Universo em conflito escrita por Mallagueta Pepper


Capítulo 21
Só que você terá que pausar o jogo




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/786802/chapter/21

Era sábado e o estacionamento do shopping do Limoeiro estava lotado de curiosos, câmeras e muitos competidores. Bem no meio do estacionamento tinha um belo Jeep Grand Cherokee vermelho que reluzia sob o sol atraindo olhares e suspiros. Muitos queriam botar a mão naquele carro, mas só um ia levá-lo para casa no fim do dia. Cebola pretendia vencer de qualquer jeito.

— Muito bem, pessoal! As regras são simples! – o apresentador falou de forma afetada e escandalosa. – Vocês devem ficar com pelo menos uma das mãos encostada no carro. Quem tirar a mão, será eliminado. O último que ficar, vence. Vocês podem lanchar, beber água e fazer qualquer coisa, MAS uma das mãos deve ficar colada no carro de qualquer jeito. Entenderam?

Pelos seus cálculos, devia ter mais de quarenta concorrentes e ele se espremeu como pode mantendo a mão colada no carro e decidido a não tirá-la dali por nada no mundo. Pendurada em seu ombro tinha uma bolsa com água e frutas que Mônica tinha lhe dado. Mais tarde Cascão ia passar ali para lhe ajudar no que fosse possível.

— Preparados? A competição começa agora! – ele deu um tiro de festim para o alto e todos se concentraram.  

Após uma hora, vários competidores desistiram porque não agüentaram o sol escaldante do meio-dia. Duas horas se passaram. Três horas. Quatro. Cebola tomava água em pequenos goles e de vez em quando dava uma mordida nas frutas. O sol forte acabou espantando umas doze ou treze pessoas e a vontade de ir ao banheiro eliminou pelo menos sete. Cada pessoa que saía era um passo a mais na direção da vitória.

Eram quatro e meia e o sol continuava forte deixando-o intrigado por fazer tanto calor em agosto, mês que normalmente ventava muito. O ar estava parado e o chão de cimento fazia irradiar o calor do sol causando grande desconforto nos concorrentes. Mais dois saíram.

— E aí, cara? – Cascão chegou levando uma bolsa.

— Vou levando. Já saiu muita gente.

— Trouxe uns biscoitos e (blargh!) água. Como tá a bexiga?

— Incomodando um monte, mas não posso desistir agora.

Cascão foi para a sombra e a disputa continuou. Mais concorrentes saíram porque não conseguiram segurar a vontade de ir ao banheiro. Eram quase seis da tarde quando ele viu que ficaram somente quatro pessoas e uma delas fez seus olhos arregalarem.

— Mila? – ele murmurou surpreso ao ver a garota da qual tinha gostado por ter muitas semelhanças com a Mônica. Tomando todo cuidado para não tirar a mão do carro, ele foi até ela e falou como quem não queria nada. – E aí, tá difícil, né?

— Não é da sua conta e não vem me xavecar que eu tô concentrada!

Ele sentiu vontade de rir. Geniosa como a original.

— Ei, calma, não tô te xavecando não. É que tá muito chato ficar em pé sem fazer nada. – Ela deu de ombros.

— Tira a mão daí e vai pra casa, ué!

— Sem chances, não saio daqui sem esse carro de jeito nenhum!

— Então vai ser difícil porque eu também não vou embora de mãos vazias!

— Você parece bem durona, hein?

— Eu tento.

Meia hora depois, outro concorrente desistiu deixando somente três e Cebola ia resistindo como podia. O problema era que sua bexiga não parecia disposta a colaborar. Ele precisou tomar água por causa do calor e tinha que pagar o preço. Ele remexia, apertava as pernas uma contra outra, procurava olhar para os lados tentando se distrair e viu que estava ficando cada vez mais difícil se segurar.

— Tá querendo tirar água do joelho? Tem um banheiro limpinho no shopping. – Ela provocou.

— Hahaha, nem vem! Prefiro fazer nas calças que desistir.

— Eu também.

Após algum silêncio, Mila perguntou.

— Você trabalha na Super Lanchão, né? Já te vi no balcão.

— Só meio expediente. Sou atendente lá. Meu nome é Cebolácio, mas meus amigos me chamam de Cebola.

