Conjunto Residencial Ártemis escrita por Alice Pereira


Capítulo 1
A jovem bruxa e aqueles lá no campinho


Notas iniciais do capítulo

Vamo que vamo que essa história eu levo adiante.



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i'll have to say i stayed with friends
but it's a habit worth forming if the means justify the ends
i'm dancing in the moonlight
it's caught me in the spotlight
it's alright

dancing in the moonlight, by alt-j

Sua vizinhança era cheia de rotatórias, áreas de giro, bancos, praças, parquinhos circulares. Círculos fechados, vazados e meias-luas. Prático, para seus fins. Andava por ela de dia observando as casas e lampejos da vida alheia, à distância. Os jardins que se expandiam para a calçada, os prédios em tons pastéis, as casinhas que emanavam vida: era uma região bonita, boa de se viver.

Mas, não me entenda mal, não é que todo edifício e residência fosse saído de contos-de-fada ou anúncios de revista. Jaque morava num apartamento de um conjunto de prédios baixos, caixas pintadas de branco e cinza: o Conjunto Residencial Ártemis. Ela considerava isso um sinal, um presságio; tal qual os círculos que encontrava cá e lá, também, e as hortas urbanas públicas.

Naquela noite saiu, disse à mãe que ia à uma confraternizaçãozinha com seus amigos. Bem que a mulher queria! Não que não tivesse amigos, só não andava muito com eles, no geral. Ninguém a entendia, não de verdade — um clássico. Ao invés, foi para a ponta mais distante da praça-morrinho em frente à sua casa, um quarteirão de árvores, quadras de esporte e terreno irregular.

Consigo, numa sacola de algodão simples e espaçosa, carregava uma taça embrulhada em um pano de prato, um envelope com penas que provavelmente pertenciam a pássaros transmissores de doenças, uma faca, três velas, seu potinho de folhas de louro, uma garrafa de água e uma panela velha que tinha pego da avó, que a teria jogado fora. Não saíra com tudo isso na frente da mãe, é claro. Tinha seus truques.

Não conseguia fazer rituais em casa, com a mãe por perto. Lá estava, então, casualmente arrumada e maquiada, numa praça vazia às nove da noite. Os arredores não eram particularmente perigosos e, de qualquer forma, devia sentir que contava com a proteção dos deuses. Além disso, a praça não estava realmente vazia, como logo notou.

Apoiados nas traves de um gol, à distância, 4 adolescentes riam e fumavam; provavelmente bebiam também. Julgou-os, mas apenas mentalmente, e voltou a atenção para as próprias questões. Seguiu para seu lugarzinho especial, o vão deixado por um dos grandes bancos circulares de concreto — capazes de comportar umas 15 pessoas cada, talvez.

Acomodou-se e buscou meditar, se conectar com a riquíssima natureza que a rodeava — em parte pinus, em parte grama bem aparada e mudas enfileiradas de árvores miúdas mesmo quando adultas, — para que assim pudesse dirigir-se a Ártemis. Sentia necessidade de proteção, após uma enfurecida discussão com um cristão reaça da sua escola via comentários do Facebook.

Em busca dessa proteção, portanto, iniciou: primeiro, o círculo mágico. Visualizou, mentalizou e traçou-o no ar com um graveto. Gostava de se posicionar dentro de círculos reais porque sentia que eles existiam especialmente para si, construídos prevendo o seu crescer em Ártemis. Sendo assim, parecia ingrato usar qualquer outro espaço.

Seguiu e, enfim, via os objetos dispostos corretamente, a taça cheia, percebia os barulhos juvenis ao fundo e a lanterna do celular se juntando à suave luz da lua crescente. Invocou-a, pediu proteção, finalizou. Ao longo do processo, queimou o louro e elevou a faca. Não se dava conta do quanto parecia louca. Os jovens no campinho, no entanto, sim. Espalhou as cinzas, bebeu a água, desfez o círculo mágico e deitou-se para respirar.

Quarenta minutos deviam ter passado. Ainda estava contemplando, sentindo o calor do ar e a proteção da deusa, quando seu celular tocou.

Há uns 100 metros, Fabiana chamava, deitada em sua cama de casal ao lado do marido, assistindo o jornal da noite.

Um pouco mais cedo, a filha saíra meio brusca, sem grandes explicações. Não as tinha pedido, na verdade, apenas se contentou em saber da comemoração do aniversário de uma amiga, coisa pequena, Jaqueline disse. Não conhecia muitas de suas amigas, essa não, pelo jeito.

Não implicou, só garantiu que ela ligaria para qualquer coisa que precisasse. De forma alguma queria desencorajá-la a interagir com seres humanos reais, de carne e osso, após tanto tempo da menina isolada em sua caverna. Às vezes se questionava se deveria ter conversado mais, se aproximado mais da filha conforme ela crescia. Não era particularmente afoita por conversas.

