(Re) Nascer escrita por EsterNW


Capítulo 4
Faces familiares


Notas iniciais do capítulo

Música do capítulo: O Tiro de Scatolove.



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Pode-se dizer que duas semanas são o suficiente para algumas pessoas se acostumarem a uma mudança na rotina. Dependendo do quão brusca for, é claro. Lysandre com certeza não era uma dessas pessoas, mas, poderia afirmar que a mudança com a chegada de Fausto e Clarice eram muito bem vindas.

A moça aparecia na fazenda dia sim e dia não, trazia o colostro, checava o bezerro e aproveitava para conversar com seu antigo amigo, mesmo que não por muito tempo, já que Lysandre tinha muito o que fazer na fazenda.

Naquela tarde de terça-feira, o fazendeiro contava apenas com a companhia de Chico. Ou ao menos o faria quando o caseiro terminasse de cuidar da plantação. Naquele meio tempo, Lysandre olhou para o relógio da sala e recordou-se que era hora de alimentar Fausto. Em posse da mamadeira com o leite para o animal, passou pela cozinha, onde Dragon arranhava a porta que dava para a varanda dos fundos. Ao abri-la, o pastor de beauce saiu trotando com calma, esperando o dono do lado de fora. Como não tinha tempo para brincar com o animal, apenas passou de largo, fazendo uma breve carícia na cabeça do cachorro, e encaminhando-se para o curral.  Distraído, sequer percebeu quando Dragon o seguiu de longe.

Na construção de madeira, entrou na primeira baía, deparando-se com Fausto encolhido em seu canto. O animal logo percebeu que tinha companhia e tentou caminhar para ele com seus passos trêmulos e desengonçados. Lysandre sorriu com a graça — ou a falta dela para caminhar — do bezerro e abaixou-se, pronto para dar a mamadeira na boca do animal, que sorvia com gosto, chegando a manchar de branco o pelo preto em volta da boca.

— Logo você poderá ir lá para fora, Fausto — Lysandre conversou com o animal. Algumas pessoas poderiam dizer que eles não o entediam, já o fazendeiro, porém, acreditava que sim. — Logo será forte o suficiente. 

Ele olhou para os olhos negros do animal e poderia dizer que eles brilhavam de curiosidade. Coisa de bebês.

O momento doce, contudo, foi interrompido quando ouviu os mugidos de Julieta, em sua baía mais para o final do curral. Clarice fora incisiva quanto a manter mãe e filho separados e seguiam à risca as instruções da doutora. Mesmo assim, parecia que Julieta estava estressada naquele dia. Lysandre entendeu o motivo quando ouviu um ganido de cachorro.

Aproximando-se, viu Dragon fugir para longe e ainda teve que correr atrás dele. Fora do curral, foi capaz de alcançá-lo. Virando o rosto do animal assustado, viu o machucado sangrando no focinho do pobre.

— O que você foi aprontar... — perguntou como se o cachorro fosse responder.

Não era muito difícil de deduzir o acontecido ali: Dragon o seguiu até o curral, chegou próximo à baía da vaca e, curioso, subiu na porteira, incomodou Julieta e levou um coice do animal. Por sorte não era tão grave assim, mas, era melhor prevenir. Sabendo que Chico estava ocupado com os vegetais, cabia a ele mesmo resolver.

Deixando o animal deitado sobre o sofá da sala, e certificando-se que dessa vez a porta estava fechada, precipitou-se para a fazenda vizinha. Em questão de alguns minutos, atingiu a porteira com a tinta que descascava. Abriu-a, entrando na propriedade e caminhando um pouco, até encontrar uma senhora alimentando os porcos. Quando ela ergueu o rosto, logo reconheceu Marina, filha mais nova de dona Gleice, com seus cabelos castanhos presos em um coque.

— Lysandre — ela disse o nome do rapaz, espantada por vê-lo na propriedade da família. Não que ele não fosse bem vindo ali, apenas fazia muito tempo que não via uma cena como aquela. — Aconteceu alguma coisa? — questionou, saindo do chiqueiro dos porcos. Já que o fazendeiro sequer visitara os próprios vizinhos em meses, era de se deduzir que estava ali por algum motivo.

— Clarice está? Meu cachorro se machucou e preciso da ajuda dela — ele pediu, um pouco receoso de que não fossem gostar de sua presença ali. Era apenas impressão dele.