— Mirela, mas pode me chamar de Mila.

— Mila... gostei!

A situação estava cada vez pior e Cebola achou que ia se molhar ali mesmo quando Cascão chegou com um lençol de cama e uma garrafa.

— Pra que isso?

— Banheiro improvisado. Hahaha!

— Fala sério, vai fazer aqui mesmo?

Cebola deu de ombros.

— Contanto que eu não tire a mão do carro, beleza. Agora dá licença!

Usando o lençol para se proteger, ele conseguiu se aliviar com um grande sorriso no rosto. Mila observava tudo fazendo cara feia, pois estava em desvantagem naquele quesito.

Lá pelas sete da noite uma garota de cabelos ruivos, porém um pouco mais claros, se aproximou.

— Mila, você quer mais água?

— Melhor não ou a bexiga pode não agüentar.

— Você não bebeu quase nada o dia inteiro!

— Fica tranqüila que eu tô bem.

Mais um concorrente saiu porque estava passando mal, deixando somente o rapaz e a moça.

— Você tem que vencer! Nossa mãe depende disso.

— O pai sabe que eu tô aqui?

— Eu não falei pra ele.

— Melhor assim. Nós vamos fazer uma surpresa levando esse carro pra casa.

A menina saiu de perto e Cebola não conteve a curiosidade.

— Você tá aqui escondida do seu pai?

— Não é da sua conta! – ela falou grosseiramente e Cebola procurou ter paciência, pois sabia que no fundo era uma garota meiga.

— Ei, calma, nós somos concorrentes, não inimigos. Isso aqui não é “jogos vorazes”.

Ela suspirou e tentou ser mais amigável.

— Minha mãe tá muito doente e o tratamento custa uma nota preta. O plano de saúde não cobre e o SUS demora uma eternidade, então minha família tá tentando pagar. Só que tá difícil porque meu pai ficou desempregado há uns cinco meses e mal tá dando pra gente comer.

Seu coração apertou.

— Com o dinheiro desse carro vai dar pra pagar o tratamento e também as dívidas que meu pai precisou fazer pra comprar os remédios. Sem isso, não sei se ela vai agüentar...

— Nossa... tá difícil mesmo.

— E você? Pra agüentar tanto assim aposto que deve estar precisando muito.

— Mais ou menos. – ele contou brevemente sua história, deixando-a chocada.

— É muito desaforo ralar pra ganhar esse carro e botar na mão desses dois folgados!

— Eu sei, mas faço qualquer coisa pra ficar livre deles.

A história dela fez seu coração apertar, pois dava para ver que era um caso de vida ou morte. “Peraí, o que eu tô pensando? Eu preciso desse carro tanto quanto ela! Senão quem vai morrer de tanto trabalhar sou eu!”

Sua mente se dividiu em duas partes que debatiam de forma incessante. Uma dizia que ela precisava muito mais daquele prêmio. Outra dizia que ele tinha que cuidar dos próprios interesses. Se ele não fizesse isso, quem ia fazer?

A irmã da Mila voltou parecendo muito aflita.

— O que foi? Aconteceu alguma coisa?

— O pai ligou falando que a mãe piorou. E agora? Você não pode sair daí ou vai perder!

— Eu também não posso deixar de ir ao hospital. Minha mãe precisa de mim!

Cebola virou o rosto para o lado, mordeu o lábio inferior, fechou os olhos com força e xingou a si mesmo de todos os palavrões conhecia e uns que tinha acabado de inventar. Não, ele não podia acreditar no que estava prestes a fazer. Será que apanhar do Rômulo transformou seu cérebro em mingau?  Ele não sabia, mas de uma coisa tinha certeza: somente um deles podia levar aquele carro e ele já sabia quem devia ser. Não tinha mais jeito.

— Hã, o que ele tem? – a moça perguntou ao ver o rapaz caindo de joelhos no chão. Mila ficou preocupada.

— Cebola? Oi? Tá me ouvindo?

A cabeça dele estava abaixada e um líquido vermelho pingou no chão. Seu corpo cambaleou algumas vezes até ele tombar para o lado inconsciente e com sangue escorrendo pelo nariz.

