Bravado escrita por Camélia Bardon


Capítulo 12
Passatempos peculiares




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Rue Ramponeau

Belleville

Casa Bretonne, Salão Branco

(É bom variar, um pouco...)

 

“6 de novembro de 1912

Santo Deus, Alexander Banks, em todos os anos que o conheço foi capaz de privar-me de vossas experiências alcoólicas? Devo dizer que o invejo, porquanto que meu pai aboliu as bebidas em casa desde a gravidez de mamãe. “Não haverá tentações”, disse ele. Entretanto, eu duvido que os amigos dele não o surrupiem para uma taça de Bourbon. A vida é injusta, não é? A nós nos sobra o quê? Casas de chá?

Fico muitíssimo feliz por ter um tempo para corresponder-se comigo. E que o barulho não o impeça de concentrar-se. Pois muito bem... O senhor pediu e é justo uma resposta.

Apesar de não ser Sorbonne, a Cruz Vermelha capacita mulheres voluntárias em enfermagem – frequentemente, a emergencial. São elas que procedem nas guerras onde os pobres soldados sentem-se abandonados por Deus e o mundo. Que Ele não permita que nos acometam mais guerras... No entanto... Se elas acontecerem, há quem zele pelos que zelam por nós.

Ainda é um pensamento avulso, porém adoraria que me compartilhasse sua opinião sobre o assunto. Aguardarei ao menos o nascimento de meu irmão ou irmão para tomar uma decisão. Afinal, se quiser ter filhos algum dia, é bom que saiba ao menos como cuidar de um bebê. Maélie não conta, uma vez que também era uma criança quando ela nasceu.

Perdoe-me, estou divagando novamente. Tentarei formar sentenças menores a partir de agora.

Espero que possamos ter alguns momentos a mais nas férias de final de ano. Aliás... Façamos assim: Não me responda nada e guarde sua opinião para o mês que vem. Assim, manteremos atiçada a curiosidade de ambos. O que acha?

Quanto ao bigode... Não. Não estrague seu lindo rostinho com um bigode horrendo, sim? Compreendo que estejam na moda, mas seu estilo em geral já é démodé. E estou dizendo no sentido elogioso. Permita que eu exerça aquela influência para convencê-lo?

Com carinho infindável,

Adele.”

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Não sei qual das reações me atingiu primeiro ao findar a carta – teria sido a tensão do “pensamento avulso”? A ideia de Adele sentir-se tão pouco útil a ponto de cogitar a ideia de rodar por terras desconhecidas salvando soldados? O meio elogio ao final? A perspectiva de ter muito mais a contar quanto retornarmos à Paris para as férias? Todas as alternativas anteriores? Ah, céus.

Dobrei a carta com cuidado, sentindo o suor frio se acumulando nas têmporas.

Desta vez, não houve como me esconder do olhar clínico de Thomas. Havia algum tempo que estávamos nos tratando nos mínimos – digo, ele para mim, porque eu não via motivo para tomar partido nesse tipo de comportamento –, no entanto ainda dividíamos o mesmo quarto. Creio que eu tenha ficado tão abismado que seu instinto de irmão tenha batido à porta de sua consciência.

Viu só? Ler tanto nos deixa com um vocabulário um tanto mais poético.

— Alex? — chegando quase imperceptivelmente para frente, Thomas murmurou. — Tudo em ordem, aí?

— Hum? Sim, só estava... Hum... Lendo uma carta. De Paris.

— É? Quais as novidades?

Sério? Após três meses, ele quer saber como estão as coisas em Paris? Bem... Sejamos otimistas, antes tarde do que nunca, certo...?

Tia Sienna, eu estava fazendo tudo isso em respeito à senhora. Conselhos preciosos quando são desperdiçados... É uma lástima.

— É... A tia vai ganhar o bebê em breve.

— Bem, diga-me algo do qual já não esteja ciente. Era de se esperar, com o tempo.

Engoli em seco, resistindo à tentação de me deitar na cama e encarar o teto até que o dia acabasse. Não era isso que fazíamos, geralmente? Sair da zona de conforto uma vez que se criam raízes é extremamente difícil.

— Digo, não pode ser por conta de uma gravidez que tenha ficado tão alterado — Thomas tentou reparar a própria grosseria. — Desculpe-me. A semana de provas tem sido extenuante. Ainda não enchi a cara suficiente para esquecer.

Era necessário bem mais que um pedido de desculpas de escanteio, porque três meses e mais alguns dias quebrados não se consertavam o estrago de um mal-entendido. Apesar disso, assenti com a cabeça numa tentativa de pacificidade.

