A Sua Última Chance de Mudar escrita por S Q


Capítulo 1
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Paula Siques é uma mulher de 59 anos. Não digo que  vive atarefada porque estaria abrandando a situação. Ela sobrevive seus dias exaustivos, na esperança de que mais tarde, talvez, as coisas mudem. Mas a rotina lhe engole e nunca chega o dia de mudar. 

Paula também é uma profissional muito respeitada, inteligentíssima. Trabalha como coordenadora regional de uma agência de turismo, a XYZ. Para se manter nessa posição, precisa todo dia ir à alguma diferente unidade da empresa, para verificar se o trabalho está sendo feito de maneira uniforme entre as filiais, afinal, são todas uma marca só. Ela é a responsável pela região metropolitana de São Paulo, o que no seu cargo, significa longos engarrafamentos todos os dias.  A mulher aguenta a jornada pesada para ajudar a mãe, idosa, que possui Alzheimer. Quase todo seu salário vai para a medicação e tratamento de dona Alda Siques. Por isso, ainda, só se desloca de ônibus e metrô pela capital paulista.

Dedica todo seu tempo livre em casa: ou fazendo projetos para o trabalho; ou dando medicamentos à mãe. Não tem filhos, nem marido, nunca se mudou do lar onde cresceu. Só sai para jantares com seus chefes, pessoas que vivem julgando seu vestuário e a maneira com que se porta. Mesmo assim, ela procura agradá-los de forma  quase servil, para não perder sua fonte de renda.

A vida de Paula segue nesse esquema há anos. Ela mesma não sabe quanto tempo faz que se divertiu de verdade. Às vezes, no ônibus, a caminho do trabalho; ou antes de dormir, ela se lembra de uma época em que era mais nova, menos atarefada e tinha amigos por perto. 

Paula já teve vários colegas, mas três foram seus maiores amigos em toda vida: Elly, Beatrice e Torres. Torres na realidade se chamava Adão, mas como não curtia o próprio nome, pedia para lhe chamarem pelo sobrenome. Ele foi o melhor amigo que Paula já teve, e também sua maior paixão; porém, ela era tímida demais para admitir isso na época em que ainda se falavam.

Os quatro estudaram na mesma escola técnica em 1974, quando tinham todos 15 anos. Paula tirava as notas mais altas entre eles, e por isso, desdenhava um pouco das amigas, mesmo que sempre pudesse contar com elas quando precisasse. Com Torres ela agia diferente, mas como eu disse, nada que demonstrasse sua real afeição.

Hoje Paula se arrepende da maneira com que tratava-lhes. Queria ter sido mais amigável com Beatrice e Elly, conversado mais sobre banalidades com as amigas, quando ainda estava perto das duas, ao invés de criticá-las para se fazer de mais intelectual e superior que elas. Podia também ter admitido à Torres o que sentia, ainda que talvez não fosse recíproco, pois só  assim, nas noites mais solitárias, pararia de se culpar pela chance que não se deu. Mas na época ela não pensava como agora... e em 1975, o pai de Beatrice, um militar, foi transferido para a base do exército no Pantanal, levando toda a família consigo, o que fez a amiga se afastar do grupo. Em 1976, Elly saiu da escola porque os pais estavam endividados e precisavam que ela trabalhasse. Com a carga horária cheia, não conseguia nem mesmo visitar os amigos. E Torres, em 1977, passou em um concurso para fazer  um intercâmbio na universidade de Coimbra, em Portugal . Desde então, Paula nunca mais ouviu falar de nenhum deles.

Esta noite  é uma dessas em que a mente de nossa protagonista faz ela se lembrar de seus melhores amigos da adolescência. Sinceramente, Paula tenta ignorar tais memórias quando lhe atingem, porque não ajudam em nada na sua produtividade, nem no trabalho, muito menos em casa. E não é como se pudesse voltar no tempo para viver um dia a mais daquela época. Contudo, tais lembranças insistem em martelar sua mente quando está sozinha. Dessa forma, durante a madrugada a mulher toma uma decisão. Assim que amanhecesse, iria sair logo para sua reunião na Mooca, mesmo que chegasse algumas horas adiantada. Não queria perder mais um segundo na cama pensando nessas bobeiras que não lhe levam a nada.

Feito. 6 da manhã, Paula já está de pé, arrumada, pronta para sair. Colocando as chaves na porta, quando, com a voz fraca, sua mãe lhe chama. Pelo nome. Paula para com o molho de chaves no ar. Não é possível. Qual foi a última vez que dona Alda acertou seu nome? Mas só pode ser a senhora chamando, afinal desde a morte do pai, ocorrida quando Paula ainda era um bebê, só moram as duas ali. 

Com um sorriso leve no rosto, a coordenadora volta para o quarto da mãe. 

— Me chamou?

A senhora está deitada, e vira sua cabeça na direção da filha. Pode não ter mais um corpo vigoroso, mas  seu olhar é bem forte, quase mordaz. Com a mesma voz fraca, a idosa responde:

— Sim... eu te chamei.

Então Alda se levanta devagar, tateando por seus óculos na mesinha de cabeceira à sua direita. A filha ajuda-lhe a colocar o adereço no rosto, curiosa com o repentino vigor de sua mãe. A velha observa Paula bem nos olhos antes de dizer:

— Há muitos anos, sua avó me deu um item valiosíssimo de nossa família. Acho que já passou da hora de entregá-lo para você.

Paula fica aguardando de pé, na frente da cama, enquanto a mãe lentamente se levanta para buscar algo na cômoda do outro lado do quarto. A senhora volta com um medalhão.

— Vou te contar um segredo, por favor, não fale sobre isso nunca a mais ninguém. Seu tataravô, Roberval Siques, você sabe que foi um grande relojoeiro, certo?

— Sim, mas o que isso…

— Shhiu! Roberval trabalhou criando e vendendo vários modelos diferentes de relógios, de carrilhões a peças de pulso. Até foi chamado, uma vez, para consertar o que ficava no alto da torre da igreja da Sé. Conhecia todas as engrenagens dessas belezinhas! Isso muita gente sabia, até porque ele foi um dos relojoeiros mais famosos da cidade, porém o que ele escondeu do mundo, foi a criação deste relógio aqui. - disse apontando para o medalhão - Pode parecer apenas um colar, mas foi a mais perfeita máquina do tempo já inventada na História!

— Certo, mãe. Vamos tomar agora o remédio que seu psiquiatra passou para momentos de crise mental e… 

—Ei, eu não estou maluca! Na verdade, não estava tão sã há muito tempo… O medalhão, ele… Tem alguma força desconhecida que me atraiu. Só de tocar me sinto capaz de ser um pouco mais jovem por uns minutos… Veja você mesma!

Paula pega o objeto, embora ainda estranhando muito todas as palavras da mãe. Porém, não deixa de ser quase um milagre a repentina conversa de dona Alda. Por isso, hesitante, resolve observar melhor o objeto. Ao manuseá-lo de um lado para outro, os arcos que prendem o pingente ao medalhão brilham intensamente. Paula sente uma súbita energia correr através de si.  Por um segundo, deseja que aquele objeto seja capaz de transportá-la para épocas melhores, em que sentia tanta vontade de viver quanto consegue sentir ali, naquele momento.

De repente, percebe os arcos do pingente se moverem. Sozinhos. Abre os olhos, assustada, pedindo uma resposta à mãe. A idosa apenas sorri docemente, antes de uma forte descarga sair do colar e tudo se apagar.


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