— Cebola? Ah, não! Alguém chama um médico! – ela tirou a mão do carro para socorrê-lo e dois médicos vieram examinar o rapaz. Felizmente a produção do concurso havia trazido uma ambulância e ele foi atendido na hora, recebendo soro na veia enquanto os médicos checavam seu estado de saúde.

Cascão também ficou muito preocupado com o amigo e acompanhou tudo de perto. Eram quase oito horas quando o médico chegou à conclusão de que era somente cansaço e o liberou.

Os dois foram levados para casa na ambulância e conversaram durante o trajeto.

— Cara, eu perdi né? – ele perguntou fingindo aborrecimento.

— Pois é. A mina ruiva acabou ficando com o carro.

— Ela tirou a mão...

— Você tirou primeiro, aí perdeu. Foi mal, véi...

— Tudo isso pra nada. Que droga!

Embora parecesse muito frustrado, no fundo ele estava feliz com sua decisão. Bastou cutucar o nariz um pouco, se fingir de doente e pronto. Foi bem fácil.O motorista da ambulância parou perto da casa do Cascão, já que Cebola não queria que Rosália o visse chegando daquele jeito.

— Não é melhor eu te levar até sua casa? – o motorista ainda falou.

— Não tem ninguém agora e eu acho melhor não ficar sozinho.

A ambulância foi embora e só assim Cebola pode ir para casa já com medo do que lhe esperava, pois passava das oito.

— Cara, tô preocupado porque sei que sua tia vai pegar pesado!

Ele sabia que ia apanhar e estava cansado disso. Não dava para fazer nada porque Rosália podia colocar a toda a família contra ele fazendo-o ser internado num colégio militar. Se eles ao menos enxergassem a cobra venenosa que ela era...

— Hum...

— Véi... cê tá com cara de plano infalível! – Cascão falou pronto para sair correndo e Cebola o tranqüilizou.

— Fica frio que esse plano vai ser só comigo mesmo.

— Como é? Vai me deixar de fora?

Ele procurou algo no celular e ficou feliz ao achar exatamente o recurso que precisava.

— Eu vou fazer uma coisa que devia ter feito há bastante tempo. Vai ser assim...

—_________________________________________________________

Cascão estava certo. Quando chegou em casa, Rosália armou um escândalo homérico por causa do seu atraso e lhe deu vários tapas.

— Seu vagabundo, safado, sem vergonha, imprestável! Isso é hora? Quem você pensa que é? Espera só até o Rômulo chegar, ele vai dar um jeito em você num minuto!

Cebola já estava farto daquilo e segurou o pulso dela. A mulher ficou pálida e quase caiu no chão de susto.

— Olha aqui, seu...

— Olha aqui você! Para de me encher o saco ou eu conto pra família toda que você alugou meu quarto e ainda me obriga a trabalhar pra roubar meu dinheiro.

Rosália perdeu as cores da face, pois fazia muito tempo que o rapaz não a enfrentava daquele jeito.

— Seu cretino, vagabundo...

— Tá, tá, imprestável, desgraçado, blábláblá. Cansei de ser tratado que nem cachorro, valeu? Ou você aprende a me respeitar, ou todo mundo vai saber o que você tá aprontando comigo. Aí quero ver como vocês vão se arrumar.

Rosália puxou a mão com força e não deixou por menos.

— Faça isso que eu taco fogo nas suas fotos e nessa casa também! Pensa que eu não tenho coragem? Se eu perder, você também perde, então bico fechado!

O rapaz a enfrentou.

— Você vai mesmo colocar fogo na casa? Quer mesmo fazer isso?

— Quero sim! Vou colocar fogo em tudo isso com você dentro!

— Você tá mesmo ameaçando colocar fogo nessa casa? É isso mesmo?

— Você é surdo, moleque? Não brinca comigo não, ouviu? Eu ainda tenho as suas fotos e vou usar elas para botar fogo nessa casa! Quer pagar para ver?

Com um sorriso perverso, ele estendeu o celular e reproduziu a conversa deles em alto e bom som. Por pouco Rosália não teve um enfarto.

— O que será que nossos parentes vão pensar ao ouvir isso aqui?

— Se você fizer isso eu...

— Vai colocar fogo na casa? Então vai lá, faz isso que com essa gravação eu dou um jeito de te botar na cadeia!

