Ponto de Ônibus escrita por Júlio Oliveira


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Mais uma das minhas experimentações. Espero que possa tirar algum proveito :)



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Eu vi você perdido. Sim, você mesmo. Estava no meio daquele mar de gente enquanto procurava uma forma de voltar para casa. Universos particulares inteiros colidindo uns com os outros como se nada ao redor existisse. Em suas mentes, apenas o “aqui e agora” persistia, mas o tempo seguia implacável. Quanto a você? Sua expressão deixava claro: estava atrasado para algo. Talvez uma reunião importante, um encontro ou uma simples saída com amigos. Eu não saberia dizer, afinal de contas, não posso te seguir. Na verdade, não posso seguir ninguém. Só fico lá, preso no mundo enquanto o universo inteiro me revolve.

De toda forma, você foi acolhido pelo meu teto de aço e aguardou de pé. Cinco minutos depois, lá estava o diabo metálico que chamam de ônibus. Você entrou nele junto de mais uma dezena de pessoas e desapareceu. Eu não sabia se te veria de novo, mas assim era minha vida: uma sequência interminável de “olás” e “tchaus”. Não olhe para mim com espanto ou pena; é como a vida é. Aceito isso de bom grado e sigo com minha missão estática, passiva e simplesmente observadora.

O dia prosseguiu com o de sempre: vi crianças brincando, jovens brigando e adultos sendo indiferentes uns com os outros. Vez ou outra apareciam idosos e, na mesma frequência, alguém os ajudava ou simplesmente ignorava sua existência. Eu até daria uma mãozinha para subirem no transporte, mas você sabe como é: não posso me mexer. Existo, mas não penso, não ajo, logo... Eu existo mesmo?

Enfim, sem dramas existencialistas. O dia prosseguiu, e então a noite, a semana, o mês e todo o tempo que você pode imaginar. Eu não sabia, mas aquele grupo de pessoas foi o primeiro a ser percebido por mim. Quer dizer, eu não sabia que não existia antes de vir a existir, mas ouvi que algum burocrata assinou uns papéis e decidiu que eu deveria desempenhar o papel naquele exato local e pelo resto da minha vida. Ou enquanto eu fosse útil, que seja. De toda forma, eu nasci sem saber que nasceria, mas aqui estamos, não é mesmo? Não pude argumentar em relação a essa decisão, nunca parei pra pensar nisso, na verdade, mas segui trabalhando feliz. A vida é o que é.

Em meio a todo esse tempo, experimentei uma água que cai do céu que todos chamam de chuva. Perdão, nem todos. Alguns só gritam “merda” quando veem ela caindo e correm para debaixo do meu teto. Não sei exatamente o que “merda” quer dizer, mas não me parece muito agradável. De toda forma, essa chuva parece unir as pessoas. Estranho? Eu explico. Normalmente, cada indivíduo fica a uma certa distância do seguinte, a não ser que seja um amigo ou familiar. Com a chuva, parece que todos sentem a necessidade de se esconder debaixo do meu teto, onde acabam tendo mais contato do que teriam em dias ensolarados. De alguma forma, o desconforto que a água traz parece ser menor que o incômodo do contato humano. Bem, eu gosto disso.

Ah, isso me lembra de uma coisa. Teve um tempo em que uns homens estavam reformando a via a qual pertenço. Durante um bom tempo (sou péssimo em mensurar esse tipo de coisa com exatidão) eu me vi só. Os carros deixaram de passar, os diabos metálicos também e o pior: pessoas. Não havia mais os cochichos do meio-dia, a pressa pelo trabalho, as paqueras de olhares. Atingi o ápice da solidão e minha única companhia foram uns indivíduos mascarados que vieram desenhar em mim. Escreveram algumas palavras feias e frases políticas, mas não fizeram uma companhia duradoura. Para piorar, um terceiro apareceu e jogou uma pedra em mim. Não entendi o porquê, nunca fiz mal para ninguém, mas segui com meu trabalho. A vida é o que é.

Após imensos protestos pela cidade – já expliquei, eu sou bom em ouvir conversas – o lugar se transformou. Ele cresceu mais e mais. Pude ver mais carros, mais pessoas e mais ônibus, mas também percebi uma novidade com “N” maiúsculo: pessoas dormindo sob meu teto. Não estou falando daqueles que dormiam por acaso enquanto aguardavam os demônios metálicos, mas o tipo de pessoa que aparecia na hora mais escura da noite, deitava-se e fechava os olhos para só abri-los oito ou dez horas depois.

Era o tipo de gente que não parecia muito feliz, sendo ainda pouco durável: enquanto eu podia ver vários rostos repetidos pela manhã, esses velhos coitados acabavam desaparecendo depois de algumas semanas. Não sei o que acontecia, mas acredito que seja a tal da morte. As pessoas, inclusive, pareciam adorar falar disso ao mesmo tempo em que mostravam um certo temor.

Por exemplo, teve uma vez em que uma velha senhora falou de um acidente de carro fatal que seu marido sofrera. A sua amiga disse “Deus me livre”, mas seguiram falando do assunto, citando acidentes e causos ainda mais brutais. De toda forma, lá estava eu conversando de forma silenciosa: “vamos, siga falando de você e da sua vida”, eu diria se pudesse falar.

Segui com o meu trabalho como sempre fiz: estático e feliz. Entretanto, eu mesmo me sentia diferente. Acho que meu aço não foi bem trabalhado, tendo em vista que comecei a perceber algumas marcas estranhas por todo meu corpo. Acho que chamam de ferrugem. Não sei exatamente o que isso quer dizer até hoje, mas segui com minha existência executando meu trabalho com primor, ou quase isso. Na verdade, eu já estava apresentando falhas. Minha utilidade sob chuvas já estava sendo questionada, pois meu teto contava com alguns vazamentos, de forma que qualquer pessoa abrigada sob meus braços podia muito bem se molhar. Se você se molhou, desculpa por isso. Eu não tive escolha.

Conforme eu me enchia de novidades – ferrugem, goteiras e problemas estruturais –, mais as pessoas me esvaziavam. Chegou um ponto em que eu estava lá só para demarcar exatamente isso: o ponto de ônibus. O lugar de espera ou um simples conforto noturno? Isso não existia mais. A minha melhor fase já havia passado e foi aí que eu entendi o que era o tempo. Lembra das idosas que eu falei? Nunca mais apareceram. As crianças agora eram novos idosos e você só apareceu uma vez completamente enferrujado (ou seria enrugado?). Olhei para você e você olhou para mim. Espera, olhou mesmo?

Em todo minha existência, nunca fui exatamente notado. Era só parte do ambiente, um pequeno braço do todo. Mas você, com seus olhos quase brancos e uma nova família lhe acompanhando, pôde me notar.

— Foi neste ponto que eu vi a avó de vocês pela primeira vez — você disse com entusiasmo.

Não entendia porque você resolveu me rever, até que vi uma lágrima de nostalgia viajar pelo seu rosto. Resolvi olhar para os lados e tudo se desencaixou: homens afrouxavam meus parafusos e retiravam minhas peças. Meu tempo de serviço havia acabado e esse era meu ponto final. No fim, fiquei feliz em ter te ajudar a encontrar o seu destino. A vida é o que é.


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Notas finais do capítulo

Muito obrigado pela leitura!



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