Liberté escrita por Lehninger


Capítulo 4
Um olhar equivalente às margens de um rio que o cerceiam


Notas iniciais do capítulo

Olá!

Nos falamos nas notas finais, certo?

Para este capítulo, "Eclosion" (Alcest).

Boa leitura! ♡



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Au delà de mon corps
Au delà de ma chair
Te laisser entrevoir
Mes éctats limpides
Non humains

 

Quando eu tinha treze anos, meu pai decidiu visitar um amigo da época de sua graduação. Era em uma cidade vizinha e, ao contrário do que imaginei, a viagem foi rápida. Duas horas de carro e eu nem havia conseguido pegar no sono. Tudo aconteceu em um sábado e minha mãe decidiu ficar em casa, pois tinha coisas importantes a fazer. Ela era contadora e costumava adiantar trabalho em seu tempo livre.

Meu pai, por sua vez, era arquiteto. Por todos os cantos de nossa casa, podiam-se ver plantas; que, ao invés de gerarem uma bagunça, soavam como a mais harmoniosa decoração. Na realidade, tal era a intenção. Os melhores trabalhos dele estavam emoldurados em uma parede ou outra; em suas palavras, era para lhe inspirar quando precisasse. Ademais, também era do agrado de minha mãe.

Os traços de meu pai eram os mais belos já criados pelos dedos de um ser humano. Ainda quando eu era uma pequena criança que mal conseguia estruturar as próprias palavras, mostrava a admiração pela arte que me rodeava. Mas, aproveitando que mencionei o fato de ter dificuldade em falar, devo explicar que não se trata de uma mera expressão para exemplificar minha idade na época. Além de ter demorado mais do que as outras crianças para começar a falar, desde cedo mostrei sinais de disfemia. Para minha mãe, a solução para o problema era simplesmente me fazer ter medo de gaguejar; o que contribuiu apenas com aparecimento do nervosismo e pequenos traumas que me acompanharam até certa etapa da vida adulta, mas que deixarei para comentar noutra oportunidade.

Os desenhos me fascinavam. Não por simplesmente me rodearem; de fato, eram incríveis. Devido a isso, até meus treze anos, acreditei que também seria um arquiteto quando crescesse. Era o plano central para minha vida. Meu futuro estava desenhado.

Quando chegamos à casa do amigo do meu pai, a primeira coisa que estranhei foi a ausência de desenhos enfeitando as paredes ou simplesmente em molduras pelos móveis. Claro, desde já foi um julgamento errado, visto que aquela era uma característica de minha figura paterna, e não de todos os arquitetos do mundo.

O tal amigo havia nascido na Turquia, mas se criado na Inglaterra. Quando pedi para que falasse algo em turco, percebi que sua pronúncia em inglês era melhor do que no idioma materno. Meu pai me chamou a atenção, alegando que eu não deveria pedir aquele tipo de coisa de maneira tão repentina. Após meu pequeno diálogo com o anfitrião, fomos à sala de estar, onde sentamos ao sofá e os adultos começaram a conversar.

Não eram assuntos que me interessavam. Na realidade, eu nem sabia o motivo de ter aceitado ir com meu pai para aquela visita. Acho que só não queria ficar em casa, pois estava entediante demais e minha mãe pegaria no meu pé para que eu estudasse matemática. Todavia, depois de dez minutos ouvindo a conversa dos adultos na sala de estar, bebericando chá e comendo biscoitos em formato de girafas que o próprio anfitrião havia me oferecido, percebi que o tédio estava me consumindo. Levantei-me e a dupla nem sequer havia percebido; os dois estavam empolgados demais relembrando momentos que, devido à idade, eu não compreendia. Em silêncio, apenas escutando o barulho do último biscoito sendo triturado de forma cruel por meus dentes, caminhei pela sala de estar. Era grande. Havia mais de uma estante, e eu, à procura de algo para fazer, não pensei duas vezes antes de me aproximar delas e descobrir o que as preenchiam.

Meu pai também tinha uma estante em casa. Era especialmente sua; abarrotado por livros que tangiam à sua área profissional. E ao ver a primeira estante de seu amigo, percebi que a diferença entre os dois não estava apenas na falta de desenhos pelas paredes. Havia poucos livros sobre arquitetura, desenho ou cálculo. Eu só visualizava romances e mais romances. Sendo assim, logo a deixei e fui até a segunda estante, percebendo que o conteúdo também não tangia em nada relacionado à arquitetura. Naquele móvel, tudo que vi foram livros de história, geografia, filosofia e sociologia.

Mais tarde, eu iria descobrir que o amigo de meu pai havia abandonado a Arquitetura no último ano da graduação para iniciar História.

E dentre tantos e tantos livros que ameaçavam derrubar a estrutura da pobre estante abarrotada, percebi que um deles tinha o interior marcado por uma pequena fita amarela, como se evidenciasse a página onde a leitura havia sido interrompida.

Minha curiosidade me guiou. Tirando-o de uma pilha, com cuidado para não derrubar todos os outros, a primeira coisa que me chamou a atenção foi a imagem da capa. Nela, estava ilustrada a pintura “A Liberdade guiando o povo”, de Eugéne Delacroix. Tratava-se da imagem mais emblemática da Revolução Francesa. E só depois disso meus olhos se lembraram de ler o título.

