A Contenda Divina escrita por Annonnimous J


Capítulo 28
Um Coração Pesado




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Mariah se sentia pesada e sua garganta estava dolorida e ardia intermitentemente. Devagar, quase como se ela acordasse de um sono profundo e conturbado, seus sentidos voltam e com eles pontadas de dor por todo o corpo. Ainda de olhos fechados, a garota sente o chão gelado sob seu corpo e o crepitar suave de uma fogueira por perto, que irradiava luz levemente através de suas pálpebras. Seu tronco doía em pontos diferentes, seu nariz voltara a incomodar e ela desbria cortes em lugares que desconhecia pela reclamação de sua pele. Dentro de si, ainda deitada, não sabia se praguejava por toda aquela dor, ou se agradecia pelo milagre de estar viva após uma luta frente a frente contra um semideus.

Colocando os pensamentos em ordem, ela se lembra de tudo que aconteceu em uma torrente, em meio segundo ela vê Huo, sua lança, Shura e Eyria apanhando, ela mesma suspensa no ar por golpes e então Ganância, totalmente fora de si como um lunático. A imagem do garoto faz ela estremecer de leve e seu estômago afunda. Ao finalmente reunir coragem o suficiente para abrir os olhos, Mariah vê a ponta totalmente desfocada de um pano branco caindo sobre sua testa e ao tocar nele percebe que estava úmido, como se alguém tivesse colocado ali para que não tivesse febre ou algo do tipo.

Com muita dificuldade, ela força seus braços a levantarem seu tronco dolorido e além deles, seu abdômen também reclama. Ela estava cansada, mas precisava entender o que estava acontecendo ali.

Ao finalmente se sentar a duras penas, ela se vê em um casebre abandonado caindo aos pedaços. O lugar estava muito sujo, se limitava a um cômodo grande com uma escada no fundo com uma janela logo acima do primeiro degrau e uma abertura onde um dia esteve uma porta larga, o chão de pedra assentada era irregular e recortado por vinhas que teimavam em deslizar pelos vãos entre as pedras, as paredes não estavam em melhor estado, de fato, pareciam milagrosamente ancoradas na vertical, a ponto de qualquer impacto, por menor que seja, as derrubar. A sua frente, um pouco adiante de seus pés, a fogueira iluminava de dentro de uma precária lareira a qual faltava alguns tijolos aqui e ali, mas que se mantinha, em geral, inabalada.

Enquanto observa o local, ela gira inconscientemente seu corpo para a direita, se apoiando apenas em um braço, um movimento natural, mas que pelos ferimentos e o cansaço resultou em uma falha na força do braço que sustentava o corpo, a obrigando a se apoiar desengonçadamente com o outro. É quando ela percebe que não estava só, Eyria repousava deitada ao seu lado, com um pano sobre seu pescoço semelhante ao que a garota tinha em sua testa quando acordou.

A observando por um instante, Mariah vê que Eyria não estava em um estado muito melhor. Sua roupa, antes impecável e alegre estava maltrapilha, sua pele, que parecia ter uma luz própria estava opaca, quase pálida e sua respiração parecia sofrida e lenta mesmo desacordada, como se fosse um esforço para ela apenas existir. Porém, o que mais chamou a atenção da garota foi sua máscara: o gato estava dormente, de olhos vítreos e uma expressão estática tão pálida quanto a mulher, sem sinal das cores vivas e dançantes sobre a madeira clara. Madeira essa, que não ostentava mais apenas os entalhes ancestrais, mas também diversas avarias que recortavam toda a máscara. Trincas em formatos arredondados irregulares tinham diferentes raios em vários locais da madeira, as laterais, antes muito bem recortadas e ornadas, agora estavam quebradas e lascadas em vários pontos. Era impossível saber qual dos semideuses tinham causado quais estragos, contudo, era evidente que Eyria não resistiria a mais um semideus que aparecesse naquele momento.

Em um movimento tão inocente e inconsciente quanto o anterior que quase a derrubara, Mariah estica seu braço enquanto se apoia sobre um cotovelo e toca com uma falange do indicador o rosto do gato, que não reage ao contato. Uma onda de tristeza inexplicável invade seu corpo e quase uma semana de eventos traumáticos caem sobre a garota de uma só vez. Ver Eyria inerte e mal respirando em sua frente, sem resmungar ou brigar com Shura, projetara lágrimas nos olhos da garota, que ela tentava segurar, mas que ainda rolavam sobre suas bochechas.