Isso fez com que ela caísse pesadamente no sofá. Tudo estava perdido, pois nem todo seu poder de persuasão seria capaz de convencer o resto da família que aquela gravação era falsa. Pela primeira vez, ela estava com pés e mãos atadas e isso a fez sentir tão cansada quanto nos dias de faxina na casa onde trabalhava. Cebola sentou-se em outro sofá menor e disse. 

— Eu não vou falar nada com ninguém e vamos deixar as coisas como estão porque quero te ajudar, só que também quero ser respeitado, caramba!

Ela o olhou como se um tentáculo verde tivesse brotado em sua testa.

— Você está brincando comigo por acaso? Quer abusar agora que eu não posso fazer nada?

— Não, tia. Tô falando sério. Eu demorei porque estava participando de um concurso para ganhar um carro, só que acabei perdendo. Com esse carro, vocês poderiam ter pagado essa dívida.

— Você ia mesmo dar esse carro para mim? Não acredito nem um pouco!

— Pode acreditar. Eu também tenho interesse em que vocês paguem essa dívida, esqueceu?

Rosália deu um sorriso amargo.

— Claro, assim você fica livre da gente mais rápido. Você nunca nos quis aqui, não é?

— Eu tava numa fase ruim naquela época.

— E eu estava desesperada. Não precisava ter sido tão rude comigo quando vim morar aqui.

Sua cabeça doeu um pouco e uma avalanche de lembranças invadiu sua mente fazendo-o ver muitas coisas. Seu duplo foi realmente grosseiro e a maltratou muito quando ela e Rômulo foram morar naquela casa. Era uma viúva endividada e desesperada cuja única esperança era poder contar com a colaboração dele. Tudo bem que sua família errou em forçá-lo a conviver com eles, mas isso não justificou sua grosseria. Ele poderia ter sido mais diplomático.

Embora não justificasse as atitudes de Rosália, isso o fez perceber que não havia exatamente algoz e vítima naquela situação.

— Desculpa, tia...

Certo. Havia alguma coisa muito estranha com aquele garoto que fez Rosália levantar do sofá e se afastar muito assustada. Será que Rômulo bateu na cabeça dele com tanta força assim?

— Por que você... não, tem algo errado aí! Você nunca me pediria desculpas dessa forma.

— Mas eu tô pedindo. Não quero mais viver brigando.

— Você podia usar essa gravação e nos colocar para fora de casa.

— Não vou fazer isso.

Ela voltou a se sentar.

— Por quê?

— A gente vai ter que morar junto até você pagar essa dívida. Podemos fazer isso numa boa ou em pé de guerra. O que você prefere?

Não precisou pensar muito para ela chegar à conclusão de que preferia viver em paz.

— Eu também quero viver em paz e ser tratado como gente. Acho que vamos ter que chegar a um acordo.

— É... vamos... – por mais que estivesse desconfiada, Rosália sabia que ele estava certo. Eles precisavam mesmo chegar a um acordo.

—_________________________________________________________

— Credo, o Xaveco foi tosco demais, nem acredito! – Mônica falou depois que Denise desabafou com as amigas sobre o fim do seu namoro. As meninas estavam reunidas em sua casa para fofocar, fazer as unhas e cuidar dos cabelos. Magali preferiu ficar de fora porque achou melhor não impor sua presença às outras garotas. Tudo tinha que acontecer devagar. 

— Ai que raiva! Tanto rapaz bonitinho dando de cima de mim e fui ficar logo com aquele embuste! – Sarah procurou lhe consolar.

— Antes tarde do que nunca, né? Agora você tá livre pra arrumar coisa melhor.

— Nem! Denise tá fechada pra balanço. Não quero mais saber de moleque, chega!

— Também não é assim. – Keika falou enquanto aplicava maquiagem na Aninha. – Tem muito rapaz legal pra você conhecer.

— Eles parecem legais no início e acabam sendo uns babacas.

— Eu acho que você errou quando ficou com o Xaveco enquanto namorava com o Titi. Ei, só tô dando minha opinião! – Cascuda se defendeu quando Denise fechou a cara para ela e Mônica veio em sua defesa.