— Uhum... — o que mais Thomas queria que eu dissesse?

— Está tudo bem?

— Sim. Sim, está. Obrigado.

É isso. Isso é tudo que tinha a oferecer. Já deixava de ter importância o que Thomas pensava de mim, e constatar isso como um fato com argumentos me deixou pensativo. Costumava idolatrá-lo quando mais novo indo atrás dele pela casa enquanto Thomas brincava no jardim. Evan e Elena jamais saíam do olhar atento da mamãe, mas quanto a nós... Bloomsbury não tinha muitas áreas verdes disponíveis, porém eu e Thomas desbravamos todas. Quer dizer, ele desbravou. Eu desbravei os bancos de jardim lendo.

Se não fosse tão introspectivo, será que teria continuado assim? Será que eu deveria ter ido atrás dele todo esse tempo?

Ei, espere um pouco. Thomas também nunca veio atrás de mim durante esse tempo. Vamos com calma com a martirização, Alexander.

— Sabe que ouvi dizer que todos os estudantes de Medicina tem que encher a cara antes de toda aula demonstrativa? — antes que percebesse, as palavras escorregaram da minha boca. Sem chance de retorno ou conserto. — Os... Estudantes de Biologia seguem por esse mesmo padrão? Ou não há nada com nada?

— Nada com nada — Thomas gargalhou, nervosamente. — Quer dizer, há coisa com coisa, mas também nada com nada.

— Não faz muito sentido...

— Duvido que essa tenha sido a intenção!

— Se parar para pensar, não há resposta certa ou errada — divaguei, o que fez com que Thomas risse sozinho em seu canto do dormitório. — Veja bem, é difícil esperar algo lógico como resposta a uma pergunta ilógica.

— Já vamos começar com o papo de Psicologia? — ele gracejou, erguendo uma sobrancelha. Do jeito que apenas ele sabia. — Se vamos começar, deixe-me pegar aquela bebida em primeiro lugar!

Foi minha vez de gargalhar, ainda que não tenha visto o riso chegando. Procurei me recompor, apesar de ter sido um tanto inútil disfarçar um evento raro como aquele. A parte relativamente boa foi o gelo quebrar-se aos poucos. Uma fissura pequena? Sim. Ainda assim, uma fissura com potencial.

— Pois terá de me arranjar uma também, porque tais assuntos estão provavelmente dentro do campo da filosofia... — solucei, ainda tentando parecer sério. — Usamos bem pouca filosofia em Psicologia, menos ainda os termos “coisa com coisa” e  “nada com nada”...

— Ah, céus. Parece extremamente entediante.

Percebi pelo tom de voz que Thomas estava fazendo um comentário em tom de brincadeira, como um neto imitando o avô resmungando – é um palpite, porque não conhecemos nenhum de nossos avôs. Tal pensamento me fez sorrir, mais aliviado.

— Muito, porém acho que combina comigo. Eu sou entediante — dei de ombros casualmente.

— Não é verdade — Thomas atalhou quase que de automático. — Todos dizem que é muito interessante e fácil de conversar. O problema é que é muito tímido e quase não conversa.

Franzi a testa. As pessoas diziam que eu era interessante? Por que ninguém dizia isso diretamente para mim? Thomas pareceu ler meus pensamentos, porquanto que pegou os sapatos debaixo da cama e começou a calçá-los com uma concentração maior do que a necessária.

— É verdade. Não pode fingir que não evita propositalmente falar com as pessoas, Alex.

— Faço porque penso que sempre há pessoas mais interessantes a contribuir com a conversa — falei como se fosse óbvio. Não era? — Quando estou com uma pessoa só, sou obrigado a falar.

Thomas riu baixo, calçando o pé esquerdo. Como eu deveria interpretar aquele gesto?

— Deveria fazer mais vezes. Sempre há alguém como você esperando para ser ouvido. Se não falar, como saberá se as pessoas o acham interessante sem que alguém diga isso para você?

Desviei o olhar para a carta. “Fico muitíssimo feliz por ter um tempo para corresponder-se comigo”, foi o que ela disse na carta. Era o mesmo sentido, não era...? Por que sempre temos de esperar alguém de alta estima nos dizer como somos? Nunca nos atribuímos nossas verdadeiras qualidades até que outra pessoa o faça.

Seres humanos são mesmo estranhos...

