulantes? ― Aproveitou-se da informação que ele deixara escapar, ignorando o comentário sobre seu porte. Certamente não era tão musculoso quanto o guarda, mas tinha bastante confiança em sua força quando precisava dela. Além disso, velocidade, precisão e inteligência eram armas melhores em um combate. ― O que aconteceu com os últimos que contrataram?

― Morreram. ― E com essa última palavra, abriu a porta e indicou que Todoroki avançasse. Ele o fez sem mais comentários, descendo os degraus e entrando no depósito escuro e lotado de barris das mais variadas bebidas. Piscou para acostumar os olhos quando uma luz se acendeu no meio, rescindindo nas paredes de pedra. 

Mirou, estático, o grupo de pessoas mal encaradas que estavam presentes naquele pequeno espaço, tentando não abaixar o olhar por nenhum segundo que fosse. Ele sabia, não era segredo para ninguém que nunca seria seguro desviar a atenção quando se tratava de piratas. Seus anos vivendo como um moribundo no navio de Enji havia o ensinado alguma coisa afinal. Perder o foco significava perder a cabeça, perder seus pertences, perder seu corpo. Era uma reunião de pilantras, mas quem disse que ladrões não poderiam roubar até sua alma? Havia lendas, é claro, ele as escutava às vezes. Aqueles ali presentes poderiam muito bem ter vendido suas almas, assim como poderiam estar a procura de uma nova para encaminhá-la ao inferno consigo. 

― Ora, ora, o que temos aqui? ― Uma voz grosseira se fez presente entre a aglomeração de pessoas. 

― Que apetitoso esse franguinho, o Capitão vai devorar ele em poucos instantes. ― Riu, sem sequer dar chance para Todoroki respondê-lo a altura. 

― Vocês deviam ser mais pacientes, meninos ― alguém disse ao ser acompanhado pelo som das botas ao tocarem o chão. ― Não começamos ainda, não tirem vantagem dessa… hm, pobre criatura.

Um segundo foi o necessário para que Shouto registrasse que não havia ninguém ao seu lado naquele momento, não que fosse uma grande surpresa para Todoroki, ele estava lidando com pessoas reais, com o mundo real. E nele, não existiam aliados, ou mesmo amigos do peito; ele estava sozinho, com uma pistola metafórica (ou nem tanto assim) apontada para a sua testa. 

― Hm, na verdade, acredito que você seria melhor eleito para o cargo de jantar. Afinal, nosso capitão prefere comer carne e não ossos. ― Sorriu, irônico. Os demais presentes acompanharam-no com uma risada entrecortada por ocasionais rosnados. A tensão era tanta que mesmo a menor faísca poderia facilmente fazê-la explodir. 

E foi exatamente isso que bastou, uma faísca.

― Como se qualquer um desses vagabundos filhos da puta fosse o bastante para servir ao Capitão.

O ar pareceu suspender-se, aguardando enquanto as palavras ditas eram processadas pelos demais que, ao reconhecerem o insulto direcionado a si próprios, levantaram-se de seus lugares e se aproximaram como se fossem um único organismo.

― Do que esse fodido do caralho nos chamou? ― Um deles, o mais sisudo, bateu os pés pesadamente, flexionando os músculos do peito claramente visíveis pela falta de uma camisa, sua aura de ameaça tomando o ar a sua volta.

― Tenho certeza que você ouviu, ou será que essas coisas penduradas nos lados de sua cabeça não servem nem mesmo para isso?

Foi isso. O estopim para que pistolas e facas fossem puxadas por todos de bolsos e esconderijos possíveis. Logo o bar havia se tornado uma confusão caótica e brutal, na qual todos atacavam e eram atacados na mesma medida.

― Blasfêmia! Não tem sequer um pingo de disciplina e esperam fazer parte da tripulação. ― Riu-se. ― Eu poderia limpar o solado das minhas botas com esses merdas

― Mas que diabos…?  

Shouto observava o alvoroço se desenrolar diante de seus olhos, desviando dos corpos que se atracavam e dos cacos de vidro que choviam ocasionalmente por sua cabeça. Uma mão agarrou seu braço com um fecho de aço do qual não conseguiu se livrar e ele se viu arrastado para uma das portas localizadas na parede sul do estabelecimento. Dois olhos azuis se crisparam ao observá-lo antes de ser empurrado com força contra uma porta escura.

― Diga ao Capitão que Monoma enviou seus cumprimentos.

― Mas espere, eu fui escolhido? ― A risada em resposta lhe trouxe calafrios que repercutiram por todo o corpo, como se alguma alavanca secreta tivesse sido acionada.

― Confie em mim, logo logo você vai me odiar por ter feito isso. ― E, com um último sorriso sobrepujado, Neito Monoma puxou o trinco. ― Espero que sobreviva! ― Cantarolou em falsa alegria, as últimas palavras que ouviu antes de ser enclausurado na escuridão.

