— Como 'tá o primeiro dia? — Nathan e eu caminhamos juntos no jardim de fora no final da tarde.

— Ótimo! O Ben me explicou algumas coisas sobre como tudo funciona aqui.

— É bem simples, na verdade. Solaris nos concede dons. Quando aparecem, costumamos dizer que seu dom foi externado ou floresceu, quer dizer que você foi abençoada por Isis, a deusa da magia.

— Há alguma possibilidade de Isis decidir simplesmente não te abençoar e alguém não ter dom nenhum? — pergunto receosa. Com a minha sorte, tudo é possível.

— Alguém sempre vai ter algum dom, Isa — respiro parcialmente aliviada, afinal sua frase pode ter sido meramente motivacional.

— Qual é o seu? — Agarro seu braço com força quando o chão a nossos pés se move com um ligeiro tremor. Um grupo de crianças próximas à fonte solta gritinhos, risos e acena para Nathan, que acena de volta. Nate sorri convencido. — Metido.

— Controlo a terra e a madeira, causo terremotos, prendo pessoas embaixo da terra... reenvaso algumas plantas para a Seely — ele diz, me fazendo sorrir.

Nate e eu nos sentamos em um dos bancos de pedra do jardim no mesmo momento em que Pietro e três meninas saem de dentro do casarão. A turma do meu irmão. Nate acena para eles.

— E aí, pessoal!

— Vamos jogar dardo. Quer vir? A Marianne quer revanche, vai perder de novo.

— Laureen, por que você me força a andar com eles? O que você viu no Alencastro, me diz? — reclama a garota loira.

— Ah sabe como é, a forma como ele me deixa brava e preocupada o tempo todo, não resisto — brinca uma garota negra com covinhas nas bochechas.

— Ah é? — Nathan corre atrás dela que foge e solta um gritinho quando ele agarra sua cintura em um abraço em um momento fofo.

— Own.

— Parem de palhaçada e vamos jogar — grita Pietro. — Você vem Dorazinha?

— Não gostei desse apelido. — Preferia que ele continuasse me confundindo com Isabela. Ele sorri travesso, a possibilidade de me irritar é um incentivo para continuar.

— É mesmo, Dorazinha?

— Deixe a garota em paz, Pietro! — diz a garota loira.

— Não se preocupe, Mari, eu só tenho olhos para você. — Ela revira os olhos como se esse tipo de cantada fosse regular.

— Só estou falando para deixar a garota em paz. Por que você não se mete com alguém do seu tamanho?

— Com quem, por exemplo? Você? — Pietro se levanta e para a centímetros de distância dela. A tensão entre os dois é palpável e eu sorrio, olhando interessada.

No entanto, sou a única, os outros parecem ter visto tal cena tantas vezes que se entediam.

— E lá vamos nós.

— Lá se foi nosso jogo de dardos.

— Sala de treinamento, agora. — A loira gira e se afasta. Pietro sorri e a segue. E de repente, todos estão os seguindo, inclusive Nathan. Permaneço no mesmo lugar, sem entender até que Nate olha por cima do ombro.

— Vai querer perder isso?

Não, não mesmo, seja lá o que for. A sala de treinamento é enorme e toda branca, com uma cabine no alto com proteção de vidro, onde é possível ter uma boa visão da sala. Eu praticamente colo o rosto na superfície transparente, com um sorriso excitado, enquanto ouço Nathan e sua amiga fazendo apostas atrás de mim.

— Cinco solariens que a Marianne vence.

— Aposto no Pietro.

Lá embaixo, Pietro alonga o pescoço e os braços. Ele diz algo, mas ninguém consegue ouvir através do vidro, e dá alguns pulinhos para aquecer.

Sua adversária boceja para provocá-lo.

E eles começam. Pietro é mais rápido do que o humanamente possível e seu combate é corpo a corpo.

Ela tira dos bolsos da calça duas pedras comuns que quando pisco, se transformam em uma espada e um escudo. Alguém para ao meu lado, mas não consigo desviar os olhos da luta, apenas percebo que é Nathan quando ele começa a falar.

— A magia se manifestou em Pietro como força física, ninguém nessa Fortaleza é mais forte do que ele. Na verdade, ninguém em Solaris, exceto A Sombra, é claro — ele esclarece. — Além da força física, ele é rápido e sua pele é resistente, então essa espada da Marianne precisa atingi-lo muitas vezes para provocar alguma coisa. Ele também domina magia elementar, fogo. Como eu, que domino a terra — acrescenta Nathan, aproveitando para argumentar porque vai ganhar a aposta.