Contudo, no que ela saiu, uma ansiedade começou a se insinuar, de fininho entrou na cabeça da mulher. Besteira, dizia pra si mesma, deixe a menina se divertir. Contudo foi pensando, pensando, e afinal, que mal tinha dar uma ligadinha pra ver se estava tudo bem? Parabenizar a aniversariante. Não tinha decidido se era pura preocupação de mãe ou intuição de uma mentira.

— Oi filha, tudo certo aí?

Ela, na praça, revirou os olhos silenciosamente.

— Sim, mãe. Tudo certo.

Num tom querido, que contrastava a resposta que acabara de receber, continuou:

— Que bom, meu anjo. Queria só ter certeza de que você está bem. Como está a festa?

Odiava mentir, mas era um mal necessário. Ou ao menos ela a considerava um mal necessário, talvez fosse apenas sua antipatia adolescente em ação.

— Tá legal, sei lá, tranquila. Pedimos pizza. Não vou demorar muito pra voltar, talvez uma hora ou sei lá.

Ela ia passar uma hora sentada na praça pra passar credibilidade, no caso.

— Tudo bem. E que tal você me passar pra sua amiga, pra eu dar parabéns pra ela?

Congelou.

— Ai, mãe, não precisa, né? Deixa que eu falo por você!

— Que nada, só quero ser simpática. Você nunca me apresenta seus amigos!

Suspirou. Precisava de tempo para pensar, para dar um jeito.

— Tá. Eu já te retorno, que tal? Ela tá no banheiro.

— Está bem, só lembre, viu?

— Sim, sim.

— Beijinhos da mãe.

— Tchau.

Estava tensa e não sabia o que fazer agora. Não retornar e dizer que a bateria acabou quando chegasse em casa? Se um dia quisesse repetir a façanha, a mãe de jeito nenhum deixaria com tanta facilidade. Costumava fazer rituais à tarde, depois da escola e antes dos pais voltarem para casa. Era o horário em que saía, também, sozinha. Eles não sabiam nada sobre.

Quase se arrependeu de ter teimado em fazer aquele ritual sob a luz do luar. Tinha sido tudo tão lindo, no entanto… Chegou a sentir a presença da deusa. Tentou desanuviar a mente, afinal tinha que fazê-lo. Olhou ao redor, então, e lembrou que não estava sozinha.

Era uma solução, talvez, pedir ajuda. Só pedia ajuda aos deuses. Respirou, levantou e bateu a grama e terra grudadas na sua roupa; respirou de novo, prestando atenção no ar que entrava, no ar que saia. Não tinha nem certeza de como ia fazer isso, mas era um caso de vida ou morte. Deixou as coisas onde estavam, mesmo, sabia que ninguém ia pegar, e começou a andar.

Tomou consciência, de forma súbita e desagradável, de que tinha sido notada. Respirou e ignorou os pensamentos intrusivos que a golpeavam a cada passo. Tentou, tentou mesmo se tranquilizar, mas não adiantou quase nada. Na frente dos oito olhos vermelhos e confusos, gaguejou tanto que sua fala se tornou ininteligível.

A voz quase não saiu da segunda vez que tentou falar, os músculos tensos, a falta de ar.

Um deles, uma menina de cabelos ondulados-quase-cacheados curtos, exclamou:

— Ih caralho, será que ela tá possuída?

E, depois do susto, Jaqueline só conseguiu rir, de levinho porque era naturalmente quieta. Riu porque a achou boba e porque gostava de estar em posição de achar os outros bobos. Se sentia bem em saber que só ela naquele bairro inteiro dominava — ou achava que dominava — a arte da bruxaria. Floquinho de neve especial, eu diria.

— Eu só preciso de uma mãozinha. Não tem nada a ver com fantasmas.

Falou baixo, mas falou. E teve que repetir porque eles não entenderam, então da segunda vez excluiu a piadinha.

— A minha mãe acha que eu tô com amigos meus, numa festa de aniversário de uma menina. Queria… Ah, acho que se não for problema… Se uma de vocês pudesse falar com ela fingindo ser minha amiga aniversariante, fingindo que me conhece, enfim.

Do quarteto, três eram meninas, porém ninguém respondeu. O quarto, um rapaz loiro — também um morador do Ártemis, porém de outro bloco —, ela já conhecia de vista, notou.

— Meu nome é Jaqueline, prazer — complementou.

Por mais alguns segundos, só os sons da cidade se faziam ouvir. Eles a encaravam confusos e se encaravam também. Então, começaram a rir descontrolodamente. Jaque foi lentamente entrando em desespero, de novo. Resolveu sentar, estar de pé a fazia se sentir exposta.

Aos poucos foram parando e, num tom leve e bem humorado uma delas disse:

— Pô, claro, pode deixar que eu falo. Eu sou a Maria!

Sentiu alívio, mesmo que talvez não devesse. Recomendou que ela só tentasse ser sucinta e, finalmente, retornou a ligação. Tudo se deu em alguns minutos, entretanto era definitivamente tempo demais para Maria ter passado no banheiro.


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Notas finais do capítulo

Me ajudando a ser ajudada: que tal deixar um comentário? Às vezes nem precisa ser muito substancial. Sua presença já é revigorante!



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