Reino em Cinzas escrita por Julia A R da Cunha


Capítulo 13
Merida




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A princesa se ergueu em um salto. A visão da pena logo à sua frente fez sua respiração vacilar e manteve viva a memória da mulher guerreira com manto de penas. Tinha também a outra... Ela lutou com sua própria memória para não se esquecer de nenhum detalhe do que vira, chegando a repetir baixinho as imagens do sonho.

Pouco tempo depois, ouviu as meninas resmungando, se revirando e se sentando nos colchões. Merida mordeu os próprios lábios e continuou com seu mantra mentalmente.

“Seu treinamento começa amanhã” a mulher das chamas dissera. Que treinamento?! Uma parte de si queria sair correndo pela porta e investigar por onde aquela pena poderia ter entrado, ou talvez buscar por Sean para que fosse conversar com o Velho e perguntar mais sobre o que ele fez com ela no dia anterior exatamente.

Mas...

A imagem do crânio aberto de uma moça inocente apavorada congelou os seus músculos, o vermelho tão vivo e grosso do sangue escorrendo pelas pedras. Merida sabia racionalmente que não teve nenhuma responsabilidade sobre a morte de Verctissa, que tudo foi o resultado de maus entendidos e medo. E ainda assim, por dentro... Talvez, se não tivesse sido tão imprudente de sair escondida pelo assentamento, de não fazer com que uma correria se iniciasse e chamasse atenção das outras meninas... Talvez...

Ela tentou respirar fundo apesar do fôlego entrecortado.

— Minha penitência acabou — sussurrou a si mesma com as mãos fincadas entre os cabelos, segurando a própria cabeça. — Acabou.

No fundo de seus pensamentos, a voz profunda do Velho recitando as palavras misteriosas ecoou mais uma vez. O nó em seu pescoço soltou-se um pouco. De todo modo, seguiu a lição que aprendeu com a tragédia e se manteve no lugar enquanto esperou não tão pacientemente para que cada uma acordasse e pelos toques leves na porta, chamando-as para o café da manhã.

O começo do dia foi como os outros tinham sido com uns poucos adicionais. Os rapazes dormiram ali, aparentemente, já que ainda circulavam pelo recinto com olhos inchados de sono e movimentos preguiçosos. Daquela vez, porém, cada um ajudou a preparar um pouco da comida e a servir tudo na mesa. Merida nunca foi muito boa nos ensinamentos culinários, por mais esforços que sua mãe a tentasse oferecer. Se tinha algo que não errava – e se julgaria realmente uma negação se errasse – era com fatias de pão frito, ovos e mingau, e foi no que tentou trabalhar ali no grande salão. Não era comum que uma princesa aprendesse essas coisas – geralmente os servos preparariam tudo para ela e sua família – mas a rainha via certo valor em saber preparar uma refeição por si próprio. De fato, o pouco que aprendeu já a ajudou quando se bandeava pelas florestas durante um dia inteiro e a fome apertava.

A refeição continuou em grande parte silenciosa, a não ser por alguns comentários aqui e ali. Depois de alimentados, os nórdicos seguiram para o lado de fora com seus treinamentos de armas e com os dragões, e as meninas ficaram ali mais um pouco para repetir as palavras nórdicas que Sean as ensinou no dia anterior e aprender outras novas. Agora, saberiam dizer oi e tchau, por favor, obrigado e “venha”.

Como no dia anterior, ela fez questão de repetir cada palavra e som que aprendia, ainda mais agora que sua mente deslizava a cada oportunidade para a visão das duas mulheres na clareira. Não queria se deixar perder nenhuma informação, linguística ou onírica.

E então, elas foram liberadas para fazer o que bem entendessem. Merida pegou gosto em ficar para fora, já que agora poderia fazer isso sem problemas. Os dragões sobre os telhados ainda tinham um quê de aterrorizantes, mas tentou ignorar suas presenças e seus olhares reptilianos. O dragão de Soluço, que tentou se aproximar dela dias antes, ainda a encarava à distância com curiosidade, emitindo aqueles sons esquisitos do fundo da garganta quando ela aparecia.

O que realmente a interessava eram os treinamentos. Dessa vez, os lutadores eram Astrid, o rapaz moreno e um outro, uns anos mais jovem e uns bons quilos mais magro, que parecia uma mistura curiosa do chefe e do moreno de nome estranho. Seria outro primo que não tinham mencionado? Um dragão menor e mais esguio o acompanhava com movimentos rápidos de cabeça, sem perder um único movimento. Pelo visto, ele também era um cavaleiro de dragão.