— Eyria... – balbucia a garota, enquanto volta a se apoiar com os dois braços e abaixar a cabeça, seu pescoço doía e era um pouco difícil falar, ainda mais com o bolo que se formava em sua garganta.

A lembrança da semideusa sendo surrada sistematicamente por Ganância mesmo dando seu melhor toma sua mente, o barulho agoniante de sua máscara se quebrando era substituído em sua cabeça por ossos se partindo, seus gemidos, soavam como choros de medo e dor, os gritos de Shura, acorrentado, quase a ensurdeciam e tudo ao seu redor parecia negro. Mariah desaba sobre o ombro e sente a dor, mas ela era distante, quase que um toque em seu braço a essa altura. Ainda escutando o som do que parecia serem os ossos de Eyria se partindo, a garota instintivamente tapa os ouvidos com suas mãos e rilha os dentes o mais forte que consegue, fechando os olhos e soluçando, deitada de costas no chão.

As imagens de Eyria derrotada, Shura acorrentado e sua própria família assassinada brutalmente se misturam, a ponto de ela não saber onde o sonho começa e a lembrança termina. Tudo dentro de si era confusão e dor, todos que ela amava pareciam estar mortos ou prestes a isso e no centro de tudo, um garoto de um sorriso inocente e tenebroso, vestido de um terno bem passado e um ar juvenil, mas de olhos dourados como ouro. O soluço é involuntário e imparável, assim como as lágrimas que teimavam em escorrer de seus olhos bem fechados.

— Não... – ela consegue pronunciar, ainda segurando a cabeça entre as mãos, com cada palavra arranhando sua garganta como se tivesse arestas – eles... não estão... mortos.

Era uma tentativa vã de não desabar e ela sabia disso, mas era tudo o que ela tinha.

Tremendo e fungando, Mariah abre os olhos e olha novamente para Eyria adormecida através da barragem de lágrimas que se formara em sua visão. A semideusa ainda inerte parecia alheia ao choro da garota, que sentia seu coração pesar mais e mais, a ponto de esmaga-la a qualquer momento. Respirando o mais profunda e pausadamente que ela consegue, Mariah se lembra do que fazia quando sentia que seu mundo desabaria na escola, quando os comentários e violências pareciam a empurrar para o abismo, ela finalmente se dá um tempo para se colocar no lugar novamente e se permite chorar mais um pouco, deitada no chão frio, apertando os braços contra o corpo e olhando para Eyria, quase que vendo um cadáver a sua frente. Lentamente, os sons e as memórias se dispersam junto com as lágrimas, Mariah percebe seus dentes cerrados tão fortemente que seu maxilar doía e os afrouxa, vacilante. Seu olhar fixo na mulher deitada ao seu lado finalmente viaja uma vez mais pelo cômodo semiobscurecido e ela novamente tenta se colocar sentada.

O pensamento da garota começa a clarear e a preocupação com Eyria retorna, ver uma guerreira, uma divindade poderosa o bastante para brincar com clones e memórias mantendo a graciosidade caída dessa maneira era desmoralizador, ver a mulher que a salvara do perigo tantas vezes e que confiara nela o bastante para lhe dar um papel importante em uma de suas cartadas desacordada ao seu lado, indefesa e frágil, era muito triste, ainda mais por nunca a ter agradecido por isso.

— Obrigada Eyria – diz ela com a voz ainda oscilante, se prometendo a agradecer corretamente quando acordasse.

Ela precisava acordar.

O som de alguns passos no andar superior da casa faz a garota se encolher enquanto olha instintivamente pro teto, observando em silêncio a poeira se desprender dele, traçando uma linha em direção ao chão. Na parede próxima ao topo da escada, uma sombra para misteriosamente, como se observasse o interior da casa antes de desaparecer junto com o barulho.

Mariah observa a tudo aturdida, seus músculos clamavam por ajuda. Pela primeira vez desde que acordara realmente pensa em Shura, apenas para perceber que o semideus havia desaparecido, talvez estivesse em um estado pior que Eyria, ou até que ele não tenha conseguido sobreviver. Não, ela mesma estava viva, então ele também deveria estar, contudo, o mais importante era que ele não estava à vista. Se Ganância ou qualquer outro semideus as encontrasse ali, estariam mortas com certeza. Sem outra alternativa, ela sabia que precisava agir enquanto ele parecia não perceber a presença delas por ali e tinha de agir sozinha.