— O relacionamento deles era aberto e cada um ficava com quem queria ficar. O que é combinado não sai caro.

As meninas oscilaram entre concordar e discordar. Não deixava de fazer sentido.

— Ah, é tão estranho ficar com uma pessoa namorando outra... – Marina disse enquanto aplicava creme nos cabelos. – Muito moderno pra mim.

— Pensando bem... é melhor do que fazer tudo escondido. Pelo menos os dois têm o mesmo direito. – Mônica voltou a falar. – E gente, nada justifica o comportamento do Xaveco. Ele foi um babaca mesmo.

Denise se acalmou ao ver que alguém ali lhe compreendia, mas entendeu que não podia falar mal da Magali no quarto da Mônica, então achou melhor segurar sua língua e aproveitar a festa que estava muito boa. 

Elas continuaram fofocando e Mônica deu um jeito de distraí-las com diversos outros assuntos, guloseimas e amostras de produtos caros que sua mãe sempre ganhava em grandes quantidades e nunca usava. Assim ninguém lembrou de falar mal da Magali e todas se divertiram.

—_________________________________________________________

Na segunda-feira, Antonio foi para o colégio feliz e bem disposto. Ele mal podia esperar para mostrar a todos que estava subindo na vida enquanto eles continuavam parados no mesmo lugar com suas futilidades de sempre.

— Ei, você! Arrume a camisa do seu uniforme! – ele ralhou com um aluno que obedeceu prontamente.

Uma garota mascando chiclete foi mandada para a diretoria juntamente com um rapaz que assoviou para algumas alunas e outro que falou um palavrão. Aqueles imbecis iam aprender quem mandava de um jeito ou de outro.

Na sala de aula, enquanto o professor estava ocupado escrevendo no quadro, Denise fez um bilhetinho que circulou pela sala avisando que o temido Tonhão da rua de baixo estava trabalhando como inspetor e que era para todos tomarem cuidado porque ele estava mandando todo mundo para a diretoria.

Cebola leu o bilhete e ficou com medo do brucutu resolvesse pegar no seu pé como vingança por ter sido preso. Ou que perseguisse a Magali. Eles tinham que evitá-lo da melhor forma possível.

—_________________________________________________________

O quadro era cada vez pior e foi preciso levá-los ao hospital. Alimentação e vitaminas não tinham resolvido nada.

Boris os olhava com tristeza. Eles estavam muito magros, debilitados e pareciam ter mais de cem anos. Eram apenas uma sombra do que foram um dia.

— Como eles estão? – Agnes perguntou entrando no quarto levando um delicado ramo de flores.

— Não melhoraram nada. O que está acontecendo com eles?

— Eu não faço idéia e já não sei mais como cuidar deles.

— Acho que não há nada que se possa fazer. Eles já têm o melhor e mesmo assim não melhoram.

Apesar de eles não terem sido perfeitos e Boris odiar a disciplina que lhe impunham, Boris estava triste porque ainda eram seus pais e ele não estava preparado para perdê-los tão cedo. Eles nem eram tão velhos.

— Sei que você ainda tem muito trabalho a fazer. Pode ir que eu cuidarei deles. – Agnes falou.

Boris não falou nada e eles ficaram em silêncio durante alguns minutos. Por fim, ele precisou mesmo ir embora, deixando-a sozinha com os pais. Antes de ir, ele deu uma última olhada neles e seguiu seu caminho com o coração apertado.

Quando aquele idiota se foi, Agnes ficou aliviada e chegou perto da cama da sua mãe.

— Está quase acabado. – o mesmo olhar frio e cruel também foi direcionado ao seu pai.

—_________________________________________________________

No intervalo, os quatro estavam sentados em suas carteiras de cabeça baixa e fingiam ler o livro da próxima aula. Cebola os aconselhou a ficarem assim porque imaginou que Antonio podia aparecer a qualquer momento tentando achar algum motivo para mandá-los à diretoria. Já os outros alunos conversavam novamente.

Denise estava sentada na mesa do professor conversando com as amigas. De vez em quando Xaveco olhava e ela virava o rosto para o outro lado, pois tinha tomado raiva dele. Foi assim que ela acabou não vendo Antonio entrar na sala e pulou de susto quando ele a repreendeu.