Mesmo assim, Merida percebeu que não conseguia prestar tanta atenção ou experimentar tanta empolgação quanto no dia anterior. Seu treinamento começa amanhã. As palavras ecoavam na sua memória, carregadas de uma eletricidade ansiosa no fundo do estômago.

Uma luz azul piscou no canto de sua visão.

Merida girou o corpo para à esquerda talvez até rápido demais. Pela visão periférica, vislumbrou uma ou duas pessoas a observaram por alguns segundos.

Nada. Apenas casas e árvores.

Merida bufou. Mas então outra luz piscou de forma espectral, logo atrás de uma das casas na diagonal do salão. Não foi uma alucinação!

Ela vasculhou o ambiente ao seu redor, em busca de qualquer um que pudesse acabar a impedindo de seguir o seu caminho. Afraig, Muire, Deirdriu e Brigit estavam sentadas nos bancos do outro lado da porta, conversando e assistindo distraídas a luta à sua frente. Não viu Soluço, Töffe, Fiskebein ou o Velho em lugar algum, apesar de os seus respectivos dragões – menos o de Töffe – estarem sobre suas casas. Sean estava do outro lado da praça, também conversando com outras pessoas que ela não conhecia.

Estava livre.

Sem pensar duas vezes, porém movimentando-se com mais calma e naturalidade, Merida foi até onde viu a bola de luz. Assim que seus pés pisaram sobre a grama, o companheiro mágico reapareceu na altura de seu peito. Ela ouviu o som leve de um sopro e os sussurros baixos ininteligíveis que ela achava ser a voz daquela criatura.

A luz dançou à sua frente e rodopiou para mais adiante, entre as árvores. Merida continuou o seu percurso, com ocasionais olhadelas para trás, medindo quantos metros já andara e por quais árvores ou rochas passara. Por fim, não muito longe, chegaram a uma rocha gigantesca e larga, maior do que Mor’du quando ficava de pé e mais larga do que dois cavalos frente a frente. Musgo e orvalho a cobriam, dando-lhe uma aparência quase mágica e selvagem.

A luz flutuou ao redor da rocha e assim a princesa também o fez.

Daquele lado, a pedra se curvava como uma pequena sala, e outras menores davam a impressão de possíveis assentos.

E, ali, coberta por um manto negro de um tecido puído, uma mulher a aguardava. Os cabelos negros molhados por alguma chuva que Merida não presenciou caíam sobre seu torso. Sua face era austera e angular, com um longo nariz reto, olhos escuros pequenos, maçãs do rosto pronunciadas e um queixo fino; intimidadora e ainda assim belíssima como tinha ouvido falar que as estátuas da antiga Roma eram.

A mulher lhe sorriu com os lábios finos.

— Olá — cumprimentou, revelando uma voz grave e baixa, porém com um toque musical. Ela soava calma, quase distraída. — Creio que é você quem estou procurando.

Merida respirou fundo com uma mão sobre o peito.

— Pode ser. E quem é você?

— Pode me chamar de Seiliegh. Recebi um aviso de que havia alguém aqui que precisaria de orientação. Agora, te olhando e sabendo que os espíritos te trouxeram até aqui, deve ser você mesmo.

— Aviso? De quem?

Seiliegh reprimiu os lábios para formar um sorriso reflexivo, porém intrigante, como se Merida tivesse tocado em um assunto muito mais profundo do que esperava que fosse. Os olhos da mulher desceram e percorreram o chão antes de encontrarem os seus, mostrando que eram muito mais reluzentes – e, também, muito mais negros – do que jamais vira.

Ela se ajeitou sobre a pedra e repousou um cajado que a princesa não notou antes ao seu lado, apoiado no chão. Suas mãos se uniram antes de começar a falar em um gesto que a fez pensar em sua mãe pouco antes de um pronunciamento.

— Veja bem... Como já deve ter percebido, nosso universo não possui só o mundo que você conhece. As luzes mágicas, como seu povo as chama, ou os espíritos estão aqui e aparecem para algumas poucas pessoas em determinados momentos de suas vidas. Geralmente, isso só acontece quando se tem uma certa conexão com o Outro Mundo, seja por ela já pertencer àquela pessoa ou por alguém ter sinalizado que... “ela pode entrar”, ou, é claro, quando você busca por uma forma de contato com o outro lado.

Merida estremeceu, as palavras nórdicas incompreensíveis ecoaram pelo seu crânio tais como o Velho as disse sem mal mexer os lábios. Ela sentia no seu interior que só ela ouviu o que ele disse, o que era mais assustador do que aquilo normalmente seria.