É só um semideus, o que pode dar errado?”. Ela pensa consigo mesma, estremecendo com a resposta.

Seu primeiro impulso é agarrar a semideusa pelos braços e tentar sacudi-la, para que acordasse pelo menos para que pudesse fugir, mas depois de quase meio minuto agitando-a sem sucesso, era evidente que ela não acordaria com isso. Fazer barulho ou chama-la também estava fora de questão, já que ela sabia que os semideuses tinham audição apurada e já era um milagre ele não a ter escutado enquanto se derramava em prantos. Pensando o mais rápido que podia, a segunda ideia que a ocorre é arrastar a mulher para fora, para que pudessem se esconder na floresta até Shura chegar, mas depois de sentir suas costelas e braços prestes a saltar de seu corpo para apenas a levantar por insignificantes cinco centímetros, Mariah sabia que aquele era mais um plano que não funcionaria.

Por fim, a garota suprime a vontade de gritar por ajuda, respira o mais fundo que suas costelas e garganta permitem e instintivamente procura ao seu redor por alguma arma. Seria mais fácil se as armas sagradas não desaparecessem conforme a vontade ou, aparentemente, o estado de consciência de seus donos, mas ela não podia se dar ao luxo de contestar as decisões divinas a essa altura. Como que por um milagre, a meia distância entre onde ela estava e a escada, a garota encontra um pedaço de entulho com uma ponta afiada e um corpo um pouco longo, meio ovalado. Tinha de servir. Mariah observa o objeto e sorri de forma nervosa, quase chorando novamente.

— Droga Shura, porquê você sempre desaparece quando eu mais preciso? – Ela pragueja para si mesma.

Mariah ensaia algumas vezes antes de decidir pela melhor maneira de se levantar, ficando sobre os joelhos e engatinhando com cuidado na direção dos degraus. Andando sobre os quatro membros e sentindo pontadas nas costelas, pernas e braços a cada movimento, ela alcança a arma improvisada e a examina com cuidado, era uma lasca de pedra maciça quebrada que feria um pouco sua mão com as arestas irregulares apenas de a segurar. Definitivamente não seria nada para um semideus, mas com um pouco de sorte e força o suficiente, ele poderia ficar fora de combate por um tempo. Porém, um fio de pensamento passa por ela e a garota congela. Seu plano era acertar e correr o mais distante que pudesse naquelas condições, mas algo a impedia. Olhando por debaixo do braço que usava para sustentar o peso do corpo, Mariah vê Eyria deitada. Se ela corresse, seria o fim da semideusa.

Se esforçando para não fazer barulho e nem gemer enquanto sentava, a jovem tenta bolar algum novo plano para remendar àquele, alguma alternativa a sua fuga patética que poderia colocar em risco a mulher. Esperar por Shura era arriscado demais, já que estavam a literalmente uma laje de distância da sombra misteriosa e ela precisava ser rápida, claro que aquele que estava ali poderia ser ele, mas não podia arriscar, não sem ter alguém para a salvar e pior, ter alguém dependendo de sua sabedoria em bolar algo. O plano de atacar e fugir o mais rápido possível também tinha ido por água a baixo, carregar Eyria dali estava fora de questão, já que nem em suas faculdades perfeitas Mariah conseguiria a carregar.

Então sobrava apenas uma opção, e talvez a pior de todas. Sua cabeça doía enquanto ela se esforçava para pensar, mas um plano começava a se traçarem sua mente: ela atacaria o semideus por trás saindo do rebaixo da escada, o atrairia para longe de Eyria enquanto esse estivesse desnorteado de dor, a deixando em segurança e então fugiria pela sua vida na floresta até despistar o perseguidor ou até que ele atraísse a atenção de outro semideus, afinal, eles não estavam longe do centro da arena e um semideus não sentia a presença de um humano, ao menos era o que precisava ocorrer. Era óbvio o quanto esse plano era falho e pensado às pressas, de fato, se ela pensasse nele por mais um minuto ela desistiria, mas era a única chance das duas, com um pouco de sorte e se fosse rápida o bastante, talvez ela conseguisse ter uma chance remota.

