Bravado escrita por Camélia Bardon


Capítulo 14
Sob o luar de seus olhos


Notas iniciais do capítulo

E vamos com o segundo do mês e a segunda parte do capítulo ♥ tem ainda um terceiro, mas até lá tem chão. Boa leitura!



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Apesar de ser adorável, Giselle continuava sendo um bebê. Como tal, ela tinha seus surtos de choro noturno. E, apesar de não ser a mãe, Adele era dotada de um intenso instinto protetor. Seu cochilo – consequentemente meu momento de ajudá-la a ter uns minutos de tranquilidade – foi interrompido, o que fez com que ela despertasse. Seus olhos automaticamente foram para o interior da casa, mas logo Adele voltou-se para o casaco que deixei ali para protegê-la do frio e da neve.

— Está tarde, não...? — Adele aconchegou-se ao casaco, olhando para mim com as bochechas coradas. — Podia ter me acordado, querido...

— E atrapalhar seu sono? Não sou tão inconsequente — levantei-me, estendendo a mão para ajudá-la a fazer o mesmo. Enquanto Adele se ajeitava e se espreguiçava, aproveitei para perguntar: — Tudo bem? Nada doendo ou formigando?

— Tudo bem, obrigada... E o senhor, não está com frio?

Neguei com a cabeça, apesar de ser uma mentira benéfica. Estava me tremendo um tanto considerável, mas valeu a pena a sensação tranquila de passar um braço ao redor de seus ombros. Tudo para prolongar a proximidade. Afinal, poderia perdê-la em questão de segundos.

— Vamos lá, te acompanho até seu quarto — sorri.

— Eu não deixaria se não soubesse que o seu é no mesmo corredor... — Adele bocejou, saindo do personagem forte e imbatível para permitir-se ser embalada feito uma criança sonolenta. — Essa casa é tão grande...

— Sei disso, porém escolho ignorar no momento.

Adele riu baixo, bocejando ocasionalmente. Conduzi-a pelo corredor iluminado pela luz da lua – melhor dizendo, do sol refletido nela –, mais feliz do que jamais poderia ter cogitado. Mamãe parecia estar lidando muito bem com Giselle, uma vez que do alto das escadas era possível ver a tia Sienna e o tio Émille cochilando tranquilamente no sofá.

— Deus os abençoe — Adele sussurrou, sorrindo.

Sorri junto a ela, principalmente após ver mamãe rodopiar com Giselle no colo. Ela costumava fazer o mesmo com Maélie. Apenas voltei a colocar os pés no chão quando Adele se desvencilhou do casaco com um rodopio semelhante, parando à porta do quarto para abri-la com uma cerimônia um tanto cômica.

— Muito obrigada pela carona, meu bom senhor — ela fez uma reverência elegante, me arrancando um riso silencioso. — E obrigada por... Todo o resto, também.

Aquiesci, ao passo que ela me devolveu a sobrecasaca. Considerei uma bela oferta, porém não consegui previr o que viria a seguir. Adele ergueu-se na ponta dos pés e segurou meu queixo com uma delicadeza descomunal, apenas para depositar um beijo suave em minha bochecha.

Eu juro que não sei como não morri. Sei que meu coração bateu tão forte contra o peito que suspeitei que Adele pudesse ouvi-lo de onde estava. Apesar de sentir meus joelhos tremendo feito uma vara verde, sorri e aproveitei o momento.

Ah, meu Deus, eu nunca fiquei tão feliz por alguém estar sonolento. E por estar congelando lá fora.

— Pode... Tocar o piano amanhã? — Adele questiona, bocejando pela última vez.

— O piano? Claro, por que não?

— Ah, obrigada. Vai ser maravilhoso. Boa noite, mon cœur.

— Até amanhã, petit Adele.

Esperei até que ela fechasse a porta. Quando Adele fez isso, dispensei todo meu bom senso e executei minha ridícula dancinha da vitória. Ao entrar nos meus aposentos, agradeci por Thomas e Evan já estarem dormindo, porquanto que se me visse em meio àquele ritual iriam me perguntar o que é que havia acontecido.

Se nem eu sabia dar uma explicação do que é que tinha acontecido, como eu poderia fornecê-la ao pobre Thomas Banks? Quanto a Evan...

Para ele, já havia uma nova cartada na manga. Sentia-me particularmente vingativo.

