O Mágico e os Ladrões de Som escrita por André Tornado


Capítulo 32
O reencontro dos amigos




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Chester chorava num verdadeiro escândalo de emoção, cuspo e ranho, abraçado ao Joe que continuava a não perceber o que estava a acontecer. Classificava teimosamente tudo aquilo como uma cena piegas, foleira e embaraçosa. Mas como sabia da fragilidade do vocalista e como não desdenhava de um bom consolo, ainda que por motivo que ele desconhecia, não o afastava e deixava-se ficar naquela ambiguidade de protesto e aceitação.

Rob e Dave entreolharam-se e foi o baixista que fez a pergunta:

— Não se lembram de nada?

O coreano contou:

— Estava a beber água no camarim e agora apareço nesta sala de filme de ficção científica. Estão a filmar uma fita em Milton Keynes? Ou é algum vídeo para uma nova música escrita pelo Mike sobre a qual ninguém me contou nada? Onde estamos? Não devíamos estar a ir para o palco? Eh, Chaz… já chega.

— E tu, Rob?

O baterista empalideceu.

— Eh… Lembro-me de mais coisas… Tínhamos sido feitos prisioneiros, estávamos dentro de uma caixa fechada e… depois mais nada. Foi o Joe que me contaminou?

— E agora o fungo foi derrotado e deixaram de estar contaminados! – anunciou o Doutor saltando da plataforma.

A limpar a testa suada com as costas da mão, Brad escolheu abandonar a plataforma pela mesma via com que a tinha alcançado, pela escadaria atabalhoada construída por caixas grandes. Segurava com força o braço da guitarra mágica e sorria satisfeito porque tinha conseguido cumprir o desafio de tocar temas de música clássica sem um engano – o que resultara, em última análise, na cura do Joe e do Rob.

Mike estava ao lado de Clara. Antes de prosseguir com a sua explicação sobre aquele salvamento que tinha tanto de improviso, como de génio, o Doutor agarrou na mão dela e trouxe-a consigo para o centro formado pelo círculo de amigos. Também ela estava curada da contaminação pelo mesmo fungo e os seus dois corações batiam aligeirados de um grande peso. Detestava sabê-la doente. Lembrava-o de como ela era friável e finita.

Chester limpou o nariz e a boca com as mangas da blusa, soltou finalmente Joe que se colocou de pé, ligeiramente amuado por ter feito uma série de perguntas e ninguém lhas ter respondido diretamente. Rob levantava-se ajudado por Dave. Brad parou junto a Mike e o vocalista juntou-se-lhes, murmurando ao ouvido do último:

— Ali não pescas nada, companheiro. Poupa os teus esforços, a moça não está disponível. Os dois têm uma espécie de… compromisso.

O japonês admirou-se.

— Do que é que estás a falar?

— Ele é o sugar daddy da Clara.

— Chester! – Mike exclamou, abrindo os olhos.

— Pois, pois – assentiu Chester, com ares de sabedoria avulsa. – Um sugar daddy. Se quiseres que eu te explique o que é um…

— Eu sei o que é um… eu sei o que é isso. Francamente, Chaz… depois de tudo o que o Doutor fez por nós continuas a implicar com ele. E eu não estava a engatar a Clara. Só estava a… não estava a fazer nada, em abono da verdade.

— Doutor – interrompeu Clara, olhando-o com desvelo. – O que aconteceu aqui?

— Beethoven!

— E também Mozart e Bach e… ai! – Chester calou-se, ofendido com a cotovelada de Mike. Resmungou: – Posso parecer estúpido, mas reconheci as músicas. Também oiço as merdas que o Rob se põe a inventar no piano, enquanto conta sobre as aulas de música que a mãe o obrigava a ter, quando era miúdo.

— Qual a razão da escolha da música clássica?

— Porque não podemos dançar ao som de Beethoven, meu caro Mike – repetiu o Doutor.

— Conheço aqueles óculos escuros – disse Chester. – Por que razão o velho está a usar os teus óculos escuros, Mike?