— Marianne é capaz de transformar qualquer objeto em arma, por isso sempre anda com essas pedras nos bolsos para transformar em espada e escudo. Eles já fizeram isso outras vezes e ela sempre volta melhor. Além disso, ela pode trocar de corpo com o oponente, claro que isso exige muito dela, como todo dom da mente, tenho certeza que ela vai usar isso como última carta na manga — quem fala é a amiga de Nathan, do outro lado. Olho para ela, que sorri, fazendo covinhas nas bochechas.

Mesmo carregando o peso das armas, Marianne é rápida e consegue desviar de todos os ataques de Pietro. A parte afiada da espada toca a pele dele algumas vezes, mas só provoca arranhões. Ao perceber que o combate corpo a corpo não está adiantando, ele se afasta e ergue as mãos, labaredas de fogo saem dela em direção a Marianne, que se defende com o escudo. Preciso apertar os olhos para protegê-lo da luz.

De volta para o combate corpo a corpo, os movimentos de da garota são rápidos, mas Pietro consegue puxar a espada das mãos dela segurando na lâmina afiada. Ele consegue e quebra a arma no meio, o que a deixa furiosa.

Apesar de rápida, ela começa a se cansar e ficar mais lenta. Pietro a atinge com um chute e ela bate as costas na parede oposta, deslizando até o chão. Ele caminha até ela com ar vitorioso e então, alguma coisa acontece. Pietro para no meio do caminho e começa a atingir a si mesmo. A cena seria cômica se cada soco não fosse mortal, se manchas roxas e filetes de sangue não estivessem aparecendo em seu rosto, agora inchado. Ela trocou de corpo com ele.

Ao se dar conta que está no corpo dela, Pietro pega a parte do punho da espada partida no chão e acerta com força a própria cabeça, forçando-a a voltar ao próprio corpo. Devido ao impacto com o punho da espada, ela fica tonta e parece a ponto de perder os sentidos.

Pietro ainda consegue se levantar, apesar de também estar acabado, ele caminha até ela, se abaixa e a pega no colo.

— Vou levá-la para a enfermaria — ele diz quando passa por nós.

— Uau! Isso foi emocionante — diz a novata ruiva atrás de mim. Só então percebo que muitas pessoas estavam assistindo.

Depois do jantar, eu me sento em uma poltrona na sala de descanso. A maioria dos novatos também está ali comentando a luta de Pietro e Marianne. Um dos mais novos faz algumas imitações engraçadas que me faz rir.

— Acha que eles vão se encrencar? Só podem usar a sala de treinamento com autorização — diz um deles.

— Você não lembra do que ele disse? Ele é filho da Princesa, é claro que não vai se encrencar.

— Vamos para os nossos quartos, está tarde. Não podemos ficar andando por aí depois das dez e meia — diz um dos novatos mais velho, acho que seu nome é Christopher. Todos começam a se levantar e se dispersar. Antes de ir com os outros, Christopher segura meu ombro gentilmente. — Não demore muito aí, Isa. Boa noite.

— Obrigada. Boa noite.

Aproveito que estou sozinha para fazer o que planejei quando sentei ali. Escrevo em meu caderno dos sonhos sobre tudo o que aconteceu desde que Nathan me buscou. Parece que parei dentro de um dos meus sonhos mesmo.

E termina o meu primeiro dia em Solaris.

Fecho o caderno. Olho para o relógio e já passa da meia noite. Nem vi a hora passar, ainda mais porque, por algum motivo, do lado de fora continua claro. Vou para meu quarto tentando não fazer barulho e nem ser vista.

A mansão está mergulhada em silêncio. Apresso o passo para chegar a meu quarto e por isso esbarro em alguém que surge tão silenciosamente que só percebo sua presença devido o encontrão.

— Desculpe, eu... — Respiro aliviada, é apenas David Carpentier, o Sonhador, e não um dos mais velhos, a Princesa, General Salazar ou o coordenador. David me encara com um olhar grave.

— Você não deveria estar aqui.

— Eu já estou indo. Não anoitece por aqui?

— Não durante o verão.

— Ah... Boa noite.

— Boa noite.

Marianne Salazar