Juntando toda sua coragem e o que sobrara de suas forças, Mariah ruma em direção à escada ainda engatinhando e usa a parede para se pôr de pé antes de subir um degrau de cada vez. Ela dividia sua atenção entre o pico da escadaria, as dores por todo seu corpo e a sensação de um ataque a qualquer momento. Sua cabeça girava a um milhão por hora, pensando nas possibilidades, talvez um ataque viria através das frágeis paredes do casebre mal-acabado, talvez o inimigo estaria a esperando sentado e a olhando surgir na escada com uma arma ridiculamente ineficaz em suas mãos, talvez ele já até tenha ido embora e toda a tensão fora inútil, era difícil conceber o que sua cabeça formulava, tudo estava girando e ela parecia a ponto de vomitar, seus músculos doloridos se contraíam ferozmente pela adrenalina e ela sentia seu coração pulsar em sua cabeça. À medida que subia o mais devagar que seu corpo trêmulo permitia, ela se colocava em posição de ataque, assim como aprendera a usar com a adaga. A garota suava frio e seus olhos estavam fixos no cume da escada, as imagens da última batalha estavam frescas em sua memória e seus hematomas não a deixavam esquecer das consequências.

Degrau a degrau, ela vence o pé direito do cômodo e sua cabeça chega ao limite do primeiro andar, a forçando a se abaixar levemente e sair de encontro com a parede. Se apoiando na borda irregular da laje que morria na escada, Mariah tenta ver apenas com os olhos e o topo da cabeça a mostra quem estava sentado no meio dos escombros do primeiro andar da casa, mas a luz forte do sol incidente diretamente no buraco ofusca sua visão ainda acostumada com a escuridão de suas pálpebras e ela se abaixa piscando, ficando invisível para o  homem ali sentado. Com os olhos se acostumando com a claridade, ela volta a tentar olhar por cima da borda da laje, dessa vez sem que seus olhos parecessem queimar.

Com o que conseguia captar sob a luz do sol, Mariah percebe que o andar superior da casa estava completamente em ruínas, as paredes se limitavam a pequenas pilhas de tijolos, deixando com que a luz do sol passasse livremente iluminando tudo, além de que a falta do teto também deixava a estrutura à mercê das forças da natureza. Era um milagre a edificação ainda não ter ruído. No meio disso, sentado no chão e abraçando uma das pernas sobre o que parecia ter sido uma coluna redonda, estava uma pessoa com uma blusa branca suja e rasgada até a altura do abdômen fitando um casaco vermelho em suas mãos. Mariah força a visão, mas a luz do sol estava diretamente sobre seus olhos e ela não consegue discernir mais do que isso.

Colocando seu plano em ação independentemente de ter reconhecido o semideus ou não, ela tenta se aproximar mais ainda da borda da escada para tentar se projetar para cima, mas com o movimento um dos pedregulhos se solta e Mariah tromba de peito com as pedras sustentadas por barro e madeira e sua arma improvisada rola pelos degraus e para no pé da escada. Seu tórax, costelas, pulmões e todo o tecido da região grita instantaneamente com o impacto sobre a aresta aguda e o barulho acaba chamando a atenção do semideus, que se coloca de pé mais do que depressa.

O garoto era como uma sombra personificada enquanto estava na frente da luz do sol. Ele a olha com as írises amarelas como ouro e Mariah estremece sem forças para se levantar, apoiada sobre o tronco e um braço enquanto o outro pende para o andar de braço, ela estava paralisada. Um sorriso sórdido se estampa em sua máscara e uma voz alucinada chama por ela como que de dentro de sua cabeça: “Mariah!”, cada sílaba do seu nome entrava em seus ouvidos e descia por sua espinha deixando seu corpo cada vez mais dormente e paralisado.

— Mariah, o que houve? – Diz ele com um tom irônico maligno, sua voz soava quase metálica por baixo da máscara e se aproximava assustadoramente rápido. A garota fecha os olhos, esperando o pior enquanto escuta seus passos apressados em sua direção, ela sabia que tinha sido uma péssima ideia tentar ataca-lo e agora pagaria o preço.

Mariah sente as mãos de Ganância em seus ombros a puxando para cima, como se tivesse uma força maior que a que seu corpo diminuto deveria possuir, em seguida, ela é espremida contra ele e ela sente seu rosto se comprimir contra o peito da criança. Ela sentia que morreria ali e clamava por Shura em silêncio, torcendo para que houvesse um laço entre os dois em que pudesse haver uma comunicação não verbal. A voz metálica e abafada continuava falando sobre sua cabeça, ela podia até sentir o calor de seu hálito tenebroso, porém, ao falar novamente seu nome outrora infantil e vazia, começa a se tornar docemente grave e apreensiva a pressão das mãos em suas costas se alivia e é transferida para seu ombros a descolando do peito do jovem. Mariah percebe, em meio às lagrimas, que os braços eram grandes e malhados demais para serem de uma criança.

