O Mágico e os Ladrões de Som escrita por André Tornado


Capítulo 31
A música que ecoa entre as estrelas




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Música. Uma guitarra elétrica.

Ele identificou aquele começo. Era uma peça clássica muito famosa, reconhecível em todo o mundo. Bastavam aquelas primeiras notas e toda a gente desatava a cantar – ainda que a música não tivesse letra, as pessoas murmuravam e havia uma sensação de vitória. A alma enchia-se de alegria e de confiança.

E foi o que Mike Shinoda sentiu ao ouvir a música tocada repentinamente, vinda de nenhures, numa guitarra elétrica. A quinta sinfonia de Ludwig van Beethoven!

Esticou um braço a tatear o vazio, cego porque a luz se tinha apagado na sala. Avançou dois passos e encontrou-o.

— Chester! Estou aqui, amigo!

Puxou-o para si, abraçando-o por detrás.

— Estou aqui…

— O que está a acontecer?

— Não sei, Brad! Alguém está a tocar a quinta do Beethoven numa guitarra elétrica. E acho que só pode ser uma pessoa…

Who?

Uma voz troou na penumbra, entre dois acordes.

— Precisamente!

Toda a gente suspendeu a respiração, os movimentos, os próprios pensamentos. Um holofote surgiu a iluminar, num omnifulgente cone de luz branca, uma plataforma alta onde estava o Doutor a tocar uma guitarra Fender stratocaster ligada a um amplificador rudimentar, mas que produzia um som monumental, límpido e contagiante.

Sob o seu braço, Mike sentiu Chester estremecer e apertou-o mais para confortá-lo e transmitir-lhe segurança. Pestanejou para habituar os olhos às sombras que começavam a destacar-se no escuro, devido aos fiapos de claridade gerados pelo projetor luminoso que destacava o Doutor, enquanto este continuava a tocar, imponente, o primeiro andamento da quinta sinfonia de Beethoven. Dave estava embasbacado a olhar para a plataforma, Brad protegia com desvelo a guitarra que carregava consigo. Joe e Rob tinham estacionado embrutecidos, a sua postura estática influenciada pelo som que os fungos decerto roubavam, cheios de cobiça.

— Brad! Vais tocar com o Doutor! – exclamou Mike, compreendendo o que estava a acontecer.

— Vou tocar…?

— És tu que estás com a guitarra. Toca!

— Toco o quê? De certeza que isto se vai ouvir? Não tenho amplificador, meu.

— Toca… vais ter de exibir o teu virtuosismo.

— O meu… quê?

— Quando o Doutor terminar, tu deverás, absolutamente, continuar. A linha de som não pode ser interrompida.

— Mike, tens a certeza do que estás a pedir? – estranhou Chester.

— Chiu, Chaz… vão ter de confiar em mim.

— Mais uma vez.

— Sim, mais uma vez, porra! Não pedi para ter este cargo de responsabilidade, mas não quero que as coisas corram mal por desleixo. Brad! Vais ter de tocar uma peça de música clássica. Ouviste-me? Música. Clássica.

O guitarrista arquejou.

— Tens a certeza? Eu… Pois, eu acho que… – O guitarrista hesitou.

— Tu sabes tocar música clássica, Brad! Sabes tocar, sim, que eu já te ouvi a arranhar umas coisas de Beethoven na guitarra – incentivou Dave.

— É o Rob que sabe tocar essas merdas ao piano! – corrigiu Brad, continuando a vacilar. – Beethoven e outras cenas.

— Lembra-te do Rob! Isso, amigo. Lembra-te do Rob, que está a precisar da tua ajuda.

— Vai ter de ser mais do que arranhar, Brad, companheiro! – disse Chester, esmurrando o ar. – Vais mostrar àquele velho que tocas melhor do que ele!

— Porra, Chaz – zangou-se Mike. – Não se trata de uma competição. O Doutor voltou para salvar as nossas vidas e vai acontecer com música clássica. Um dueto e uma das guitarras será desta nave mágica.

