Reino em Cinzas escrita por Julia A R da Cunha


Capítulo 2
Soluço




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O ar do alto daquelas montanhas era bem frio e úmido, mas nada com o que não estivesse acostumado. Além disso, a visão que Soluço tinha dali valia a pena. As florestas se estendiam como um manto esmeralda, com algumas clareiras aqui e ali que revelavam ou belas pradarias ou grandes lagos espelhando os céus. Ao fundo, conseguia identificar a movimentação e algumas construções típicas de uma vila. Sentiu uma ponta de remorso ao imaginar se sequer sabiam do que se aproximava, mas tentou afastar os pensamentos e continuar admirando a paisagem.

Dunbroch realmente era bonito. Ainda assim, o caminho até ali fora custoso.

A viagem da nova Berk até a terra dos pictos teve de ser feita por drakkares, já que os dragões tinham ido embora. Outro problema era traçar as novas rotas para todos os lugares conhecidos anteriormente. O mapa que tinha montado ajudava em alguns quesitos, mas a tarefa ainda era árdua. Apenas depois de meses, com a vila quase reconstruída e já casado com Astrid, foi quando reencontraram os comerciantes e lhes explicaram tudo o que acontecera. O problema é que não tinham ouro o suficiente para o que precisavam, e muitas coisas ainda faltavam nos estoques. Foi então que as conversas sobre saques começaram.

Ninguém mais estava acostumado ao mar como antes, mas ele sentia que seu martírio era um pouco mais duro do que o dos outros. Depois de tantos anos nas costas de Banguela, ser obrigado a ficar no chão era o mesmo que estar trancado numa cela.

Soluço respirou fundo, soltando o ar com peso. Precisava voltar agora.

Não demorou muito para desejar novamente que seu companheiro estivesse ali; aquela descida era longa e íngreme demais para um rapaz sem uma perna, além de ter o solo coberto de raízes e gravetos. Subir aquilo tinha sido mais fácil e parecia uma ideia melhor no começo.

O céu já estava escuro quando chegou no acampamento. As pessoas ainda zanzavam de um lado para o outro com caixas, lenha, armas e mil outros utensílios. Aquele local já abrigava os povos de três regiões diferentes antes de chegarem, e agora juntavam a correria das batalhas com a da formação de assentamentos e o abrigo aos que chegavam.

De uma das cabanas não muito longe conseguia ouvir as vozes dos outros jarls e guerreiros numa mistura de exaltação de guerra, álcool ou qualquer coisa da vida, o que resumia bem como era conversar com aqueles homens. Lembrou-se de seu pai naquele momento. Steinur nunca foi dado ao exagero da bebida, apesar de aqueles ao seu redor engolirem o líquido com avidez. Mesmo assim, ele se mantinha centrado, calmo e conseguia levar o diálogo ao seu objetivo. Agora, precisava mais uma vez aprender com o pai e tentar seu melhor na cabana.

A primeira coisa que sentiu ao entrar foi o calor confortável que emanava das várias velas acesas acompanhado do outro calor desconfortável do sangue subindo ao rosto em reação à pausa na conversa para encará-lo. Soluço prendeu o ar nos pulmões como se isso o ajudasse a se manter impassível. Não podia cometer um deslize, não ali. Todos ali eram chefes experientes, seja de um povo, de uma tripulação ou um exército, e não ajudaria em nada ser visto como um menino cuja única vantagem é um dragão – ou melhor, era. Cumprimentou os outros com um movimento com a cabeça e todos o responderam antes de continuar.

— O reino é pequeno e não é tão rico quanto os outros, mas talvez isso seja uma vantagem para garantir uma tomada rápida — um deles dizia, um homem alto e carrancudo, com rajadas grisalhas pelos cabelos loiros. Mais cedo, tinha se apresentado como Ramond, um jarl assim como Soluço. — Eles têm muitas fazendas que podemos saquear e garantir suprimentos de sobra. Meus homens ainda estão buscando por monastérios, mas não encontramos muitos. Lá com certeza haverá ouro.

— Ou poderíamos tomar alguma cidade — sugeriu outro deles, Einar. — Há alimento, ouro, abrigo, armas, muitas coisas que vamos precisar.

— Atacar as cidades primeiro é arriscado demais — Soluço se pronunciou antes mesmo de pensar. Mais uma vez, os olhos caíam sobre ele e, mais uma vez, precisou ignorar o nervosismo. — Se tiverem muralhas e um exército organizado, um cerco seria quase suicídio, e chamaria atenção de cidades maiores com exércitos maiores que com certeza responderiam. Atacar as fazendas e monastérios é mais garantido, quase não vai ter resistência. Não podem monitorar todas as propriedades de uma vez e se fizermos direito podem ficar um bom tempo sem saber do que houve, tempo suficiente para reunir espólios e construir os assentamentos. Antes de perceberem, os nobres estariam cercados por todos os lados.

Ramond assentiu, calado. Soluço conseguiu respirar aliviado por um momento, apesar de Einar parecer estar levemente contrariado e os outros ainda pensativos. Não conseguia deixar de pensar que a seriedade repentina era culpa sua, o forasteiro da situação.

— Não se esqueça que ainda precisa cumprir sua parte, chefe Soluço — Einar terminou a frase em tom de deboche, mas ele ignorou. Já estava acostumado com aquilo, apesar de ter que se lembrar da sua parte lhe trazer péssimas lembranças e um grande conflito interno.