— Sentar na mesa do professor é uma grande falta de respeito!

— Er... foi mal... tipo assim... – a moça gaguejou com o rosto vermelho de vergonha.

— Você vai para a diretoria agora.

— Eu já levantei... ai, tá bom... – ela acabou cedendo quando viu que se tratava do temido Tonhão. Céus, quanto azar!

Ele viu que aqueles quatro estavam sentados com a cara enfiada nos livros e ficou um tanto decepcionado. Bem, sua chance ia chegar mais cedo ou mais tarde. Os dois saíram da sala e no meio do caminho, ele disse.

— Você não mudou muito. Continua bem atrevida. – ela não respondeu nada, pois foi ensinada que não devia retrucar os inspetores. - Não está surpresa em me ver?

— A Mônica já tinha falado sobre você.

Eles chegaram na sala do diretor onde vários alunos estavam esperando. A secretária tinha falado que Sr. Boris precisou sair por causa de uma emergência familiar e o vice-diretor não podia atendê-los.

Como não havia mais onde sentar, Denise ficou em pé encostada na parede. Antonio resolveu voltar ao trabalho e deu uma última olhada nela antes. A moça usava o uniforme da escola, como todo mundo, e tinha os cabelos presos num rabo de cavalo. Nenhum acessório, nenhuma maquiagem, rosto triste e apagado. Nem parecia mais a Denise que ele conhecia.

Ele voltou ao trabalho lembrando em como ela era alegre e extrovertida.

—_________________________________________________________

O dia transcorreu normalmente dentro do possível. Antonio tinha mandado pelo menos vinte e três alunos para a sala do diretor e esperava que Sr. Malacai fosse ficar satisfeito ao ver como ele foi capaz de punir os transgressores. Na hora da saída, ele resolveu acabar logo com aquilo e ir falar com eles para lhes mostrar o quanto estava se tornando importante.

Todos ficaram apreensivos, Magali e Mônica se prepararam para uma possível briga. O rapaz levantou a mão.

— Fiquem tranqüilos que eu não vim para brigar. Só fiquei muito surpreso por ver vocês juntos. Não acredito que a Magali está andando com a patricinha que lhe desafiava e o cobaia a quem surrava todos os dias!

A moça o encarou de frente, pois nunca teve medo dele antes e não ia ter naquele momento.

— Algumas coisas mudaram aqui. Somos amigos agora. BONS amigos. – ela fez questão de ressaltar.

— É... estou vendo.

— A gente não quer confusão nenhuma, valeu? – Cebola disse

— É o que vocês esperam de mim, não é mesmo? Sinto desapontá-los, mas eu também mudei e para melhor! Estou trabalhando para o Sr. Malacai agora.

— Ah, beleza. – Cascão falou sem emoção alguma. Ninguém ali parecia impressionado e aquilo o frustrou bastante.

— E quanto a vocês? – perguntou para disfarçar.

— Eu continuo praticando taekwondo e pretendo tirar faixa preta no ano que vem.

— Eu estou trabalhando na Super Lanchão.

— Eu trabalho como voluntária num abrigo para gatos duas vezes por semana.

— E eu arrumei meu quarto! – Cascão falou também muito orgulhoso de si mesmo. – Não joguei roupa suja no chão hora nenhuma! 

Ele olhou para os quatro sem saber o que pensar. Cebola voltou a falar.

— Fico feliz que você tenha refeito sua vida. Er... você não tá bolado por causa daquele incidente na casa da Carmem, tá?

Ele deu uma risada e logo ficou sério de novo quando lembrou que Sr. Malacai abominava o riso.

— “Bolado”? Eu deveria agradecer. Você pensou que tinha me derrotado e me deixou ainda melhor.

— Er... beleza então. Bom que você tá legal agora.

— É, cara. – Magali falou mais afável. – Fico feliz que você esteja seguindo com a vida. Eu também tô seguindo com a minha e só quero ficar de boa. A gente não precisa ficar em pé de guerra, não vale a pena.

— Agora você quer paz? – ele perguntou sarcástico e ela o encarou.

— Não foi você quem disse que não quer briga? Então é isso. Vai cuidar da sua vida que nós vamos cuidar da nossa. – Mônica resolveu intervir antes que os ânimos ficassem agitados.