— Espero que estejas certo – retorquiu Brad e deu um passo em frente.

Surgiram umas escadarias largas, compostas por caixas empilhadas e Brad escalou-as determinado. Juntou-se ao Doutor na plataforma. E o cone de luz alargou-se para incluir os dois músicos.

— A música não pode parar – avisou o Doutor. – Quando fizer sinal, tu arrancas. E acredita… a tua guitarra vai soar como a minha e sem estar ligada a um amplificador.

— Certo – concordou Brad, humedecendo os lábios com a ponta da língua. – Já estou pronto. Passa-me o testemunho quando quiseres, Doutor.

— Estás preparado?

— Sim! Vou tocar de ouvido… estou a lembrar-me das merdas eruditas do Rob Bourdon no estúdio, ao piano, a fingir que não nos conhecia porque éramos uns reles músicos de Rock e ele era um pianista que dava concertos no Met de Nova Iorque e cenas dessas. 

— Muito interessante. Mas completamente inútil para o presente caso.

O Doutor arrancou um derradeiro acorde às acordas, o seu braço descreveu um arco amplo, ao melhor estilo de um músico de uma banda de Rock. Brad começou a tocar sem que se perdesse uma nota sequer entre os dois.

Chester deu uma cotovelada em Mike.

— Acho… acho que é Mozart – identificou o japonês.

De facto, Brad tocava o famoso tema do compositor austríaco, Eine kleine Nachtmusik. O Doutor passou o peso de uma perna para a outra. Sorria com otimismo, graça e altivez. Enfiou a mão que segurava a palheta entre os dedos na cabeleira grisalha. Meneou a cabeça e Brad devolveu-lhe a ribalta.

Seguiu-se Bach e a sua infame Tocata e Fuga numa explosão de energia e de desafio que arrancou um grito de assombro a Chester. O velho tocava muito! Mike deu-lhe uma cotovelada para que se calasse e deixasse o concerto prosseguir. Dave aproximou-se deles. Tinha os punhos fechados, os braços dobrados pelos cotovelos e fixava a apresentação tresloucada do Doutor com uma perplexidade atónita. Admitiu que não estava a perceber qual era o objetivo. Mike encolheu os ombros e disse que o melhor seria esperarem. Alguma coisa iria acontecer. E envolvia música. Som. Estava tudo mais do que certo.

Brad voltou a entrar e, embora se tivesse notado uma ligeira vacilação, tocou com uma concentração impecável o Inverno das Quatro Estações de António Vivaldi. O ar tornou-se morno e límpido, a escuridão dissolvia-se aos poucos e o preto convertia-se num cinzento confortável.

Foi novamente a vez do Doutor, que escolheu a exuberância da Cavalgada das Valquírias de Richard Wagner. Repuxava as cordas e tangia acordes entre o domínio e a raiva, num registo muito Punk que arrancou saltos e aplausos da parte de Chester, entusiasmado com aquela apresentação que falava diretamente aos ouvidos dos deuses da música.

Brad não deixou os seus méritos por mãos alheias e após outro sinal do Doutor começou a tocar a William Tell Overture de Rossini, saltando de pés juntos a acompanhar a música frenética que produzia com a sua guitarra mágica. Estava mais solto, mais confiante, mais feliz, os acordes fluíam naturalmente e ele já não tinha dúvidas do que estava a fazer.

Quando o Doutor ousou avançar com o triunfalismo bucólico do Canon em Ré Maior de Pachelbel, Brad juntou-se-lhe e as duas guitarras fizeram um coro magnífico de pura virtude inspirada no divino. A música imortal morava ali, nas mãos daqueles dois grandes guitarristas. Mike admitiu que era incapaz de tocar daquela maneira. Chester mordia os nós dos dedos e Dave ofegava de emoção.

A claridade de um dia perfeito tinha-se definitivamente instalado naquela sala. Foi como se o sol tivesse nascido numa gloriosa madrugada de promessas e a luz irrompeu, numa explosão e numa maravilha, mostrando Clara que assistia a tudo do outro lado do palco, mostrando o Joe e o Rob paralisados na sua habitual posição de estátuas comatosas.