A ida até aquelas terras foi definida não apenas pelos espólios, isso poderia ser conquistado em qualquer lugar. Mas as mensagens recebidas com urgência eram claras: dragões foram encontrados escondidos naquelas matas e nas centenas de ilhas que rodeavam a costa oeste e norte. E depois da derrota de Drago e Grimmel, todos já tinham ouvido falar sobre a tribo que domava dragões, mas não compartilhavam dos ideais de Berk. Pelo contrário, se assemelhavam muito mais aos seus antigos inimigos. Sua tribo seria aceita nas batalhas, dividiria com eles os espólios conquistados e teria a chance de construir novos assentamentos para os que quisessem ficar, desde que Soluço domasse os animais encontrados e os usasse na guerra.

— Não me esqueci — respondeu com firmeza. — Por isso mesmo precisamos de tempo se é que ainda querem dragões do nosso lado do campo de batalha, o que com certeza vamos precisar quando os reinos vizinhos ficarem alertas com a nossa presença. E preciso saber onde exatamente viram os dragões.

— Posso te levar em alguns lugares — disse uma das poucas mulheres ali. Devia ser pouco mais de vinte anos mais velha do que ele, mas seria tolo se duvidasse do seu vigor e força. — Sou Hilde, é uma honra finalmente conhecê-lo, chefe. Ouvi muito sobre seus feitos. Podemos ir até os locais assim que terminar de se instalar.

— Obrigado.

— Eu e meus homens começaremos os saques — Einar anunciou. — Há uma vila aqui perto e algumas fazendas para o outro lado.

— Também levarei os meus — disse Ramond. Alguns dos outros se pronunciaram a favor, enquanto outros apenas balançavam as cabeças, justificando que ainda tinham muito a fazer com seus povos. Nisso, Soluço se sentia incluído. — Então está acertado. Bem, é bom avisar a todos agora.

Todos concordaram em uníssono e se levantaram, saindo lentos da cabana para a noite agora mais fria do que antes. De um dos lados do acampamento, podia sentir um odor doce e encorpado, e realmente, uma fumaça esbranquiçada se enroscava no ar vindo daquela direção.

Soluço já sabia muito bem o motivo e não ficou nem um pouco surpreso ao encontrar seu avô sentado diante de uma fogueira carregada de alguns ramos e folhas de ervas que nunca se lembrava dos nomes após alguns minutos de caminhada. Outras ainda estavam seguras em suas mãos magras cheias de rugas, abraçadas perto do corpo como um grande tesouro. Por algum motivo, ele realmente adorava o odor das ervas ao serem queimadas. O velho ruminou olhando para o fogo. Quando mexia a boca ou fazia qualquer expressão, suas marcas na pele pareciam formar novos desenhos. Já tinham começado a chamá-lo de Velho Enrugado desde antes de Soluço nascer, e alguns dos habitantes mais novos da vila sequer sabiam seu nome verdadeiro. Sua mãe ainda poderia ser considerada jovem, mas o avô já não o era quando ela nasceu e não tardou a receber o apelido.

— Dá pra sentir o cheiro de longe.

— Ótimo. O aroma é bom, deviam aproveitar! — Soluço riu com a resposta.

— Qualquer dia desses ainda vai causar um incêndio ou sufocar alguém.

O velho se mexeu, virando o corpo para olhá-lo de cima a baixo.

— Você me respeite, menino.

— Certo. Devia entrar logo na cabana. Está muito frio aqui para o senhor, depois vai ficar doente e de um jeito feio, e vai ficar aí dando trabalho.

— Tá, tá, já vou — gesticulou, como se jogasse o assunto para longe. O velho respirou fundo e coçou a barba branca e desgrenhada que descia até o peito. — Quero terminar de aproveitar a noite desse lugar.

Suspirou. Sempre que falava assim só lhe restava sentar e esperar mais alguns minutos sentado ao seu lado. Da cabana ao lado, Astrid saiu já coberta com um manto de peles e se aproximou de braços cruzados, sentou-se do lado de Soluço e deu-lhe um beijo rápido no rosto. Com uma das mãos, o Velho chamou a atenção do neto daquele jeito calmo e paciente de sempre.

— E como foi naquele covil de lobos?

— Ah! Hm... acho que bem, mas covil de lobos é um bom nome para aquilo. Vão saquear uma vila e umas fazendas, acho que amanhã ou talvez durante a madrugada mesmo, não sei. E uma tal de Hilde vai nos levar até os dragões.

— Quando? — Astrid perguntou. Ele deu de ombros.

— Disse que em breve.

Os três ficaram em silêncio, admirando as danças das chamas. A fumaça lhe ardia os olhos e não demorou para que fizessem aumentar ainda mais a sensação de cansaço. De todo modo, o dia tinha sido exaustivo e o próximo reservava ainda mais questões a resolver.

— Vamos dormir. Ainda temos que organizar todo mundo amanhã e ver para onde vamos seguir.

Dessa vez, os dois concordaram e se levantaram. Outras duas famílias estavam abrigadas naquela residência, uma delas já completamente adormecida. A cama de palha pinicava, mas por enquanto era como um leito divino, e logo já estava inconsciente. Não soube discernir se fora em sonho ou na realidade das horas seguintes da noite, porém em algum instante pensou ter ouvido à distância gritos desesperados e risadas de êxtase.


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