Quando os Lobos Cantam escrita por Ladylake


Capítulo 17
Monstros


Notas iniciais do capítulo

Voltei ♥
Espero que gostem ♥



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Long Hill, New Jersey, EUA, 1967, Inverno

Eu estava lá. Eu lembro-me. Estava uma noite cerrada e a chuva torrencial não deixava ver um palmo á nossa frente. Tínhamos acabado de sair da casa dos meus avós, para passar o fim-de-semana de Natal e já estava um pouco tarde. O relógio do velho Chevrolet do meu pai marcava 23:07 num vermelho vivo.

Lembro-me de estar assustado com a chuva e as árvores da berma da estrada faziam formas assustadoras. Mesmo para um jovem de 17 anos. Long Hill sempre foi e sempre será um lugar estranho.

Casey não se calava um minuto. A minha irmã tinha recebido o seu primeiro kit de maquilhagem a sério e parecia que tinha ganho a lotaria. Como é que uma rapariga de 13 anos poderia ser tão irritante?

—Gabriel! – ela chama-me – diz "olá" Mrs. Carrot!

Desvio o olhar do vidro embaciado e deparo-me com o coelho velho, sujo e sem um olho de peluche da minha irmã. Aquela coisa está a centímetros dos meus olhos.

— Eu não vou dizer "olá" – resmungo.

— Porquê? – pergunta.

— Porque não.

Casey não gosta da minha resposta e começa a esfregar o Mrs. Carrot na minha cara.

— Casey, podes parar de importunar o teu irmão? – a minha mãe questiona do banco do pendura – o vosso pai precisa de se concentrar na estrada.

— Hey, Casey – eu sorrio – queres ver o Mrs. Carrot a fazer uma coisa super fixe?

Sem pensar duas vezes, eu arranco a porcaria de coelho da mão dela e mando-o pela janela fora. A minha irmã dá um grito quando vê o coelho catapultar vezes sem conta na estrada de alcatrão.

— Já não estás velha demais para ele? – pergunto retórico.

— Gabriel!! –gritam os meus pais, enquanto Casey chora os pulmões.

— Raphael, querido, para o carro. – ordena a minha mãe. O meu pai assim faz – vai buscar o coelho, a-go-ra.

De expressão carrancuda e contrariado, saio do carro. Estamos no meio do nada. A reserva selvagem "Great Swamp" é o que nos rodeia. Está escuro como breu. Como é que é suposto eu ver um coelho no meio do nada?

Eu já estava encharcado. As grossas pingas de água escorriam pelo meu rosto e juntavam-se no queixo, fazendo assim um pequeno rio.

Chuto folhas e fuço o chão á procura do coelho. Nada, e, no entanto, não mandei com muita força.

A minha espinha arrepia-se quando vejo algo na colina. Falta-me o ar. Alguma coisa encara-me, eu consigo ver. Dois olhos amarelos vivos.

— P-Pai... -gaguejo.

O relâmpago ilumina tudo por um segundo. Aquela "coisa" é um lobo do tamanho de um pónei e carrega o coelho da irmã no meio dos dentes.

Um rosnar faz-me querer vomitar o coração, que palpita de forma louca dentro do meu peito. Num salto, a besta cavalga em direção a mim, mas eu não mexo um músculo. Estou congelado. É como ver a morte a vir de frente. As patas batiam no chão, estremecendo-o.

Aquela coisa não tinha pupilas, não tinha controlo ou sanidade. Aquela coisa não tinha coração.

 

 

Nanuk precisava de ajuda. Novamente. Com o braço dele á volta dos ombros, Nour arrastava o irmão até á zona mais a sul da Vila: As Ruínas.

Olhos curiosos encaravam os dois irmãos, mas não saíam das sombras. Apenas observavam.

— Eles vão-te matar por me estares a ajudar – sussurra Nanuk – o pessoal aqui não perdoa traidores.

— Cala-te e continua a andar.

Nour conduze-o para uma casa caída e senta o irmão num dos cantos, mais escondido. Nanuk geme.

—Tenta não fazer barulho – aconselha – vou ver se consigo arranjar qualquer coisa para comeres.