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As manhãs após as comemorações à meia-noite eram silenciosas. Todos acordavam tarde e até mesmo os empregados ganhavam um dia com menos tarefas. Quando éramos crianças, nos reuníamos à frente da lareira após arrastar um cobertor ou mais e ficávamos deitados no sofá fingindo estar fazendo algo de interessante enquanto os adultos não acordavam. Geralmente eu lia com Maélie no colo, Thomas e Adele jogavam xadrez, Evan e Elena intercalavam com Gabrielle para jogar batalha naval e... Laurent se achava muito adulto para ficar conosco.

São épocas que não voltam mais, não são?

Naquela manhã, entretanto, as coisas foram diferentes. O choro de Gigi já era escutado ao longo dos corredores – o que não era desagradável, visto que havia bebês mais gritantes por aí. Se falasse a linguagem dos bebês, suporia que ela estava terrivelmente desgostosa por ter nascido no inverno. “Imagine só, me tirarem do meu útero quentinho para vir sofrer aqui fora? Como acreditar que a mamãe me ama desse jeito?”.

Só o pensamento me fez rir sozinho. Então, me recordei da minha missão. O piano da Casa Bretonne seria meu.

Há tanto tempo eu não mexia num piano... Será que eu ainda sabia o que fazer com ele?

Sentei-me no banquinho, um tanto quanto trêmulo. Diziam que não era muito provável esquecer-se de algo depois de tanta prática e condicionamento mental, mas... E se eu entrasse justamente naquela porcentagem única do “pouquíssimo provável”? E se na verdade eu nunca havia tocado tão bem quanto o tio Thierry e as outras pessoas só me elogiavam por eu não ter outro talento melhor que aquele? Porque, afinal de contas, ler não é de fato um talento sem aplicação... E Psicologia ainda não tem tanto material de apoio...

— É só tocar — me sobressaltei com a voz de Adele, que chegou a algum momento meu de divagação para acocorar-se no canto da sala. Ela tinha uma grande coberta ao redor dos ombros, como quando éramos crianças. Seus cabelos caíam em cachos pelos ombros, e por um momento me esqueci de como é que se respirava. — Não precisa pensar tanto... O mecanismo envolve só dedos.

— Envolve pensamentos também — sorri, passado o susto. — Bom dia!

— Pensamentos? Bom dia!

— É... Escolher a música, o tom... É difícil tocar de cabeça, sabe?

— Toque uma que traduza o agora.

O agora? Fechei os olhos e suspirei, buscando alguma melodia que fizesse sentido. Deixei que meus dedos tomassem o rumo dos pensamentos, do contrário eu iria errar as notas no começo. Eu gostava de melodias predominantemente graves, com alguns intervalos de notas mais altas. Sorrisos e risadas eram compostos de notas altas e baixas. Danças, também. A chuva nunca chovia do mesmo jeito. Quando me dei por mim, lá estava a melodia sem a partitura. Não sei se poderia chamar aquilo de composição, mas se fosse... iria chamá-la pelo nome de uma estrela brilhante.

Quando me dei por mim, já não estava mais sozinho no banquinho. Adele moveu-se para o meu lado em algum momento da minha “performance”, e parecia tão absorta na melodia quanto eu. Isso me fez sorrir e continuar; o que provavelmente durou três minutos pareceu uma eternidade. E olhe que nem estou sendo clichê em minhas comparações.

Se o tempo era mesmo diferente em diversas partes do mundo e em diversos momentos da vida, o que me garantia que a gravidade dos seus olhos não era maior do que regia o universo?

— Bem... Esse é o agora — ri baixo.

— Adoraria ouvir o agora todos os dias — Adele falou tão baixo quanto eu, talvez com medo de rasgar a fina camada de magia que evaporou do piano. Se me esforçasse um pouquinho, conseguiria estender os dedos e aquecer os dedos nele. — É... Mágico. Não é?

Sorri, alongando um pouco a coluna. Meus dedos ainda estavam um tanto congelados pelo frio, mas foi bom colocá-los para trabalhar um pouco.

— Queria saber tocar — Adele comentou, sem tirar os olhos das teclas. — O tio Thierry até que tentou, mas estava na cara que eu não tinha aptidão nenhuma para a música...

— Não. Sua aptidão foi toda para a Enfermagem, mas apenas se deu conta disso quando ouviu dizer que havia opções, não é?

Quando me dei por mim, pela terceira vez na manhã, já havia despejado as palavras como se o amanhã nunca fosse chegar. Apenas notei a gravidade – e a intimidade! – do comentário quando Adele me olhou de soslaio. Imaginei que ela estivesse postergando a conversa da tal Cruz Vermelha, no entanto nem eu e nem ela imaginamos que o assunto surgiria assim tão de repente.

