Quando os Lobos Cantam escrita por Ladylake


Capítulo 31
O Gene Perfeito


Notas iniciais do capítulo

Boa Leitura~



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Zona Do Lago Moraine, Montanhas Altas, 2 anos antes



— Nanuk, cuidado!

Era primavera nas montanhas altas e com a estação veio o tempo morno e os treinos intensivos. O Husky desvia-se do soco de Luckyan, graças ao grito de Saaya vindo da plateia, e afasta-se para recuperar algum fôlego. O Alfa olha para a Beta com um ar zangado e contorce os punhos, para os aquecer.

— Não estás a ajudáloSaaya! – Grita ele. – Se ele não aprender a lutar, a culpa vai ser tua.

Saaya recompõe-se no seu sítio, desconfortável com o método de luta de Luckyan.

— Ele é só um miúdo... – Sussurra Aslam, em pé de braços cruzados.

— "...E ele está a treinálo como se fosse um gladiador." – Bear termina.

Os três lobos olham com alguma pena para Nanuk, que se vai desviando à rasca dos movimentos do Alfa. Rosnes, pedaços de terra e pingas de suor voam na pequena arena improvisada.

Nanuk tenta desferir um soco, mas assim que estende o braço, percebe que foi má ideia. Luckyan agarra-o pelo antebraço e torce-o, obrigando Nanuk a encostar as costas a ele. O Husky geme de dor com o braço ainda do avesso e engole em seco, quando sente os dedos das mãos de Luckyan passearem-lhe pelo pescoço.

— És lento e previsível. – Sussurra.

— E tu és convencido e arrogante.

Num movimento rápido, Nanuk pisa-o e morde-lhe a mão para se soltar. O Alfa grita asneiras e agarra-se à lateral da mão banhada em sangue, na tentativa de estancar a ferida.

— Nanuk! – Ele grita de dores, mas o jovem de vinte e um anos ainda tem mais uma na manga.

Assim que Luckyan vira o rosto para ele, Nanuk lança um punhado de terra em direção aos olhos dele. O Alfa fica cego e esfrega os dedos sangrentos na vista empoeirada.

— Ah! – Diz Aslam. – Aquela fui eu que lhe ensinei.

O Husky aproxima-se de Luckyan, ainda cego e diz:

— Estás velho, Luckyan. Trinta e quatro anos? Lutas como o meu avô. – Ele pausa. – Se eu tivesse um. – Nanuk agacha-se sobre ele e cospe as palavras num tom rancoroso. – Mais vale reformares—te e a alcateia ser minha.

Assim que Nanuk termina, Luckyan acerta-lhe com o topo da cabeça no queixo e segura-lhe o rosto desorientado, para dar a cabeçada final. Saaya levanta-se do chão e corre até ao lobo branco e preto, antes que Luckyan o mate, sem querer. Nanuk cambaleia, mas Saaya acolhe-o nos braços dela, no momento em que ele perde os sentidos.





******

 

 

—Ele é só um miúdo!

— Ele precisa de saber lutar!

— Tu quase que o mataste, Luckyan!

 

Horas depois, Nanuk acorda com os gritos de uma discussão. Os olhos azuis marinho abrem com alguma dificuldade, mas rapidamente se apercebe de onde está. O corpo dele tenta elevar-se um pouco do colchão duro e as tonturas invadem-no como uma descarga de adrenalina.

Mesmo sem forças, Nanuk caminha até à cortina que cobre o quarto e abre-a, deparando-se assim com Saaya e Luckyan a discutirem. Ambos cessam fogo, quando o vêm encostado à parede.

— Hey... – Saúda Saaya com uma voz carinhosa. – Estás bem? –Nanuk assente. – Ele não é meu filho e eu tenho mais espírito maternal do que tu.

— Ele também não é meu filho. – Retorque Luckyan, franzindo a sobrancelha e cerrando o maxilar. O tom grotesco e rude torce o coração do jovem, de cabeça baixa e punho cerrado.

— Mas já que lhe retiraste o pai, deverias de agir como um!

A gruta fica calada quando Saaya decide tocar na ferida. Uma ferida com quase duas décadas de sofrimento e penitência. O Alfa e o Husky trocam curtos e acanhados olhares, mas nenhum deles tem coragem de encarar o outro diretamente nos olhos. Luckyan sai, depois de um suspiro. Saaya ainda dá um último olhar ao jovem lobo, antes de seguir o Alfa para dentro outra vez. Nanuk passa as mãos pela cara e pelo cabelo preto, antes de focar a visão na noite lá fora.