Seiliegh sorriu, como se captasse todos os seus tremores.

— Pode falar comigo, querida — ela disse. — Não precisa ter medo. Estou aqui para te auxiliar a entender tudo o que está acontecendo. E não se preocupe com o tempo. Ninguém vai perceber que você saiu de onde estava, eu garanto. Fique à vontade.

Merida engoliu em seco.

— Um velho... um ancião daqui fez... algo comigo ontem. Não sei bem o quê. Ele colocou uma mão na minha testa e falou umas coisas. Depois... Eu tive um sonho que não é como os sonhos costumam ser.

A mulher confirmou com a cabeça.

— Sim, então esse foi o chamado. Ou melhor, é assim que eu sei que você foi indicada para começar a trilhar um caminho novo. Mas, antes de mais nada, como se chama?

Merida abriu a boca para responder e se conteve de imediato. Lembrou-se do que disse no dia anterior, sobre como os daoine sìth poderiam ter controle sobre alguém apenas com o conhecimento de um nome. Claro que não tinha certeza de que Seiliegh era uma sìth, mas era melhor não se arriscar por enquanto. Afinal, pela forma que a própria mulher se apresentou, não achava que esse fosse seu nome verdadeiro, e depois de ter conhecido uma bruxa e luzes mágicas, dragões e um velho feiticeiro, não duvidava nada que Seiliegh poderia não ser humana.

— Pode me chamar de Mealla — respondeu, parafraseando a companheira. A mulher riu com a ironia ousada.

— Certo. Mealla. Como ia dizendo, estou aqui porque me foi sinalizado, talvez por esse ancião, talvez por quem a visitou no seu sonho, que você tem potencial para começar um percurso de aprendizado. — A princesa ergueu o olhar com suspeita. Ela não disse nada sobre as mulheres que apareceram em seu sonho para que Seiliegh as mencionasse. — Mas eu também tenho percebido sua presença por aqui cada vez mais nos últimos tempos. Por acaso tem tentado aprender sobre lendas e tradições antigas?

— Sim.

— Procurar muito sobre um assunto ou pensar demais nele realmente pode trazê-lo cada vez mais para perto. Começou com isso desde que se meteu com as pedras antigas?

Um raio percorreu cada músculo de seu corpo. Merida sentiu o estômago dando uma volta dentro de si e sua respiração se entrecortou mais uma vez.

— Eu a vi naquele círculo quando tudo aconteceu. Não sei seu nome, como disse, nem nada em detalhes, mas o fato é que eu e muitos outros vimos quando um cavalo a derrubou e um dos espíritos apareceu para guiá-la. A vimos retornar acompanhada de uma ursa e depois mais tarde, cercada de guerreiros e derrubando uma das rochas. Nós podemos perceber quando coisas acontecem em certos territórios como aquele.

— E quem são “vocês”?

Seiliegh a fitou novamente com calma e curiosidade. A pergunta também deveria ter uma resposta mais complicada do que pensou, apesar de não ter esperado por explicações muito simples.

Eu sou uma mulher assim como você. Há um tempo comecei a aprender o que chamam de bruxaria. Com anos de prática contínua e árdua, pude entrar em um contato cada vez mais profundo com os Bons Vizinhos, também conhecidos como daoine sìth. Por fim, pude conhecê-los pessoalmente e aprender ainda mais sobre a natureza e sobre mim mesma. No momento em que a bruxaria apareceu na minha vida, pude entender muito melhor sobre assuntos que me ajudaram a atingir... algo melhor.

Seiliegh se levantou e caminhou em sua direção. Seus passos quase não podiam ser ouvidos sobre as folhas.

— E, se me permite dizer, se tem alguém que precisa atingir algo melhor é uma pessoa que mexeu com uma propriedade dos sìth — ela comentou com um sorriso zombeteiro e sobrancelhas erguidas — como as pedras antigas costumam ser. Foi por isso que tem pesquisado, não é?

Merida assentiu, calada. A verdade é que sua cabeça rodopiava com tantas informações e não podia negar a ansiedade de encontrar outra bruxa, ainda por cima uma que, ao menos até onde entendeu, a convidava para a feitiçaria.

— Minha mãe derrubou aquela pedra para me salvar. — Sua voz saiu por um fio. Seiliegh a fitou com olhos compreensivos. O brilho e escuridão inumanos ainda inquietavam Merida um pouquinho, mas não tinha mais certeza se do jeito ruim.