Todo o vapor mágico havia ido embora. E a culpa era toda minha.

Céus.

— É, eu... Acho que sim...

Espere aí. Adele não estava brigando comigo ou me achando insolente?

Deus? Obrigado pelo livramento do teu filho. Nunca mais eu abro a boca, eu prometo.

— Quer dizer, eu... Você tem razão. Eu guardei isso para mim e... Só joguei tudo nas suas costas como um segredo sem nem dar a oportunidade para que tivesse algum material para argumentação... Sinto muito, Alex. Não fui justa com você. Aliás... Não estou sendo justa com você.

Então, Adele me mandou o olhar universal de “precisamos conversar”. Em resposta, assenti com a cabeça, fechando a tampa do piano. Ela me ofereceu um pedaço do cobertor, visto o estado das minhas mãos, e obviamente aceitei. Então, como fiz com ela no dia anterior, Adele colocou uma proteção de calor em volta do meu corpo. Tive vontade de chorar de alegria com o gesto.

Daí, Adele respirou fundo e fechou os olhos. Pude notar ali que ela estava fazendo um esforço enorme para organizar os próprios pensamentos.

— O tempo que quiser — sussurrei, o que fez com que ela concordasse com a cabeça. — Não tenha pressa.

Após outro suspiro, Adele iniciou sua narrativa com a calma com a qual ela sempre se expressava:

— Quando Thomas entrou na universidade, eu... Nem sabia o que era uma universidade — ela riu fraco, colocando uma mecha de cabelo atrás da orelha. — Para mim, havia apenas o liceu. Enquanto isso, para nós haviam escolas de etiquetas. Então, quando ele disse que seria um botânico... Eu fiquei pensando: “espere aí. Mas eu também quero ser alguma coisa. As únicas opções são pintar, bordar, casar e ter filhos? Nenhuma dessas opções me parecem ser a que eu colocaria como prioridade na minha vida”.

Ela fez uma pausa, e eu supus que estivesse esperando algum tipo de julgamento. No entanto, como viu que permaneci em silêncio, Adele prosseguiu com um tanto mais de coragem.

— Eu sempre vi como a tia Lilian detestava a vida dela de esposa... Ela é como um passarinho enjaulado. Já a mamãe foi feita para essa vida. Sua mãe, por exemplo, encaixa-se bem no meio termo entre a vida trabalhadora e a vida familiar. E eu fiquei pensando... E se eu também for assim?

— Deve ser um problema de nomes — brinquei para amenizar o clima tenso.

— É mesmo — Adele riu baixo. — Ainda bem que mamãe não me chamou de Émilie...

— Seria um tanto exagerado.

Ela concordou, rindo um tanto para dentro.

— Então, comecei a ir atrás de materiais de estudo no Quartier Latin. Não porque queria imitar Thomas, mas porque queria saber como era ser livre das amarras sociais, nem que fosse apenas lendo. Se... Lembra-se de quando se machucou no jardim?

Sinalizei a cicatriz no braço, erguendo uma sobrancelha. Já ela segurou-o delicadamente.

— Benditas calêndulas. Devo minha vida a elas.

— Pare! — ela se conteve, ainda que desejasse rir. — Aquele dia foi o primeiro dia em que coloquei meu conhecimento teórico em prático... E... Ah, céus, eu jamais fiquei tão animada quanto naquele dia, apesar das circunstâncias. Eu finalmente tinha achado utilidade em algum lugar... Entende?

— Ah, sim... Eu me lembro dos seus olhos brilhando. Fiquei até feliz de ter me encrencado com a tesoura de poda.

Adele me encarou com curiosidade. Quando analisei o que tinha dito, quase praguejei em voz alta.

— Foi minha culpa que se encontrou, então? — tentei brincar de novo, porém Adele havia focado na outra metade da frase.

— Se lembra de...?

— E-eu sou muito observador.

— Alex.

Ela me interrompeu, no tom severo misturado ao de urgência. Repita, pedia ela em silêncio. Por favor.

— É difícil se concentrar na dor quando olhos gentis te confortam... — murmurei.

— Não poderia concordar mais. Sinto-me assim quando olho nos seus.

Aquele era o agora. No entanto, o piano havia se silenciado.


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Notas finais do capítulo

Música que ele tocou pra menina (ignorando a cronologia de data): https://youtu.be/TgPaW55vTg4
Fogo no parquinho (ノ◕ヮ◕)ノ*:・゚✧ será que agora vai?



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