"E se eu apenas me fosse embora?"







 

Ir embora. É exatamente isso que Nour quer, neste momento. Transformar-se e abocanhar o pescoço dos soldados que a detêm. Que a impedem de sair. Rodeada por militares, a "Loba Preta" é escoltada dos balneários até outro sítio, como um animal perigoso a trocar de jaula. Um breve e curto olhar por cima do ombro, revela Montgomery a escoltar-lhe as costas. Os olhos verdes dela chocam com os castanhos do humano, e este faz-lhe uma cara séria e cerrada, de poucos amigos. Os passos pesados e barulhentos deles não têm nada de similar com os dela, que são leves e afogados pelo o tilintar das correntes de aço maciço. Eles param de caminhar e o soldado mais adiante bate à porta, antes de entrar.

— Entra. – Diz Montgomery para Nour, empurrando-a. Os pés dela tentam colar-se ao chão, mas é impossível.

Nour olha em volta. É uma enorme divisão com paredes brancas lotado com material médico e científico. Macas estão espalhadas pelos quatro cantos e frascos e provetas decoram as bancadas brancas de hospital. É uma enfermaria. No meio da sala, Raphael está de pé. Os olhos da loba e do velho encontram-se e permanecem assim focados um no outro, com uma expressão de desdenho. A tensão é palpável entre os dois. Ao lado dele, um homem mais jovem com uma bata branca recebe-a com um pequeno sorriso, aparentemente genuíno.

Nour trava os pés a pouco mais de um metro de distância de Raphael, mas desvia os olhos para examinar o suposto médico que o acompanha. Ela tenta mexer-se, mas Montgomery e o outro soldado seguram-na firme. Curtos e breves segundos assim se passam, até que o médico decide quebrar o silêncio:

— Fico contente de te ver viva. – Sorri. – É sinal de que o meu antídoto funcionou. Estávamos preocupados que tivesse sido tarde de mais.

Nour encara-o de cima abaixo e faz o mesmo logo a seguir com o velho. Raphael lança-lhe um olhar superior, que a obriga a baixar a cabeça.

— Falaram contigo. Responde!

Montgomery atiça-a, mas a jovem de vinte anos mal reage.

— O que vão fazer comigo? – Balbucia.

— Oh não te preocupes. São apenas alguns exames. – Tranquiliza o médico. – O Senhor pode ir. Em duas horas já deverei ter alguns resultados.

Raphael assente com a cabeça e caminha para a porta, mas não antes de dar um olhar furtivo para a Nour. O velhote sai, mas Montgomery e outro soldado permanecem na porta, de guarda.

— Podes sentar-te numa das camas? Preciso de te retirar sangue.

Nour não se mexe. O médico solta um suspiro.

— Por favor. – Pede. – Eu não estou aqui para te magoar. Sou apenas um médico cientista.

— Quem é você? – Nour questiona desconfiada. – Tem sotaque.

— Chamo-me Dimitri e sou Russo.

Nour olha outra vez em volta. Pequenos frascos com um líquido esbranquiçado saltam-lhe à vista numa bancada. Estão fechados e parecem ser o antídoto que ele falara antes. Ela volta a encarar o médico. É loiro, cabelo comprido que lhe chega aos ombros e olhos claros. Parece ser mais ou menos da idade de Luckyan.

— Porque é que trabalha com esta gente?

— Porque não fazemos assim? Tens direito a uma pergunta sempre que me deixares fazer um exame. – Dimitri cruza os braços. – Tenho bastantes, então deves de conseguir algumas respostas às tuas perguntas.

Nour demora um pouco a responder. Parece pensar. O russo olha para ela com um leve sorriso simpático nos lábios, esperando por uma resposta positiva do lado dela. Segundos depois, Nour acaba por aceitar. Dimitri aproxima-se e insere a agulha no braço dela. A jovem desvia o olhar, desconfortável, e ele ri.

— Não respondeu à minha pergunta. Porque é que trabalha com eles?

— Por causa de um favor. – Ele responde. – Estás magra demais. Não vou poder tirar-te o sangue que queria.

— Um favor? – Nour volta a perguntar. – Que favor?

— Eu disse que te respondia, não que dialogasse sobre – Dimitri levanta-se e vai a um dos armários buscar algo. – Morango ou maçã?