Chester apontou-os.

— Olhem!

Devagar, os dois voltaram-se e ficaram de frente para eles, de costas para o palco onde o holofote queimava como um cometa, realçando a prestação impecável do dueto de guitarras do Doutor e de Brad. O coreano dobrou-se e desatou aos vómitos. Chester quis avançar, mas Mike travou-o com o seu braço que continuava a cingi-lo a si.

Uma massa pastosa foi projetada da boca escancarada de Joe e este caiu de joelhos. Rob acabou de vomitar a sua porção de matéria viscosa e também se ajoelhou. Num movimento que era o espelho um do outro, os dois oscilaram moles, sentaram-se sobre os calcanhares, exalaram um prolongado suspiro, reviraram os olhos e tombaram de lado, ficando escorados um no outro.

Dave disse, a conter a euforia:

— Parece-me que eles… parece-me que eles ficaram curados. O fungo foi eliminado do seu organismo. Está ali, naquela coisa nojenta que vomitaram.

Chester sacudiu os ombros e soltou-se de Mike. Correu para os amigos.

— Joe! Rob!

As guitarras calaram-se com um acorde final debitado em uníssono. Brad esticou o braço direito para o ar, mostrou os dedos indicador e mindinho espetados, os cornos típicos do Metal. Fios de suor deslizavam-lhe pelo rosto e perdiam-se na sua barba hirsuta. O Doutor sorria, arrogante, observando o mundo desde aquele pedestal altaneiro que o fazia repulsivo e admirável. Muito normal para um senhor do tempo com mais de dois mil anos.

— Que porra está a acontecer aqui? – inquiriu Joe, rouco e desagradável.

— Olha para mim… ei, malta! Os olhos do Joe voltaram ao normal! – gritou Chester. Estreitou o coreano nos braços e a sua voz tremeu-se-lhe. – Amigo, bem-vindo de volta. Foda-se, pregaste-nos cá um susto! Já estás curado. Meu, já estás curado…

— Ei, Bennington! Que cena mais mariconça é essa! Larga-me, meu.

— Rob?

— Dave, um comboio passou por cima de mim – confessou o baterista a esfregar a cara com as mãos.

Clara colou as mãos ao peito. Houve um alívio, um desanuviamento. Sentiu-se incrivelmente bem, como se tivesse despertado de um sono longo e apaziguador que lhe tivesse retemperado as energias totalmente. Também deixava de estar contaminada com os esporos invisíveis do fungo.

Mike aproximou-se da plataforma. Depois de dispensar um sorriso feliz à Clara, apoiou as mãos no tablado. Olhou para cima, para o Doutor e para o Brad que relaxavam depois de uma apresentação exigente, que lhes consumira mais calorias do que as previstas.

— Música clássica, Doutor?

O senhor do tempo esclareceu:

— Não podes dançar ao som de Beethoven!


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Notas finais do capítulo

Se estiverem interessados em conferir as músicas deste capítulo, que existem todas em versões de metal, deixo as ligações.
Para o Doutor escolhi peças mais elaboradas e para o Brad foram peças mais populares.

Beethoven, quinta sinfonia - Doutor
www.youtube.com/watch?v=4ZQu3p-qWF8

Mozart, Eine Kleine Nachtmusik - Brad
www.youtube.com/watch?v=bpZsxhBbRPQ

Tocata e Fuga, Bach - Doutor
www.youtube.com/watch?v=9ll19StB624

Vivaldi, Inverno - Brad
www.youtube.com/watch?v=-wsc4qLxTtA

Wagner, Cavalgada das Valquírias - Doutor
www.youtube.com/watch?v=dKNgikCt9KA

Rossini, William Tell Overture - Brad
www.youtube.com/watch?v=xDaVZB8NWm4

Pachelbel, Canon em Ré - Doutor e Brad
www.youtube.com/watch?v=K2T6JKjjJq4

Próximo capítulo:
O reencontro dos amigos.