— É perda de tempo – devolve – não há nada aqui. O que os lobos comem são os restos que os soldados têm a gentileza de dar.

— Então eu vou roubar.

Nour prepara-se para ir embora, quando Nanuk começa a dar uma pequena gargalhada.

— Sempre soube que eras uma "Renegada" – ele sorri. Os seus dentes estão carregados de sangue – podes ter crescido na Vila, mas o que te corre nas veias, tu não podes negar.

Nour não reage.

— Nunca liguei ao que a Vila nos chamava. "Renegados" ou não, o que importava é que eu comia grandes refeições graças ao vosso esforço.

— Nós trabalhávamos duro para matar a nossa fome... - resmunga ela.

— Trabalha inteligentemente, não arduamente – riposta Nanuk – onde é que ser boa e fazer sempre o bem te levou na vida? – Nour cerra os dentes, mas não lhe responde – tu conheces a lenda...vá-la.

— "Todos nós temos dois lobos dentro de nós. Um bom e um mau. Todos os dias eles lutam um contra o outro..., mas nós é que decidimos quem vence".

Nanuk sorri. Nour revira os olhos e caminha porta fora. No meio das ruas, ela pensa: Como eu posso gostar tanto de alguém tão vazio? Sem moralidade. Alguém tão insensível.

Ela suspira de forma pesada e olha em frente. Membros da Vila estão diante dela com cara de poucos amigos. Nour olha para trás. Um outro grupo está a garantir a cobertura de todas as saídas possíveis. Ela está cercada.

Uma mulher mais velha sai do meio da multidão. Nour lembra-se dela. Costumava trabalhar nos campos.

— Tira o Husky fora daqui. Vocês não são bem-vindos – avisa. Nour levanta uma sobrancelha.

— E se eu não o fizer? – devolve de forma descontraída e com as mãos nos bolsos das calças. Ruídos de multidão apoiante começam a ecoar como fundo.

 

— "Mata-a!"

— "Acaba com ela Miko!"

 

— Eu acho que não tens hipóteses – Miko sorri.

—E quem manda aqui? És tu?

 

— Não, sou eu.

 

Toda a gente se cala. A multidão abre no meio e deixa passar quem agora toma a coroa de rei. Nour reconhece a voz.

— Seth... - ela sussurra com um sorriso. O menino tinha-se tornado homem.

 

 

****

 

 

Saaya acorda. A loba tom de chocolate estica as pernas e dá um bocejo, antes de depositar um olhar em Aslam, que ainda dorme pacificamente na cama.

Ela tapa-o, puxando o cobertor com a boca e encosta o focinho no irmão que a vida lhe emprestou. Um irmão mais novo que ela nunca teve.

Ela muda de forma e desce as escadas à procura de Luckyan, mas apenas encontra Miroslav a preparar o almoço.

— Onde está o Luckyan? – pergunta. Miro está de costas a cortar legumes – Miro!

O velhote para de cortar e suspira fundo.

— Foi-se embora – sussurra. Saaya demora a interiorizar.

— Embora? Embora como?

— Arrancou de manhã cedo e partiu. O Bear foi com ele.

Saaya arregala os olhos. Passos quase inaudíveis surgem atrás dela. Aslam está levantado e com as mãos no peitoral coberto de ligaduras.

Ela olha para o "lobo branco" com os olhos carregados de lágrimas. Raiva e tristeza torcem-na de dentro para fora.

— O que aconteceu? – pergunta Aslam.

— Ele foi atrás dela sozinho... - ela chora – Miroslav, nós precisamos de ir para o aeroporto agora!

— Isso não vai acontecer – responde o antigo médico da Segunda Guerra Mundial – será possível que eu tenha que vos lembrar que vocês não têm identidade humana? Vocês põem um pé fora desta casa e é uma questão de tempo até serem descobertos!

— Eu vou a pé então!

Saaya sai disparada pela porta das traseiras, e, num momento de raiva, destrói tudo á volta. Vasos de flores e cadeiras de jardim voam à passagem dela.

Ela não tem mais forças. De joelhos no chão e com o coração apertado e aflito, ela desiste. Um grito humano combinado com um rosnar ecoa quando ela liberta a sua raiva.