O médico abana dois sumos concentrados nas mãos, de um jeito simpático. Nour levanta uma sobrancelha e olha para ele, tentando perceber se é genuíno ou falsidade. Ela aponta para a garrafa esverdeada, escolhendo assim o de maçã e ele entrega-lhe nas mãos. Dimitri observa-a, desconfiada do sumo estranho com uma consistência esquisita no fundo de plástico.

— Bebe – diz. – Vais sentir o estômago cheio, como se tivesses comido uma refeição.

Nour assim faz. O sumo é pesado, mas fresco, e só ela sabe o quão bom é sentir o estômago cheio de novo. Ela estava faminta e cheia de sede há três dias. A barriga dela parecera um mar agitado numa tempestade de inverno, mas agora, o mar estava calmo e sereno.





******

 

 

 

Este lugar..., este lugar parece uma prisão. Há edifícios e guardas a vigiarem todas as entradas e saídas. Cada centímetro, cada canto e cada porta. Dizem que não há saída. Dizem que quando aqui se entra, nunca mais se sai, pelo menos não livre. Pelo menos, não inteiro.

Isto fica na terra de ninguém. Não há nada à volta. Apenas o arame farpado para te cortar a alma e a esperança. Esperança de alguma vez voltar a ser alguma coisa ou ver algo, para além destas frias celas de pedra escura.

Estás faminto. O teu estômago torce-se de fome e os soldados comem à tua frente, somente para provocar. Para ti, a fruta mais simples tornar-se-ia o manjar dos deuses. O sumo frutado da mesma escorreria pelos teus dedos e comê—los-ias, caso arrancá—los não doesse tanto.

Todos os dias eu pergunto-me a mim próprio, se estarei morto. Todos os dias eu olho para aquela arena, e penso se será a minha última luta. A minha última dentada. A minha última vítima. É o meu destino, ser um vencedor? Ou o meu irrevogável suspiro irá escapar-me da boca, e morrerei sem sequer dar por isso?





******

 

 

 

— Eu vou-te dizer o mesmo que disse a ele. – O médico aponta para Raphael. – Eu não faço ideia de como estás de pé. Eu não faço ideia como é que andas, respiras ou de como ainda tens força para estrangular um soldado. Há algo de diferente no teu sangue.

— Eu tenho o que a minha espécie chama de "Gene Perfeito" – Nour responde, num tom baixo e despachado. – O tom dos meus olhos é diferente dos da grande maioria.

— Nós sabemos. Mas não é só isso.

— Há algo mais. – Finaliza Raphael num tom seco e rude. – O que é?

Ela não responde. Os lábios dela não se movem um milímetro.

— Não precisas de responder. O Dimitri descobre. – O velho faz um gesto. – Levem-na para as celas, onde estão os outros. Amanhã ela começa.

— Começo? – Nour não entende. – Vou começar o quê?

Raphael sorri.





******

 

 

 

Ignis agarra-se ao estômago, para que este não lhe saia também pela boca como saíra o jantar. De joelhos no chão de terra montanhosa, a jovem de cabelo cor de fogo vomita o que tem e o que não tem. Os movimentos repulsivos contorcem-lhe o corpo e o suor escorre-lhe pela testa, descendo até à têmpora. Gemidos de lamurio e mau estar saem-lhe pela boca, como se implorasse ao próprio corpo por uma pausa.

— A vomitar de novo?

Ignis assusta-se com uns olhos amarelos luminosos no meio da bruma da noite e acende a lanterna. Saaya cobre a vista, quando a luz intensa amarelada a encadeia e solta um resmungo.

— Os meus olhos! – rosna, encadeada. – Havia alguma necessidade disso?

— Porque é que andas com esses olhos de um lado para o outro? – riposta Ignis, desviando a luz da lanterna para outro sítio. – Eu também tenho olhos sobrenaturais e não ando por aí de noite a assustar os outros.

— Porque é que estás a vomitar, outra vez?

Saaya completamente ignora-a e faz-se silêncio por uns segundos. Ignis demora a responder.

— Não sei – limpa o suor da testa. – Acho que a carne com ervas do Aslam não me caiu bem no estômago.

Ignis dá uma pequena risada para tranquilizar, sem saber que Saaya já a topara desde o momento em que a conhecera.

— A carna com ervas, hum? – Entoa. Ignis pisca os olhos, sem entender. – De quanto tempo estás?

Ignis volta a piscar os olhos, mas desta vez muito mais rápido. A jovem de vinte e oito anos levanta-se e começa a atar o longo cabelo ruivo, enquanto pensa numa resposta para lhe dar.

— Ignis.

— Quase dois meses.