— Eu sei. Uma mãe é capaz de mexer até com o Outro Mundo para não deixar uma fera rasgar sua filha. Compreendo isso muito bem e não as julgo. Mas, mesmo assim, eles exigem um acerto de contas. Pense por esse ângulo: se alguém aparecesse e derrubasse um templo seu, ou uma casa, ainda que fosse o necessário para salvar uma pessoa amada, vocês ainda teriam que resolver como consertar toda a bagunça, não é?

A jovem suspirou, tentando relaxar a tensão nos ombros.

— É, acho que sim. Eu só quero saber o que eu preciso fazer! Sempre achei que as luzes... quero dizer, os espíritos, estivessem me guiando para o caminho correto do meu destino. Até agora foi assim que funcionaram. Mas elas me trouxeram para cá e eu ainda não entendi por quê. Eu só quero...

Merida engoliu em seco, de repente ciente de quanto tinha colocado para fora. Sua voz tremia e o nó retornou à sua garganta. A conversa sobre os saques vikings, as guerras, as pessoas roubadas e mortas, Verctissa... Os pesadelos com sombras, luzes, asas reptilianas e monstros saídos de um abismo caótico. Tudo inundava sua mente e marejava seus olhos. Ela odiava na carne sentir-se tão... fraca. Ainda mais diante de uma pessoa desconhecida.

— Eu só quero terminar logo com isso.

— Eu imagino. Bem, posso te orientar no que precisa fazer.

— E como posso confiar em você? — Disparou com uma rispidez súbita e incendiária que explodiu em seu peito. — Minha experiência com bruxas não foi lá grande coisa, e estou sendo modesta até demais dizendo isso.

Seiliegh soltou o ar com força e cansaço. Não parecia estar cansada dela, no entanto. Merida não conseguiu decifrar muito daquela mulher etérea. Em contraste, alguma coisa nela fazia com que a princesa soltasse a língua mais do que gostaria e isso era uma coisa da qual ela não gostara.

A bruxa estendeu-lhe as duas mãos. Relutante, Merida repousou as suas sobre as palmas dela, que eram surpreendentemente macias e mornas, como um bolo recém tirado do forno ou um carinho familiar. Uma onda de energia quente emanou da companheira, percorrendo os seus braços, as mãos e os dedos, chegando aos dela e invadindo-a por completo.

— Ouça com o seu coração, com a sua intuição — a voz dela ressoou por cada parte do ar. Merida não reparou que tinha fechado as pálpebras até ter seu outro sentido estimulado. Apesar do susto, não sentiu vontade de abri-las. — Seus sentidos são fortes, apurados, mais do que em outras pessoas comuns, por isso os espíritos apareceram para você tantas vezes e por isso tem esses sonhos. Ninguém te deu isso, só abriu uma porta para mais. E é com essa intuição que te fez confiar nas luzes que deve decidir daqui em diante. Claro que sensatez e desconfiança sempre são necessárias, mas nunca deixe de ouvir a voz do seu coração, que foi quem te guiou por tantos anos. Posso sentir o quanto só de tocar sua energia. O que essa voz te diz sobre mim? Diga as primeiras palavras que lhe aparecerem.

Um turbilhão de memórias e sentimentos rodopiou dentro de si. O calor da excitação ao ver as primeiras luzes azuis quando criança, o brilho em seus próprios olhos toda vez que sua mãe a aconchegava no colo para contar histórias antigas de espíritos, deuses, fadas e monstros, a vida pulsante a cada centímetro da floresta ao seu redor, cobrindo cada canto iluminado ou obscuro com energia, a troca sazonal dessa existência, de flores primaveris ao verde cheio de frutos, fluindo para o laranja outonal e o branco gélido do inverno.

— Conforto. — As encaradas intrigantes do Velho, seu riso de quem sabe muito mais do que revela, as palavras em eco que acalmaram sua raiva. Princesa feiticeira. — Curiosidade. Magia. — O som metálico das espadas se chocando em Dunbroch, a risada gigantesca do pai, os sorrisos agitados dos jovens vikings treinando. — Desafio.

— Abra os olhos.

Merida obedeceu tranquilamente. Conseguia se lembrar de quando encontrou a outra bruxa há poucos meses. É claro que foi levada até sua cabana enquanto fugia desesperada de um destino que não era o seu, mas... não é como se ela trouxesse qualquer confiança como Seiliegh trazia. Para ser honesta, só em uma situação tão urgente e impensada é que poderia ter corrido tamanho risco com uma mulher claramente não tão sã da cabeça.