— Ela tá cuidando das galinhas nos fundos, vou chamar. — Marina começou a avançar na direção da enorme residência da propriedade. — Pode entrar, não precisa ter vergonha— ela convidou e Lysandre seguiu-a, apenas ofertando um sorriso como resposta.

Os dois se separam quando atingiram a entrada da residência, com o rapaz esperando do lado de fora e a senhora dando a volta para os fundos. Ele observou a fachada branca, percebendo que precisava de uma pintura. As janelas eram adornadas por cortinas limpas do lado de dentro, onde era perceptível o cuidado das moradoras. Suas observações foram interrompidas quando a porta abriu.

— Lysandre? Mas que surpresa, menino! — Dona Gleice logo apareceu com seu menos de 1m60, dando um abraço surpresa e quentinho no fazendeiro. Ele devolveu, passando os braços ao redor da senhora. — Faz mais de meses que eu não te vejo, por que você não veio visitar a gente? — ela cobrou, como se fosse um ultraje.

— Andei muito ocupado com a fazenda, desculpe — ele pediu, oferecendo um sorriso fraco.

— É muito trabalho pra você, né? — A senhora tentou puxar a manga puída da camisa do rapaz. — Mas entra, vamos tomar café e comer um bolinho, acabei de assar...

— Eu vim chamar a Clarice...

Lysandre sequer precisou terminar a explicação, pois a veterinária em pessoa apareceu, dando a volta pela casa.

— Lysandre? Aconteceu alguma coisa? — ela perguntou e Marina, sua tia, passou por trás e entrou para a casa, carregando uma cestinha com ovos.

— Dragon se machucou, gostaria que você desse uma olhada nele, se não for incômodo... — Clarice arqueou as sobrancelhas, questionando de que bicho ele falava. — O cachorro.

— Espera aqui. Eu só vou lavar a mão e pegar minhas coisas — a veterinária afirmou, entrando pela porta que a tia passara.

— Coitadinho, o que ele tem? — dona Gleice perguntou, ficando apenas os dois do lado de fora.

Lysandre resumiu brevemente o acontecimento minutos antes e a senhora soltou exclamações de “tadinho” e seus derivados, até que a neta reaparecesse porta afora carregando a bolsa de couro, visivelmente mais cheia do que as últimas vezes.

— Vamos? — ela inquiriu, começando a seguir o caminho para fora da fazenda dos Guimarães.

— Volta mais vezes, viu? — Dona Gleice fez questão de se despedir de Lysandre com um abraço e beijo no rosto. — Vou fazer um bolinho pra você e pro Chico. — Quando ele começou a se afastar, acenou para o fazendeiro, que seguiu a veterinária.

— Ela vive perguntando de você, agora que eu vou sempre lá — Clarice comentou, olhando para trás e se despedindo da avó com um aceno. A senhora logo voltou para dentro da casa. — E reclamando que você não vem mais visitar a gente.

Clarice ouviu a mesma resposta que Lysandre dera à avó minutos antes.

— Foi isso que eu disse pra ela. Falando nisso, como andam as coisas por lá? 

A porteira foi aberta quando a dupla finalmente atingiu o limite da fazenda dos Guimarães. Teriam alguns poucos minutos de caminhada pela estrada de terra até a fazenda vizinha. Ventava, indicando que voltaria a esfriar no final daquela tarde de outono, mesmo que o sol ainda estivesse presente.

— A colheita foi excelente nos últimos meses, para nossa alegria. O inverno parece que será um pouco rigoroso esse ano, vai acabar apertando um pouco as coisas. — Com o frio das noites e manhãs de outono no mês de junho que acabava de começar, era uma pequena amostra do que viria mais para o final do mês.

— Logo logo vocês vão poder voltar com o queijo também — Clarice respondeu e ficaram em silêncio um pouco. Era uma sensação estranha, afinal, a conversa entre os dois costumava vir tão facilmente... Agora, a veterinária sempre ponderava quais tópicos trazer ou não, um pouco insegura naquela amizade. Não sabia exatamente dizer por quê. — Eu nem sabia que você tinha um cachorro. Nunca vi ele por lá.

— Dragon prefere ficar dentro de casa, poucas vezes sai — ele respondeu, abrindo a porteira da própria fazenda e deixando que a amiga entrasse, fechando em seguida. 

— Que raça é?

— Pastor de beauce.

— Estranho isso...

