Outono escrita por rumine


Capítulo 2
Chap I


Notas iniciais do capítulo

Demorei um pouco mais de um ano para conseguir retomar a escrita. Talvez por medo, talvez por sofrimento. Ainda não sei, mas espero que tenha sido uma boa espera. Aviso de antemão que a narrativa mudou, ainda não sei se ela continuará assim ou se alternará nos capítulos. Estou empolgada, sejam bonzinhos.



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Quando eu o conheci chovia. Chovia muito. Não só chovia, como fazia frio daqueles de sentir cortar a alma, o espírito partir em dois e uma parte voltar para o calor da casa. A chuva caía de forma intensa, e eu não parecia muito me importar com a tempestade exterior, porque a interna era muito mais barulhenta. Aquele dia era mais um entre tantos outros que eram contados de três em três, mas mesmo assim eram arrastados. Os piores dias duravam meses e os melhores pareciam segundos, essa dinâmica causava exaustão e talvez isso fosse percebido por qualquer transeunte que resolvesse se aventurar por aqueles lados. 

Eu morava bem no centro da cidade em um daqueles apartamentos antigos, e eu suspeitava um dia ele ter sido um prostíbulo barato, também não era muito longe do de um parque movimentado que as pessoas cruzavam todos os dias para chegar aos seus trabalhos, ou na volta para casa. Recomendo que imagine um central park menor e menos conservado. Era lá que eu estava na primeira vez que nos vimos. 

A vida não era muito amigável comigo e nem eu com ela, não era como se eu fosse amigável com alguém naquele tempo. Obviamente nem comigo. Os jogos cruéis aconteciam todos os dias, e aquele era mais um dia em que eu desistia de jogar para fugir da tempestade que parecia me perseguir. Às vezes parecia mais uma condição eterna. Então, nessa fuga eu resolvi ir para um lugar plausível a quem quer ficar em tranquilidade, nem me percebi caminhando na chuva, nem fiz questão de prestar atenção se o guarda-chuva que eu pegava era um daqueles quebrados ou não. 

A verdade é que eu só percebi onde estava quando as minhas pernas cansaram de apoiar o peso do meu corpo, e eu sequer havia notado que muito provavelmente já estava encarando o mesmo lago já havia uns quarenta minutos. Ao voltar a perceber meu corpo, cedi e sentei no banco mais próximo que eu pude ter noção, ainda sem desviar os olhos do lago que mais parecia um show de talentos de tanto que prestava a atenção nele. 

Ele estava lá. Bem ao lado. Talvez uma pessoa comum sentisse o espaço invadido por uma mulher doida que, absorta pelo mundo, sequer percebia as pessoas ao redor. Mas não ele. Não ele. Ele sequer se mexeu, parecia preservar o espaço que era pouco, ou estava com tanto frio que sequer queria sair do pouco calor que emanava do meu corpo. Não existia maneira de, no meu estado naquele tempo, perceber que ele existia bem ao meu lado. Mas ele estava lá. 

Meu cérebro parecia despertar para a existência de um corpo, aos poucos percebendo o cansaço, os membros, o peso dos cabelos, a frequência acelerada da respiração, o frio, a roupa molhada de chuva mesmo com o guarda-chuva. Eu ainda lembro da sensação de fechar os olhos e aspirar o cheiro de chuva que invadia minhas narinas milagrosamente desentupidas, e o ouvido ser capaz de perceber o som da chuva caindo no lago de forma torrencial, muito mais do que a interna. Eu silenciei o interior para ouvir o exterior, e definitivamente essa foi uma das melhores coisas que fiz porque quando eu o fiz, pude finalmente, como um sopro de vida, ouvir aquela voz. 

— Eric. - e só. Nada mais. Eu só senti a vibração do timbre, a rouquidão das notas vocais alcançando meus sentidos recém despertados, o aroma forte de alguém que eu sequer conhecia. Que também não parecia se incomodar de não conhecer quem sentava ao seu lado. 

— Rumi. - e só. A resposta era arrastada, rouca por consequências da vida, talvez excesso de cigarro, talvez excesso de substâncias, talvez excesso de desespero. 

O silêncio era cortante e ao mesmo tempo confortável. Necessitado e carinhoso. Mais parecia uma introdução somente para que não fôssemos dois estranhos sentados juntos em um banco molhado, em plena tempestade de um outono gélido demais. Então, finalmente resolvi desviar meu olhar do lago e pela primeira vez eu vi o que seria, presunçosamente, o triunfo e a queda de quem um dia fui e sou. 

Os olhos verdes eram profundos como aquele lago, e se a comparação também serve, tão movimentado quanto naquele dia de chuva. A expressão era séria, pesada, diria mórbida se minha memória ainda me permite, ainda que de alguma forma eu percebesse um quê de carinho. O corpo era esguio, alto demais, mas curvado de maneira que, provavelmente, perdia uns dez centímetros. Eu não sei dizer exatamente quanto tempo perdi olhando aqueles olhos, e também não sei dizer exatamente quando foi que meu rosto passou a ser inundado por algo quente que contrastava com o frio ao redor. Eu chorava, e nem percebia. 

— Gostaria de poder nos fotografar agora, a cena parece ser bem bonita pela lente de uma câmera. - era eu quem falava, e eu nem sei de qual maneira o som saía sem que fosse interrompido por soluços. Acontece que naquele caso a frase era em sofrimento dobrado. 

— Você está bem? - E foi a partir daquela pergunta não ofensiva, mas cuidadosa que me perdi. Nos perdemos. Ele talvez não tivesse ideia de que aquilo aconteceria, e que conversaríamos por aproximadamente três horas até que o frio fosse insuportável. 

O assunto era leve, soava como desabafo. Nunca tinha me visto em posição de ouvinte, mas incrivelmente aquela era uma posição confortável pra mim. Eu não me recordo exatamente dos assuntos, as pautas, as necessidades de fala. O que eu me lembro é que quando resolvemos nos despedir doeu. Doeu como se a realidade fosse amedrontadora demais. Como se ele fosse minha mais nova droga. 

Pedi o número dele, e ele disse que não tinha celular. Estranhei, era século vinte e um, bem mais de dois mil e tantos, e quem não tinha um celular. A chuva aumentou, mal podíamos nos ouvir, e em meio a um sorriso  deixei meu celular nas mãos dele  e corri para casa. Sem despedidas, sem até logo, sem abraços, sem perguntar ou pedir, ou agradecer.  Clichê, cinematográfico, teatral, inesperado. Tal qual minha história com ele.


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Notas finais do capítulo

Bom, espero que tenha sido do gosto de vocês. Por aqui aceitamos críticas construtivas, sejam bonzinhos.



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