— O que ela quer dizer é que o que passou, passou. Ficar remoendo não vai levar a nada. Eu te desculpei pelo que aconteceu no ano passado. Por que você não pode desculpar a Magali também?

Ouvir aquilo o deixou sem jeito. Se ele queria mesmo ser um cidadão de bem, precisava aprender a deixar o passado para trás e isso significava eliminar qualquer sentimento de rancor que tivesse dentro dele. E pensando bem, ele já não sentia nenhum tipo de ressentimento por eles e decidiu que não valia mesmo a pena perseguir os quatro. Ele tinha coisas mais importantes para fazer como subir na organização e impressionar o Sr. Malacai.

— Então é isso, cara. A gente vai chegando. Espero que tudo fique bem entre nós agora. – Cebola disse.

— Contanto que vocês andem na linha e não quebrem as regras, não teremos problema. Caso contrário, não pensarei duas vezes antes de mandá-los para a diretoria.

Os quatro foram embora e ele os ficou olhando sem saber o que pensar. Ele pensou que seu sucesso ia deixá-los com inveja ou medo, mas nada disso aconteceu. Foi estranho ver que eles estavam até felizes em ver que ele tinha melhorado.

Mais estranho ainda foi ver como o grupo ria, conversava e parecia estar se divertindo. Diversão... risos, alegria... aquilo devia ser tão ruim assim? Pouco depois Denise passou por ele conversando com as amigas. Ao olhar para o rosto dela, ele voltou a se perguntar se era tão ruim assim ficar alegre.

Ainda intrigado com tudo aquilo, ele voltou para a organização e mostrou ao Sr. Malacai a lista de alunos que ele tinha mandado para a diretoria e as faltas de cada um.

— Para o primeiro dia foi aceitável. Espero que melhore com o tempo.

— Sim senhor.

Antes de sair da sala, Antonio resolveu arriscar uma pergunta mesmo sabendo que ele não gostava.

— Senhor... eu poderia fazer uma pergunta?

— Diga.

— Eu ainda não entendi muito bem por que... hã... risos e alegria são uma coisa ruim. É só uma dúvida... – ele finalizou com a voz baixa e os olhos fitando o chão para não encarar o olhar cortante dele.

— Alegria é inútil e risos são perda de tempo. Não trazem nada de bom para a nossa vida. O que resolve é trabalho duro, dedicação e esponsabilidade.

— Entendo, senhor... – ele ainda não conseguia entender, mas achou melhor não contrariar. Sr. Malacai continuou.

— O mundo está mergulhado no caos, Antonio. Tudo por causa dessas idéias modernas que destroem a sociedade e a família! As pessoas se ocupam com coisas inúteis como música, artes... – ele fez um gesto brusco com uma das mãos e uma careta. – Quando uma pessoa se ocupa com isso, não faz nenhum trabalho útil.

Antonio ouvia em silêncio se esforçando para engolir aquelas idéias. Mesmo confiando muito no Sr. Malacai, ele não concordava com quase nada e se sentia muito mal por isso. Era como se algo dentro dele bloqueasse tudo o que o homem dizia.

— É por isso que abominamos todo o riso, demonstrações de alegria, festas, músicas e todo tipo de futilidade. Uma pessoa de bem deve ser sempre muito séria, não demonstrar nenhuma emoção e rir o mínimo possível, de preferência nunca!

Enquanto o velho falava com toda eloqüência, ele lembrou do rosto sorridente de Denise na hora da saída. Aquilo era errado. Era? Mas Sr. Malacai parecia tão sábio e experiente, não podia estar errado. Mais do que depressa, ele procurou apagar aquela imagem da sua cabeça. Não podia haver espaço para futilidades em sua nova vida.

— Você entendeu, Antônio? – ele perguntou quando terminou de falar e o rapaz respondeu sem mostrar o menor traço de emoção.

— Sim, Sr. Malacai. Eu entendi e sei que o senhor tem razão.

O velho balançou a cabeça afirmativamente e voltou ao seu trabalho. Antônio saiu do escritório sentindo-se bastante frustrado por não ter conseguido apagar totalmente a imagem sorridente daquela ruiva.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Universo em conflito" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.