Aslam passa pela destruição, ainda fraco, e pousa a palma da mão no ombro dela, assim que se aproxima. Saaya soluça, sem entender o porquê.

— Porque é que ele nos abandonou?! – chora – Porquê Aslam?! Porquê?!

Infelizmente, "o lobo branco" não tem uma resposta. Mas respostas é o que Seth também procura. No topo de um telhado que mal se mantém de pé, os dois lobos aproveitam o raro momento de paz.

— Onde tens andado este tempo todo? – pergunta Seth. Nour encara o horizonte.

A brisa fresca de quase verão acaricia-lhe o rosto. O cabelo negro dela dança, livre.

— Também me pergunto o mesmo Seth...- acaba por responder – o meu corpo está aqui, ao teu lado, mas a minha alma anda por aí algures, à espera que eu a encontre de novo.

Seth sorri.

— Já não somos os mesmos, pois não?

Nour nega com a cabeça. O olhar dela de repente fica mais triste.

— Não. Já não somos... – suspira – sabes, eu encontrei pessoas...

— Humanos?

— Lobos. Cada um com a sua história e cada um me tocou de forma diferente. Uns mais que outros...

Seth levanta-se e sacode-se da poeira, antes de dizer:

— Encontra outro sítio para esconderes o Husky – começa – a ti, eu conseguiria defender-te. Ao Nanuk, não. E sinceramente, eu acho que ele não sobrevive a mais nenhuma sova.

Seth caminha dali para fora, dando as costas para a "loba preta". Ela levanta-se rapidamente e encara o velho amigo a seguir o seu caminho.

— Então e a Peach?!

Seth para de caminhar. Um lento olhar por cima do ombro revela o quão pesado esse nome se tornou para ele.

— O que tem a Peach...? – pergunta vazio. Nour aproxima-se.

—Eu sei o quão tu a amavas... - ela começa – e eu amo o Nanuk, ele é meu irmão. Então por favor, Seth! – ela chora – Eu já perdi o Soren... eu não quero perder mais ninguém...

Ambos se encaram. Esta guerra mudou tudo e toda a gente, mas Nour ainda tem chance que o carinhoso, sensível e brincalhão Seth ainda lá esteja, algures, à espera que alguém o desenterre outra vez.

O sol estava quase a pôr-se, quando os dois lobos chegaram a um entendimento. Escondido no meio dos destroços e nos blocos de pedra, Nanuk tremia com frio, mas com esperança que a irmã voltasse.

O rosto dele alivia quando a vê. Nour carrega lenha, algum pão e fruta nos braços.

— Demoraste – resmunga – pensava que ia morrer aqui.

— Desculpa – ela começa – encontrei um velho amigo...

Nanuk carrega as sobrancelhas quando Seth entra. Carregado com uma manta e o que parece ser água, o "lobo tricolor" não demonstra muita felicidade assim que o vê.

— O que ele está aqui a fazer? – pergunta Nanuk.

— Ele, está aqui para te ajudar – responde Nour com um tom repreensivo.

— Eu não quero a ajuda dele – devolve.

— Ótimo, porque eu não estou a fazer isto por ti – Seth riposta – estou a fazer isto por ela. Porque ela me pediu. Por mim, morrerias e a Vila no minuto a seguir dava-te de comer aos corvos.

Nanuk resmunga algo com um rosno. Rapidamente Nour prepara uma fogueira e deixa o cantinho preparado para ele passar a noite.

— Obrigada Seth. Não vou esquecer – agradece ela. Seth transforma-se num segundo e desaparece no pôr do sol.

Nour encara o irmão, sentado e tapado com uma manta de linho à beira da fogueira e comer pão com pão.

— O que foi?

— Ficas bem? – pergunta ela. Nanuk assente.

— É preciso um pouco mais para me deitarem abaixo – ele sorri fraco.

— Foi o que disseste da última vez, e dei por ti com a garganta rasgada e à beira da morte.

Ele para de mastigar e suspira fundo.

— Eu preciso que vás, está bem? – diz calmo – eu preciso que olhes pela Ignis. Toma conta dela, da maneira que eu não consegui cuidar de ti...