— Estilo, meu rapaz! – respondeu o Doutor. Esticou um dedo indicador e prosseguiu, em jeito de lição: – Quando me fui embora, viajei até à realidade alternativa em que os fungos venceram e a Terra foi invadida pelos daleks. Tudo foi feito para me irritar, notem bem. Não é nada contra vocês, humanos. Planetas como o vosso há aos milhares pelo universo. No entanto, os daleks e todas as raças inimigas dos senhores do tempo de Gallifrey, desde os Cybermen aos Silêncio, sabem que tenho uma enorme fraqueza. Adoro a Terra, os seus habitantes, o seu ecossistema e todas as suas maravilhas invisíveis! Daí que vos escolham como alvo. De qualquer modo… adiante! Desta vez, coube a um fungo avaza que se alimenta de som criado pelo povo Azkura num passado incrivelmente distante, um parasita produzido atualmente pelos daleks. Os daleks movimentam-se num plano multiverso desde que os expulsei para essa realidade e, de vez em quando, encontram meios inventivos de destruição. E tropeçaram neste parasita, num qualquer universo paralelo.

— Um fungo avaza criado pelo povo Azkura… outra cena extraterrestre – resumiu Dave.

— Extraterrestre?! – admirou-se Joe num guincho.

— Chiu, Joe – pediu Chester. – Sim, estamos no meio de uma aventura de ficção científica. Como tudo começou contigo, então és o último a saber.

— Vocês… estão a brincar, certo?

— Não, Joe. Isto não é uma brincadeira ou uma simulação. É bastante real. Depois contamos-te tudo. – E Mike pediu: – Por favor, Doutor. Continua.

— O fungo avaza gosta de padrões. A música para essa criatura extraordinária é um mero alimento. Banal, corriqueira, vulgar. Durante a sua evolução, enquanto foi devorando as canções dos diversos clãs dos Azkura, adaptou-se para engordar perante alimentos reconhecíveis. Estudava as modulações do som, as suas frequências específicas e definiu a comida que era mais saborosa. Compreendem? Os fungos avaza têm os seus pratos prediletos de um vasto cardápio de som infinito. E tal como sucede com os vossos corpos tão humanos e vulneráveis, para os fungos avaza há som que nutre e há som que mata!

— Como cogumelos! – aventou Brad, espevitado.

— Sim, como cogumelos! – repetiu Clara. – Há cogumelos comestíveis e há cogumelos venenosos.

— Exatamente, Clara Oswald! Como os cogumelos…

Chester sussurrou:

— Viste, Mike? Sugar. Daddy. Ai!

Calou-se ressentido com a cotovelada do amigo.

O Doutor divagou, intrigado:

— Sim. Os cogumelos são fungos e temos aqui um ciclo interessante que se completou. Som e fungos.

— Doutor…? – chamou Dave.

O senhor do tempo sacudiu a cabeça, despertando da curta divagação que o levou aos extremos distantes da sua mente sempre em ebulição.

— Ah, sim, meu caro ruivo. Hei de explorar essa hipótese mais tarde, dos cogumelos. Muito sucintamente e em jeito de conclusão, os fungos avaza que contaminavam os vossos amigos foram derrotados por som que os envenenou. Como quando uma pessoa come um cogumelo impróprio para consumo. Morre. Se escolher um cogumelo comestível… pois bem, é uma iguaria requintada. O que eu e o vosso amigo cabeludo estivemos a fazer foi dar aos avaza som que os matou.

— Beethoven – acrescentou Mike, franzindo uma sobrancelha.

— Sim. Beethoven! E todos os demais compositores, mas tenho uma predileção por Beethoven. Um homem absolutamente impossível de aturar!

— Tu conheces o Beethoven? – estranhou Brad.

— Música erudita. Ou música clássica, como quiserem – continuou o Doutor. – Música com uma rigidez na estrutura, com exigência na execução, que não admite improvisos, com um quadro rítmico variável dentro de um estilo estanque. Música impossível de dançar! Os fungos avaza consomem som previsível e repetitivo, com variações que acabam por se ajustar a um padrão, refrões e estrofes de curta duração.