As palavras em tom sério e despachado confirmam aquilo que Saaya suspeitara. A causa dos vómitos e repulsas de Ignis não era nenhuma doença ou virose, mas sim um bebé. Ela baixa os braços e o cabelo cor de cobre descai um pouco nos seus ombros finos e brancos. O olhar dela, esse, está na clareira coberta pelo manto noturno.

— Por favor, não lhe digas nada. – Ela pede, olhando agora sim para Saaya, com um ar bastante sério. – Eu não sei qual vai ser a reação do Nanuk. Ele não parece ser do tipo parental.

Saaya suspira.

— Como queiras.





******

 

 

 

Era como se o tempo não tivesse passado por aqui. O hediondo cheiro a mofo centenário entranhado nas paredes de pedra escura, é de fazer suplicar por ar fresco. É tão escuro, que mesmo uma palma da mão diante dos nossos olhos, não ficava nítida. As escadas que dão acesso às celas, aparentam não ter fim. Mas têm. Vão dar ao teu pior pesadelo.

Luz, essa, muito pouca. Apenas pequenas lâmpadas de poucos em poucos metros iluminam o chão que pisas. Água vinda dos canos pinga mais de mil vezes e parece encher um balde todos os dias. O tórrido e abrasador ar que respiras, faz-te pensar numa morte lenta e sufocante. Estou aqui há cinco minutos e o suor já me escorre pela testa. Sinto que todos os esporos do meu corpo se abriram e a minha boca já secou. Não há saliva para engolir. Apenas o medo.

— Coloca-a na cela do fundo. As outras estão cheias. – Nour ouve o guarda dizer. Montgomery puxa-a.

— Vem. Espero que gostes da tua nova casa.

Nour olha em volta. Celas com barras de ferro, separam-na dos outros prisioneiros, amontoados uns nos outros. Mulheres, jovens que assemelham ter a idade dela e idosos, passam-lhe diante dos olhos. Cada cela, cada novo grupo. Ela mal lhes vê as feições, de tão sujos que estão.

De rompante, uma mão estica-se para fora e agarra-lhe o braço, embora sem grande força. Nour espevita-se e olha para o lado, onde um velhote com bastante idade tenta dizer alguma coisa.

— Por favor... – Balbucia. – Foge...

A jovem paralisa, de olhos arregalados. Se a doença tivesse um aspeto, seria aquele pobre homem.

— Tira a mão dela, antes que eu te a corte! – De arma empunhada, Montgomery ameaça o velhote, que a larga imediatamente. – Hoje, não há jantar para ti.

Com um puxão, Nour é arrastada, praticamente de rojo. O soldado para por fim e pega na chave para abrir a cela. Lá de dentro, algumas pessoas começam-se a aproximar, na esperança de saírem, mas Montgomery enxota-as.

— Entra. – Ordena. – Eu dir-te-ia para fazeres amigos, mas não o faças. Amanhã podem já cá não estar.

Dito isto, ele fecha a cela. O baque do ferro da porta a bater no resto da estrutura faz um eco bastante alto. Montgomery vai embora e Nour olha para os da sua espécie com uma cara de dó.

Eles tentam tocar-me, como se eu fosse valiosa. Como se eu fosse a salvação deles. A sua luz ao fundo túnel.

— Por favor, não. – Imploro, desconfortável com as carícias e toques no cabelo. – Eu disse que não!

Os meus olhos brilham num vermelho incandescente. Foi apenas por um segundo e sinto-me esgotada. Porque é que me sinto tão fraca aqui? É como se não me conseguisse transformar.

 

­— Ora, ora, ora...se não é uma "Gene Perfeito".

 

 

Nour vira o rosto. Uma voz grave, profunda e masculina entoa, chamando-a a atenção. Um homem vestido com um capuz, esconde metade do rosto, mas a barba escura e o ar acabado é bem visível.

— E tu és? – Ela pergunta. O homem apenas sorri e faz um gesto com a mão.

Do canto escuro, alguém se levanta. Nour começa a rosnar, mas isso apenas duraria breves segundos. Os seus olhos arregalam-se e o coração desprende-se do peito e cai no chão, desfazendo-se assim em mil pedaços. Falta-lhe o ar, de repente. Lágrimas enchem-lhe os olhos. O lábio inferior começa a tremer e uma lágrima descola, assim que a luz revela quem ela acreditava nunca mais poder ver. Num sussurro de choro, Nour murmura:

— Soren? 


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado! Até ao próximo capitulo :3



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