— Dragon tem estado um pouco amuado desde que veio morar na fazenda. — Mesmo sem falar nada, Lysandre foi capaz de ler a pergunta na expressão de Clarice. Com os passos largos dos dois, demorou pouco para que passassem pela horta e pela área dos animais. — Dragon pertencia a um amigo da capital. Ele teve que deixá-lo para trás para seguir em turnê com a banda.

— Bem, tá explicado porque ele tá tão amuadinho assim... — A dupla subiu os degraus de acesso à varanda da frente da casa.

Ao entrar na sala de estar, Clarice deparou-se com um cenário parecido do que se recordava em suas lembranças de infância na casa do amigo: os dois sofás com uma capa de retalhos, uma cadeira de madeira, a mesa de centro com alguns retratos e bibelôs, o tapete bordado no centro da sala, uma pequena estante com alguns livros e mais alguns bibelôs, o rack com a TV de 14 polegadas e, pendurado na parede acima, um retrato daqueles clássicos, com a moldura ovalada e uma fotografia antiga de George e Josiane, da época em que o casal ainda tinha poucos cabelos brancos. Até as paredes todas brancas pela residência ainda eram as mesmas, com uma pintura que durava por todo aquele tempo.

— Vamos cuidar desse machucado que dona Julieta fez em você, Dragon? — Clarice conversou com o cachorro e sentou-se no sofá em que o pastor de beauce estava esparramado. Lysandre claramente não se importava com o animal subindo nos móveis. — Não é nada grave, ainda bem — disse, analisando o ferimento no focinho.

Abrindo a maleta, a veterinária pegou o que precisava, limpando o ferimento com uma gaze umedecida em um produto. Lysandre sentou-se no outro sofá, observando-a.

— Dragon parecia realmente deprimido nas primeiras semanas na fazenda. Mas tem apresentado alguma melhora recentemente — ele relatou, no que Clarice respondeu com alguma orientação, voltando a trabalhar em silêncio. 

Mesmo que não soubesse o que se passava na mente de Clarice, Lysandre era da mesma opinião da amiga, estranhando aqueles minutos de silêncio que, outrora, não eram comuns entre eles. Depois de anos sem se verem, ainda procurava um modo de trazer a naturalidade de antes. Talvez o problema fosse ainda não saber como lidar com suas novas versões. A vida mudava as pessoas, trazendo novas facetas com o passar do tempo.

Finalizando a limpeza com a gaze e um curativo feito cuidadosamente, Clarice revelou o porquê sua bolsa estar mais estufada do que o normal, retirando de lá um colar elisabetano. Lysandre se perguntava como aquilo coubera ali.

— Dragon vai ter que usar o colar por alguns dias, até o machucado sarar. — Colocando o “cone” em volta do pescoço do animal, ainda deu mais algumas instruções quanto à troca do curativo. 

Após todo o momento explicativo, retornaram novamente para o silêncio. Clarice mordeu o lábio enquanto fechava a maleta e suspirou, olhando para o retrato antigo sobre a TV. Ela sorriu com a lembrança daquele casal que gostava tanto e que a tratou com tanto carinho na infância.

— Como você consegue ficar aqui com tanta foto? — ela perguntou sem filtro, deixando de lado os ovos que pisava com alguma frequência quando conversava com o fazendeiro. Clarice se arrependeu da pergunta assim que viu o cenho franzido de Lysandre. Pelo visto, seria mais difícil alcançá-lo do que antes.

— Gostaria de tomar um café? Chico subirá em breve e vou passar o café para ele — o fazendeiro desviou do assunto com rapidez, aproveitando que o pequeno relógio sobre a mesa de centro mostrava que passava um pouco das dezesseis horas.

— Adoraria. Só vou jogar isso fora e lavar as mãos, tudo bem? 

Lysandre assentiu e partiu para a cozinha, deixando-a sozinha com Dragon. Passado o susto, o cachorro parecia mais inclinado a dormir do que qualquer coisa.

Clarice olhou mais uma vez para os retratos, sentindo-se assistida pelos olhares familiares. Querendo deixar logo para trás aquela sensação, saiu do cômodo.

 

 


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Notas finais do capítulo

O Tiro, Scatolove: https://youtu.be/QRg7oKB5EtI
E agora conhecemos o núcleo da fazenda Guimarães, o que acharam da família da Clari? Teremos mais delas por aí ♥
Até mais, povo o/



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