O som de Nour a mudar de forma chama a atenção do Husky, que olha em frente. A irmã, na sua versão lupina, olha para ele com um olhar carinhoso e ternurento. O focinho negro dela encosta na bochecha de Nanuk.

— "Estás aqui agora".

 

 

****

 

 

Nour tinha regressado à Fortaleza já o sol tinha-se posto. Está escuro e o vazio no estômago fá-la voltar para a boca do lobo. Piada certa no momento certo?

Apesar de ser quase Verão, Nour arrepia-se nos corredores de pedra. Altas vozes e gargalhadas chamam-na à atenção. Um grupo de soldados parece estar a regressar do jantar em conjunto e calam-se assim que notam a presença dela.

Ela desvia-se para que eles passem. Trocas de olhares são notórias e impossíveis de realizar. Ívar está no grupo.

— É a segunda porta, à esquerda – encaminha ele. Nour dá um leve aceno com a cabeça.

Nour aproximas da porta. Supostamente, Raphael estará lá dentro à espera dela. A "loba preta" vai para rodar a maçaneta, mas trava. Ela está nervosa e sem saber o que esperar. Depois de um longo e pesado suspiro, ela abre.

É uma mesa comprida, arranjada e com comida suficiente para duas pessoas. Talvez mais. Raphael está numa ponta e o prato designado a Nour está no lado oposto.

— Estás atrasada – ele começa – sou sincero, pensei que não viesses.

— A fome ganhou ao senso comum – responde ela, sentando-se.

Um silêncio tenso reina naquela sala por uns segundos. Nour não baixa a guarda. Raphael ataca os aperitivos.

— Serve-te – diz.

— Porque é que eu não estou morta? – pergunta ela, mudando completamente o assunto – você poderia simplesmente sacar da arma e dar-me um tiro, não me alimentar...dar-me uma sova como fez ao Nanuk... - Raphael range os dentes – e, no entanto, aqui estou eu, a comer o manjar dos deuses enquanto o meu povo lá fora mata-se por um bocado de pão duro.

— Estás-te a queixar? – pergunta depois de bater com o copo de vinho na mesa.

— Não, mas não pense que eu acreditei na sua falsa bandeira branca – responde – você quer-me para alguma coisa, eu é que ainda não descobri o quê.

Raphael limpa a boca no guardado e parece refletir.

— Diz-me Nour … - ele começa – alguma vez viste a morte de perto?

— Muitas vezes, porquê?

— Em 40 anos de carreira na polícia, eu só vi a morte de perto uma vez – explica – e foi a morte da minha mulher e da minha filha.

Nour relaxa os músculos.

— O que aconteceu? – pergunta a "loba preta".

— Fomos atacados por um dos vossos…- sussurra – o meu filho teve em coma durante meses… e eu enterrei a minha filha de 13 anos e a minha mulher sozinho.

Nour cerra o maxilar. É uma história triste. Ela tira uma uva e mete à boca.

— Está à espera que eu tenha pena? – pergunta de modo insolente. O velho não gosta do tom.

—Vocês são monstros! -grita.

Nour sacode o serviço de loiça vazio ao chão e sobe para cima da mesa até Raphael. Com um chuto, o prato e o copo dele também voam.

— Oiça, eu não tenho nada a ver com isso – ela agacha-se – e esta Vila não tem nada a ver com o que se passou consigo. Eu nunca tinha morto ninguém, até o senhor aparecer. E agora sim… - os olhos dela tornam-se vermelhos – eu estou a sentir-me como um monstro, o monstro que você está a criar e o monstro que tem na sua cabeça. Estou faminta por dentro. 

Eles estão próximos. Nour pega numa perna de frango e trinca com vontade, mal mastigando. Um sorriso rasgado aparece nos seus lábios quando ela ouve o coração aceleradíssimo de Raphael.

— O seu coração bate como um tambor… e no entanto, a caçada ainda agora começou. Então tenha cuidado. Um passo em falso e você é meu. 

 

 


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Notas finais do capítulo

As cartas foram postas na mesa! E agora?

Até ao próximo ♥



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