— Pense nisso — Thomas acrescentou, pondo-se de pé. — Eu... Hum... Vou indo. Nós continuamos depois, eu acho.

— Claro! Claro, eu... É! Sim, claro.

Patético. Viu só? Era nisso que dava questionar minhas habilidades linguísticas. Tudo regredia para o primitivo.

— Bom relaxamento — acrescentei, praticamente balbuciando.

Apesar disso, Thomas sorriu. O sorriso de sempre, como se quisesse convencer de que estava com tudo sob controle. Adele sorria do mesmo, bem como o tio Thierry – seria essa a maldição do irmão mais velho? – Então, jogou o casaco por cima dos ombros de qualquer jeito e, antes de sair, resgatou uma caderneta de cima do monte de papéis para as provas.

Espere. Se Thomas estava indo relaxar antes das provas, por que estava levando a caderneta junto?

Algo instalou no fundo da mente, como uma ideia que martela e não dá descanso até que a façamos.

Recordei-me de todas as vezes que segui Thomas através dos jardins escondidos de Bloomsbury. Apenas de não me afeiçoar à natureza em geral, eu o seguia. Novamente, a comichão de infância fez minhas mãos formigarem de ansiedade. Quando menos esperava, lá estava eu amarrando os cadarços dos sapatos.

A curiosidade matou o gato, Alexander.

Por sorte, eu não era nenhum felino.

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Cambridge tinha bem mais áreas verdes do que Bloomsbury, isso era fato. Porém, era fácil passar despercebido com uma aparência comum. Em prática, olhos verdes e porte físico mais atlético chamam mais atenção numa silhueta masculina do que olhos castanho-escuros – quase pretos, eu devo dizer – e físico esguio. Ao menos, na parte de cima. Quer dizer, acho que talvez eu chamaria de "normal". Ah, meu tipo físico não é importante.

Bem, temos três centímetros de diferença, na altura... Consola-se.

O que quero dizer é que, quando eu e Thomas caminhamos por um jardim, ainda que seja uma área pública, Thomas atrai alguns olhares indesejados. Já eu, não. É por isso que não faz sentido que nas histórias investigativas o protagonista detetive seja sempre bonito e atraente... Pessoas assim sempre atraem olhares.

Quando ele sentou-se num banco, imitei a ação no banco adjacente. Agradeci por boinas estarem em voga, apesar de não me afeiçoar a elas, porque podia muito bem abaixar um pouco a aba para olhar o que acontecia ao redor. Ao fazer isso, vi que uma figura familiar aproximou-se e sentou-se ao lado de Thomas.

Céus... Aquela era Alice. O que Alice fazia do outro lado do mar? Ela e Thomas não tinham terminado?

Talvez eu fosse péssimo em deduzir coisas, afinal de contas. Deixemos as investigações para os detetives bonitos e ilógicos.

Observei enquanto Thomas retirava a caderneta do bolso interno do paletó e virava-a para que pudesse ver suas anotações. Franzi a testa enquanto Alice perscrutava o local com os olhos – talvez devesse ter deixado aquele bigode crescer, afinal de contas. Apesar de suspeitar, Alice negou sozinha com a cabeça e voltou a observar o que Thomas a indicava.

Certo, eu não estava tão enferrujado assim.

Amantes, não. Parceiros de negócio, talvez?

Mas então por que precisavam fingir um relacionamento em Paris?

E por que Thomas ficou tão zangado quando Alice me beijou?

Pontas soltas. Adele saberia continuar o raciocínio... É por isso que preciso voltar logo. Talvez eu tenha mesmo algumas novidades a guardar pela curiosidade.

É também por isso que me levantei e fui embora, de volta para Cambridge. Toda minha relação com Adele começou por “culpa” de Thomas. Estava na hora de deixar que o fantasma dele parasse de me assombrar. Se continuasse a segui-lo através do jardim, perderia meu banco na sombra. Era assim que funcionava. A informação estava bem ali, eu só precisava de tempo para que ela voltasse para mim. Enquanto isso, deixaria Thomas com seus passatempos peculiares.

Era hora também de atuar um pouco. Se Thomas quisesse consertar as coisas, precisava acreditar que eu continuava o mesmo bobão. O problema era que, como dito anteriormente, Psicologia contava com um tanto de filosofia... E eu tinha a minha.


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Notas finais do capítulo

Lá vem a Alice, descendo o morro do vô George V...
Pois é, todos nós estamos dispostos a ter falhas de interpretação. Será se Alexander precisa tentar uma abordagem mais direta?
Até o próximo ♥



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