— Mariah, abra os olhos, por favor! – diz mais uma vez a voz agora estranhamente familiar, soando preocupada.

A imagem do semideus a sua frente lentamente volta a ficar nítida a medida que as lágrimas saem de frente das írises de Mariah, a garota então encontra um par de olhos de um verde penetrante a fitando com atenção, a máscara que envolvia todo o rosto agora tinha um focinho grande e orelhas pontudas para trás, como se estivesse prestes a latir e a roupa maltrapilha escondia uma pele não alva, mas levemente bronzeada, com um corpo forte sob a blusa branca em frangalhos.

— Mariah, consegue me ouvir? Diga algo, por favor – Diz Shura novamente, colocando a mão no rosto da jovem e a sentando perto da borda, ao lado dele.

O terno branco manchado de sangue agora desaparecera por completo. Dando lugar a uma regata puída e rasgada sobre uma calça de um tecido grosso e avermelhado. Ganância tinha desaparecido por completo, dando lugar ao semideus do lobo.

— Meu deus... Shura, eu... – ela tenta falar, mas o que acabara de acontecer ainda estava vivo em sua mente. Suas mãos tremiam, suas pernas estavam bambas, sua garganta reclamava mais do que nunca e ela desaba, caindo para frente, para os braços do semideus.

Mariah chora sentido, como não fazia há anos. O susto, o medo, o alívio, se misturando de uma vez só em suas lágrimas. Shura a segura para perto de si, a apertando com os antebraços únicos às contas da garota e deixando que ela se agarrasse a sua regata, afundando seu rosto contra o corpo do semideus. Shura não sabia ao certo se por seu instinto ancestral ou por algo de sentiu enquanto vivo, mas ele tinha certeza do que deveria fazer, ele tinha que proteger, mesmo que apenas por esse momento a pequena garota humana que entrara de uma vez em sua vida. Ele sentia que o que ele poderia fazer por ela, era dar aquele abraço apertado enquanto ela botava tudo para fora. E foi o que ele fez, por longos minutos.

***

Eventualmente, depois de algum tempo, Mariah foi vagarosamente parando de se debulhar em lágrimas, seja por ter desabafado o que ela prendia desde que chegara ali, seja por sentir que iria morrer de dores se chorasse mais um pouco. De fato, tão logo seu choro se transformara em soluços intermitentes, ela empurra gentilmente o semideus, que relaxa seus braços o suficiente para a olhar diretamente.

— Como se sente? -Pergunta o homem, com uma voz calma e empática como a garota nunca ouvira.

— Eu me sinto melhor, - agradece ela, ignorando que seus olhos deveriam estar avermelhados do choro e se desvencilhando por completo de Shura, sentando ao seu lado, quase que evitando seu olhar – obrigada...

— Me desculpe por te assustar desse jeito – diz ele se ajeitando, como que para dar um pouco mais de espaço para ela – estava montando guarda, me pegou desprevenido subindo pela escada assim.

— Foi uma ideia estúpida – explica a garota em um tom baixo, massageando a garganta que ainda estava dolorida, era difícil falar, mas era como se ela sentisse necessidade disso. – Achei que... achei que poderia atacar quem quer que fosse e fugir, para dar uma chance que você me encontrasse e para que Eyria não se ferisse.

Em seu interior, Shura repassa todas as milhares de maneiras que o plano desesperado de Mariah poderia ter falhado e resultado em sua morte, mas ele decide não tocar no assunto.

— Não foi algo estúpido, foi muito corajoso da sua parte na verdade.

Shura pondera por um momento, dividido entre pressionar para que a garota fale o que acontecera no andar debaixo e deixar que ela se recupere melhor. Optando pela segunda alternativa, se sentando a sua frente:

— Não foi coragem Shura - diz ela um pouco desapontada, esperando uma repreenda do homem. - Foi inconsequente e desesperado, eu só... Não tinha outra opção, sei que você também não achou a melhor das opções.

— Eu sei, - fala ele - mas nem sempre temos as melhores opções ao nosso alcance Mariah, em alguns momentos, temos que decidir qual seria a menos pior e foi o que você fez.