Seiliegh a observava com sorriso discreto. Suas mãos quentes ainda a seguravam.

— Você quer entender por que as luzes te trouxeram para cá, o que precisa fazer para reparar o seu acidente e para proteger o seu povo. Eu posso te ajudar se confiar em mim e em si mesma. Está pronta para isso?

— Sim — respondeu, resoluta.

— O caminho não vai ser fácil. Para que possa dialogar com os Vizinhos daquele círculo, precisa mostrar para eles que está preparada e, antes de qualquer coisa, precisa saber como chamá-los mas também como se proteger. Isso demanda dedicação, treino, paciência, firmeza. Está disposta?

Merida respirou fundo. Um torpor calmo escorreu da cabeça pelo seu corpo.

— Sim.

— Os espíritos te trouxeram aqui porque precisa dos berkianos assim como eles precisam de você. Os dois só têm vantagens de uma aliança, mas ainda melhor do que isso seria uma amizade.

— E seria uma amizade de verdade se eu estivesse pensando só em como eles podem me beneficiar? — Merida indagou com uma sobrancelha para o alto. Sua voz saiu com um toque sutil de sarcasmo.

— Oh, não, não seria. Mas quer mesmo me dizer que não tem nada neles que tenha te chamado a atenção, nada que valha uma chance?

Seus olhos foram para o chão. Eles salvaram minha vida sem obrigação nenhuma de fazer isso, pensou. Mesmo sem entender suas palavras, conseguia ainda visualizar a noite em que fora capturada, na atmosfera de briga latente pairando no ar, da ferocidade de Astrid e então todos os outros dando passos à frente, não aceitando de jeito nenhum que fossem exibidas como... como... coisas.

Recordou-se do cuidado das garotas oferecendo-lhe suas próprias roupas. Melequento – esse era o nome dele! – correndo para ver se Muire não tinha se machucado ao desmaiar. Verctissa... A dor que o casal de jovens chefes exalava enquanto a ajudavam a enterrá-la de forma digna. A aceitação deles a outras mulheres assim como ela própria era – guerreiras, ferozes, imponentes.

Merida balançou a cabeça, assentindo. Sim, se interessava por eles. E, no fundo, gostaria de poder agradecer mesmo que fosse conflituoso admitir ou descobrir como fazer isso.

— Uma última pergunta: está pronta para lidar com as consequências das suas escolhas, para o bem ou para o mal?

Ela arfou, soltando o ar trêmula. Tudo o que fizera desde o seu aniversário foi lidar com consequências e se sentia tão exausta. Porém, ao mesmo tempo criara maturidade o suficiente para entender que dali para frente seria só ladeira abaixo nesse quesito.

Merida riu da própria sina. “Bem-vinda ao mundo real” quase pôde ouvir Elinor dizer. Por ela e por si, acima de tudo, a certeza inundou-a mais uma vez.

— Estou.

O sorriso da bruxa se alargou de orelha a orelha.

— Então será um prazer tê-la como aprendiz, princesa feiticeira. Me encontre aqui todas as tardes depois dos seus deveres. Vou cuidar para que o feitiço do tempo se mantenha e possa praticar sem preocupações, a menos, é claro, que queira revelar isso a alguém. Não há problema nisso, mas essas pessoas se tornarão imunes ao efeito do que faço, então escolha bem a quem vai falar.

Merida assentiu. De repente, algo dentro de si parecia quase querer saltitar de uma empolgação renovada.

— Seu primeiro aprendizado será com trabalhos de cura. Agora vá, volte para lá e aproveite o resto do dia. Te espero aqui amanhã.

— Tudo bem. Então, até amanhã.

Seiliegh gesticulou uma despedida, quase não tendo tempo já que a princesa disparou de volta para o assentamento. Um trovão de energia a impulsionou como uma catapulta. Finalmente, sentia um véu se dissolvendo de sua cabeça, revelando qual caminho seguir para o seu destino e para o que era certo.

Merida brecou com força pouco antes de chegar aos fundos do salão de novo. Mesmo com feitiço sobre o tempo, precisava agir como uma pessoa normal para não chamar atenção. Riu baixinho. Ainda assim, mal podia esperar para contar tudo às meninas e também tinha muitas dúvidas a tirar com o Velho.


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Notas finais do capítulo

Não sei se ficou totalmente claro no texto, mas os termos daoine sìth, sìth e Bons Vizinhos todos se referem aos mesmos seres. Eles podem ser chamados de todas essas formas e ainda outras mais.

Espero que tenham gostado!



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