Shouto Todoroki não gostava da sensação que se instalou em sua nuca ao deixar que seu pé navegasse pelo chão daquela sala. Ele engoliu em seco, tentando não prestar atenção no gotejar do líquido ao seu lado. Girou os calcanhares, aturdido, deixando os olhos bem abertos, atentos a qualquer movimentação que fosse. 

Deixou que o olhar percorresse mais uma vez o espaço, acostumando-se ao escuro o bastante para avistar um mísero ponto brilhante em algum lugar mais a frente. Avançou, cabeça erguida e corpo ereto, pronto para o que quer que fosse encontrar e suspirou ao ver que eram apenas dois homens sentados no chão, com expressões desgastadas pela espera.

― Então, esses foram os que tiveram coragem suficiente para ficar, não foi? ― A voz risonha veio do escuro. Shouto engoliu o nervosismo repentino que lhe tomava. Avançou até onde a lamparina fora acesa em cima do fundo de um barril vazio emborcado e dois pés surgiram da escuridão para se apoiarem cruzados sobre a tampa. 

― Fui o último a aparecer? 

Um sorriso reluziu na luz bruxuleante da lamparina quando as palavras saíram de sua boca de forma petulante. Os pés desceram e se apoiaram no chão enquanto o corpo pendia para a frente, o rosto se aproximando da chama. Sob o chapéu preto de capitão, reunia-se uma massa de cacheados cabelos verdes caindo pela nuca, e, atravessando o rosto pontilhado ―  quase perfeito em sua formação ―, uma cicatriz tão fina e clara que quase não pudera ser notada.  

― Alguém aqui se tem em alta. Mas quem sabe, talvez tenha sido o único louco o suficiente para acreditar na chamada. Só não vá se sentindo especial, ainda temos um longo caminho aqui, tenho que testá-lo ― cumprimentou o homem, sem que lhe encarasse por só um segundo, como se Todoroki não fosse um ser minimamente decente para merecer aquilo. 

Tinha quase certeza de que havia conseguido segurar a expressão no lugar e não demonstrar toda a surpresa que lhe atingira. Então esse era o famoso e infame Capitão do Plus Ultra? Era a ele que todos temiam e as histórias pintavam como um ser sem coração e canibal? Não parecia grande coisa para si.

Os outros dois se puseram de pé, lançando-lhe olhares como se o culpassem pela demora. O de cabelos loiros o encarava com um sorriso que só poderia ser descrito como bobo ― de fato, como ele havia conseguido parar ali com aquela cara? ―, e o outro, com cabelos escuros e olhar malicioso, parecia desapontado com a sua chegada. 

― Estes são Denki Kaminari e Minoru Mineta ― o Capitão apontou quase desinteressadamente. ― E este que enfim resolveu nos agraciar com  o ar de sua graça é Shouto Todoroki. ― Bateu as botas uma última vez, pondo-se de pé. Não houve tempo para Shouto se perguntar como diabos ele sabia o seu nome quando mal acabara de chegar. Não. Sua atenção foi tomada pelo fenômeno que era a presença dele, que a despeito da baixa estatura, de repente pareceu se intensificar. Um tremor cruzou o corpo dos três ali presentes quando, de repente, o homem à sua frente finalmente os olhou, silencioso, como se estivesse constatando o pouco que eram. 

De súbito, o ar pareceu ficar mais denso, a temperatura decaiu e eles se viram presos nas águas esverdeadas e tempestuosas daquele olhar. Todoroki não desviou o seu em nenhum momento sequer, nem mesmo poderia fazê-lo se quisesse. Os três encontravam-se irremediavelmente encarcerados. Ali, naquele ínfimo momento que parecia se tornar infinito, enfim reconheceu o porquê todos que o conheciam lhe disseram que aquele homem era o mais próximo do que chamavam de demônio. Talvez, por isso, com o assobio do vento lá fora, um arrepio tomou seu corpo e a boca secou, sem querer que as palavras se soltassem. 

E, quando a luz proveniente da lamparina tremulou, o sorriso sádico de seu Capitão acompanhou a marcha fúnebre de sua voz, como se aquelas fossem as últimas palavras que escutariam em suas vidas.

― Meus caros, sejam bem vindos ao seu novo inferno.


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Notas finais do capítulo

Olá, terráqueos.
Esse é o primeiro capítulo oficial de Sete-Estrelo e aqui temos a apresentação dos nossos meninos bonitos.
Mas, e aí, o que acharam? Nos falem nos comentários.
Agora vamos aos avisos: Sete-Estrelo vai ser atualizado quinzenalmente, ou seja, teremos dois capítulos por mês dessa história gostosa.
Bom, é isso. Muito obrigada pela leitura. Espero vê-los nos próximos capítulos.
Beijos de unicórnio e até a próxima!
(Sabrina Vilanova)



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