Sentindo um estranho acalento, Mariah o olha por baixo e sorri de leve, deixando o sorriso se perder logo em seguida. Um momento de silêncio se passa entre os dois e Shura a observa massagear o pescoço novamente.

— Como está o pescoço? - Pergunta ele, como que para reavivar a conversa.

— Bom, como se tivesse sido esmagado por um semideus, - responde ela, com uma pitada de humor por baixo da ironia - fora isso, dolorido.

— Sinto muito que a nossa curandeira esteja fora de combate no momento - o homem responde, retribuindo o gracejo. O rosto de Mariah se torna mais sombrio.

— Ela... Vai ficar bem?

— Sim, ela é forte, teimosa, aposto que o próprio tártaro a rejeitaria.

— Acho... Que tem razão... É só que...

— Você se preocupa com ela, não é?

— Sim - ela responde, em meio a um suspiro.

— Eu também. Por isso trouxe as duas para cá.

— Por falar nisso – diz a garota, olhando ao redor e percebendo que haviam algumas outras ruínas que deveriam ter sido casas em algum momento. – Onde estamos exatamente?

— No que sobrou de uma pequena aldeia aparentemente, encontrei ela quando você ainda dormia. – Ele responde, suspirando – Além disso, não faço ideia do que seja esse lugar, mas veio a calhar.

— E como veio, aliás foi você que colocou isso em mim? – A garota tira o lenço do bolso da calça jeans e o mostra para o rapaz.

Ele pega o tecido com delicadeza e o examina, se apoiando com os cotovelos nos joelhos.

— Sim, - Shura responde, simplesmente – eu não tenho os mesmos poderes curativos de Toth ou Eyria e vocês duas estavam com febre, então molhei ele com água e tentei baixar a febre das duas.

Mariah o observa brincar com o tecido e esboça um leve sorriso, era engraçado ver o lado bondoso que tanto contrastava com seu jeito autoritário.

— Obrigada, - ela diz, deixando o que sobrou do terror escorrer sob o toque quente do sol poente - mas eu acho que te atrasei de novo, não é?

— Claro que não – diz Shura em um tom animador, mas contemplativo – graças a isso encontramos um lugar para descansarmos e essas edificações significam que estamos indo para o lugar certo eu imagino, o ponto de encontro é no lago que fica no coração da floresta, Atlântida.

O queixo de Mariah cai e seus olhos se arregalam levemente.

— Você fala a...

— Sim – completa Shura, rindo – pelo que eu ouvi, ela não é encontrada pois é um lugar onde os Generais Divinos habitam na terra durante esses tempos, então ela fica em constante movimento e a cada duzentos anos ela reaparece no coração do domo, onde geralmente acontecem as batalhas finais, diante dos Generais Divinos.

— Nossa, você devia me falar mais sobre essas coisas, o Monstro do Lago Ness é verdadeiro também? Um pet de um dos generais?

Shura gargalha com a pergunta e a garota o acompanha, se sentindo mais leve, mas tossindo no final por causa da lesão no pescoço.

— Não, esse não tem nada a ver com esse plano pelo menos, é tudo fruto da imaginação de vocês.

O silêncio então volta a imperar por um curto espaço de tempo entre os dois, fazendo com que seus sorrisos começassem a esmorecer. A garota usa esse tempo para novamente observar Shura sem que esse percebesse. O semideus estava maltrapilho, com as roupas em frangalhos e cheio de ferimentos frescos por toda parte que se recusavam a fechar por completo mesmo sob sua magia curativa, sua máscara também parecia muito avariada, mais ainda que a de Eyria. Ela estava chamuscada, quase tostada e com vigorosas rachaduras dos olhos até a boca do lobo, muitas seguindo as gravuras em vermelho-sangue, isso a preocupava.

Shura olhava para um degrau qualquer da escada sob os pés de Mariah com olhos distantes e a jovem sabia que algo sério viria pela maneira como os ombros do semideus se tornavam rijos.

— Sabe Mariah, eu estou feliz que tenha acordado - ele faz uma pausa antes de continuar, procurando as palavras – e também, queria te agradecer.

— Me agradecer? – Pergunta Mariah, surpresa.

— Sim – assente o homem – você teve ótimos planos lá atrás, eles provavelmente nos salvaram.

Mariah cora de leve.