Chester cruzou os braços e olhou para Mike. O japonês disse:

— Então… o fungo aprecia a música popular e detesta a música dita clássica ou erudita?

— O fungo avaza prefere um alimento menos complicado – corrigiu o Doutor. – Som simples, que o seu ADN é capaz de absorver e de mudar, dentro de um espectro controlável de mutações. Foi por essa razão que não gostou do grito da voz poderosa do teu amigo, num primeiro momento, mas que passou a fazer parte da sua alimentação assim que o gravou no seu código genético.

— Ah… sim. Os fungos tornaram o Joe e o Rob mais agressivos quando o Chester gritou, uma segunda vez.

O Doutor empurrou os óculos com a ponta do dedo, ajustando-os sobre a cana do nariz. O seu sorriso era ainda mais imponente.

— O fungo apareceu nos bastidores do nosso espetáculo – completou Mike –, pois a música que fazemos… é padronizada. Admite improvisações e variações, mas no fundo, fica dentro de um estilo mais ou menos estabelecido. O Rock, o Metal, o Rap, o Eletrónico… e por aí fora.

— Bravo, Mike!

— Obrigado, Doutor…

O japonês, no entanto, ficara desiludido. Chester reparou e passou-lhe o braço pelos ombros. Abanou-o para o animar.

— Ei, companheiro… não deixes que um fungo extraterrestre te defina enquanto músico. Podemos não fazer música… erudita— nesta palavra Chester fez uma careta –, mas fazemos música excelente e somos a maior banda do mundo.

— Essa foi a segunda razão para que tenham sido escolhidos como alvo – admitiu o Doutor.

— Ah… sim? Que razão? – perguntou Brad.

— Vocês são a maior banda do mundo – respondeu Clara com os olhos brilhantes de emoção.

— Oh…

— Pois claro que somos a maior banda do mundo, porra! – exclamou Joe socando o ar. – E agora… depois de toda essa explicação sobre fungos que comem som… poderão explicar-me o que raio me aconteceu?!

Dave voltou-se para o DJ.

— Estavas a beber água no camarim… e não fizeste mais nada, senhor Hahn?

— Não. Espera… sim, acho que sim… havia uma mancha verde.

— Está explicado.

— Doutor? Temos de encerrar este assunto. De uma vez por todas – disse Clara, determinada. – A Terra não pode ser invadida por estes parasitas. Se já curámos o Joe, temos a solução para destruí-los.

O senhor do tempo tocou na armação lateral dos óculos escuros. Escutou-se o som característico da chave de fendas sónica. Dave e Brad entreolharam-se, intrigados, mas escolheram não tecer qualquer comentário. Joe e Rob estavam ainda meio zonzos e ignoravam uma série de indícios que lançariam enormes debates existenciais. Mike continuava desanimado e Chester perguntou-lhe o que se passava.

— Vamos ter de fazer música diferente – murmurou.

— Música diferente? Porquê, Mike?

O Doutor disse para a Clara:

— O fungo avaza é uma criatura fascinante. Irei recolher um espécime e guardá-lo comigo, na TARDIS. São uma lenda e todas as lendas devem ser preservadas, como avisos e como exemplo. Porém, não tolerarei que os daleks se aproveitem do fungo avaza para cumprir os seus planos maléficos de me perseguirem até ao fim do mundo! Iremos ao viveiro, para começar. Depois, em relação a esta nave… já não será comigo.

Ela estranhou o final daquela declaração, mas não procurou ser esclarecida. Nas questões que envolviam o Doutor não se podia fazer planos muito detalhados, a pensar no longo prazo. Tudo acontecia naquele minuto, no imediato, já e agora, numa pressa indispensável como se o tempo não fosse uma bênção infinda para aquele homem que vinha dos confins do próprio tempo – e essa era a graça suprema das aventuras com o Doutor.


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Notas finais do capítulo

Próximo capítulo:
Demasiada coisa para lembrar.