— Eu só tentei ser útil, vocês dois vivem me protegendo eu só... não queria mais me sentir um fardo.

— Não diga isso – Shura agora a fitava fixamente, ela sente seu peito esquentar – na verdade eu que sou um pouco... não, muito ranzinza, não é que você me aborreça, na verdade, você me diverte.

Nesse ponto, Mariah se esforça bastante para ver o lado bom da frase e afastar o pensamento de que ele acabara de a chamar de palhaça.

— Não no sentido cômico – emenda Shura, percebendo o que acabara de falar – é só que... o que eu quis dizer...

Ele para um instante, apertando os dedos contra os joelhos e desviando o olhar de leve, antes de voltar a ficar com determinação.

— Desde que eu vim parar aqui, - continua ele, despois de um suspiro - tenho sido assim e me sentido assim, isolado, sozinho, deslocado, mas a conversa com você e Eyria me fez perceber que eu estava agindo da maneira errada.

— Como assim? – Mariah sente o calor no peito se dissipar, sendo tomado por um aperto familiar, o homem que há algum tempo era forte e fechado agora parecia, de alguma maneira, frágil.

— Acho que desde que nos conhecemos, você vem se perguntando sobre a minha história, não é?

O semideus aponta para o próprio peito. Mariah engole seco, se sentindo pisar em um terreno perigoso.

— Não, espera, eu sei que posso ser muito curiosa algumas vezes, - ela se desculpa, gesticulando com os braços e mantendo a voz baixa, mesmo querendo aumentar tom instintivamente - não precisa me dar satisfações nem contar nada se não quiser, de verdade.

Ele ri de leve, quase como um gracejo.

— Mas mesmo assim, não consegue tirar isso da cabeça, não é?

— Não, eu... na verdade... nem pensei nisso depois do chalé.

— Tem certeza disso? – O homem pergunta, estreitando os olhos sob a máscara.

— Mas é claro – ela responde, dando de ombros, mas desviando o olhar.

— Mesmo? – Ele insiste uma última vez, apelando para a curiosidade insaciável da garota, que cede.

— Tá, talvez uma outra vez depois daquilo.

Ele ri, vitorioso.

— Mariah, eu queria te contar a minha história, a de verdade, sem segredos dessa vez.

— Mas... Shura, por quê?

Ele coça a nuca, pensando no que dizer, como se desse um tempo para a pergunta da garota se assentar.

— Porque você merece saber a quem confia sua vida – ele responde, em um tom cada vez mais sombrio – e como um pedido de desculpas, por tudo que te fiz passar até aqui.

— Shura, eu... tudo bem, eu aceito.

O coração de Mariah estava pesado, sem saber se era com o pequeno sorriso triste que se formou nos olhos de Shura com a permissão, ou com o que iria ouvir a partir de agora. Com calma, o homem tira um cordão de prata escura que repousava debaixo de sua blusa. Nele, quatro placas metálicas pretas com escritas em um branco brilhante que parecia vivo pendulavam, emitindo um clangor melancólico entre o mineral e o metálico, como se fosse uma pedra feita de metal puro.

Sem arrancar do pescoço, ele o mostra para a garota.

Em cada uma delas, um desenho distinto dividia lugar com nomes e idades, todos jovens entre vinte e vinte e três anos. Na primeira placa de um negro que parecia sugar a luz para si, as linhas brilhantes formavam um beija-flor cristalizado no meio e um voo, com as asas abertas para trás e a calda apontada para frente, junto com o bico alongado, assim como eles faziam antes de flutuar sobre uma flor qualquer. Atrás da gravura, do outro lado da pedra, um nome de mulher, Carla Sandiego. Na placa ao lado dela, o rosto de um garanhão de feições duras e retas parece a olhar, acompanhado por um nome, James Ruth, aparentemente o mais novo deles. A terceira placa tinha uma simpática doninha se esticando para caçar algo e o nome entalhado era o de Ryan deVille. Na última, um pássaro Dodô fora entalhado de lado e o nome que figurava por trás da placa era o de Marcus II. Mariah não precisava de uma explicação para saber que eram amigos de Shura ainda em vida.

— Eu disse que meu nome fora escolhido por mim mesmo, pois eu não merecia uma segunda chance e que eu era um renegado, bom, esses nomes são o motivo disso tudo.

Mariah percebeu que estava prestes a saber do passado de Shura e ela não sabia como se sentir.


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