“The Age of Revolution: Europe 1789–1848”.

E ali mesmo, sentando-me sobre o azulado tapete macio e quadrangular em frente àquela estante, comecei a ler o livro que mudaria minha vida para sempre.

Aos treze anos, tive meu primeiro contato com Eric Hobsbawm. E com a mesma idade, descobri o que eu realmente queria ser.

 

Naquele momento, Francis estava pensativo. Apoiando-se com um dos cotovelos sobre a mesa, a mão servia como um suporte para o rosto. Era assim que ele pensava melhor; sozinho e em silêncio, apenas observando a fluidez do tempo passando bem diante de seus sentidos. Segui seu olhar em direção ao relógio de parede localizado acima da porta, constatando o horário. 13:00.

Às quintas, a agenda de Francis era cheia. Tinha aulas pela manhã e pela tarde, sem tempos vagos entre elas. Nesse dia, todavia, houve uma mudança de planos. O diretor de seu departamento havia marcado uma reunião com todos os docentes em um dos auditórios e aconteceria pela tarde, logo, as aulas durante tal período foram canceladas. A reunião só teria início às 14:00, logo, Francis ainda tinha um certo tempo para esperar. Decidiu permanecer em sua sala. Inicialmente, o que pretendia era começar a preparar os próximos exames de duas de suas turmas, mas, ao deixar uma das classes, foi abordado por uma aluna.

A garota, após perguntar se poderia conversar com o professor e receber uma afirmativa, começou a falar sobre estar com uma ideia para um futuro projeto. Explicou que tinha em mente desenvolver o projeto com dois colegas e que Francis era o primeiro professor a saber. Basicamente, a estudante queria trabalhar uma análise sobre “As Bodas de Fígaro”, do autor francês Pierre-Augustin Caron de Beaumarchais. A aluna explicou que, inicialmente, pretendia apenas uma análise literária e linguística, mas, ao conversar com alguns amigos, percebeu que a ideia poderia ir além. Os dois colegas mencionados eram, respectivamente, um aluno de História e outro de Música. Enquanto o segundo tinha em mente analisar o uso de “As Bodas de Fígaro” por Mozart (não se pode, jamais, omitir que, antes de Mozart, a ópera era considerada como uma arte exclusiva das classes superiores) em “Le Nozze di Fígaro”, o primeiro buscava um olhar mais histórico, levando em conta principalmente o fato de Luís XVI ter tentado proibir a obra.

“As Bodas de Fígaro”, podemos dizer, trata-se de uma comédia. Uma obra cujo autor já evidenciei. Beaumarchais foi audacioso. Por sua pessoa, a aristocracia foi retratada de forma depravada, banhada à luxúria, degenerada. Ademais, Fígaro é um servo; e Beaumarchais não hesitou em mostrar que o servo poderia ser tão bom quanto seu amo.

Cinco anos depois da primeira representação de “As Bodas de Fígaro” em Paris, a Bastilha seria tomada.

Basicamente, a análise dos três alunos se unia de uma forma tão específica quanto o modelo “chave-fechadura” dos bioquímicos.

A aluna queria que Francis fosse um dos orientadores. Normalmente, apenas um professor é orientador, mas, levando em conta que a ideia contava com três alunos, dois orientadores seriam possíveis. Isto é, caso o projeto fosse aprovado. E eu comecei a torcer para que fosse. Em meu ponto de vista, era algo simplesmente... Genial. Francis sabia que eu seria o primeiro a se empolgar com a ideia e certamente iria me prontificar a orientar. E eu tinha a mais absoluta certeza de que o aluno de História usaria “A Era das Revoluções” como base para sua análise; eu nem precisaria sugerir. Tudo se encaixava perfeitamente e eu estava empolgado demais para um professor que já não podia exercer em vida sua paixão. Foi o bastante para que eu me lembrasse da importância que o livro mencionado teve em minha vida.

Francis continuava a olhar para o nada, apenas pensando consigo mesmo. Havia garantido à aluna que lhe daria tão logo uma resposta. Sua expressão, naquele momento, era indecifrável. Até que, repentinamente, um pequeno sorriso brotou no canto de seus lábios e eu o vi enrolar uma mecha dos cabelos em um dos dedos. Havia diversão em seu olhar.

— Talvez eu deva recomendar ao aluno de História que procure encaixar Jacques Le Goff em sua análise.

Francis riu consigo mesmo, como se, naquele momento, pudesse ver a expressão aborrecida estampada em minha face.

Jacques Le Goff era um dos poucos historiadores que eu não suportava. E Francis sabia bem disso; o divertimento em suas palavras não era à toa. E ainda com o ânimo mesclado à audácia, ele prosseguiu:

— Que acha, Arthie?

Meu coração não mais pertencente a um ser humano pareceu frear a velocidade de seus batimentos. Todavia, eu estava bem à frente de Francis, e seu olhar estava direcionado à sua esquerda; mais exatamente, ao nosso retrato sobre sua mesa.

Francis suspirou.

Antes que pudesse mergulhar mais profundamente no devaneio que só lhe traria desânimo, o celular ainda em um dos bolsos da calça vibrou. Francis o pegou e constatou ser uma mensagem de Antonio. Abrindo-a sem muita vontade, leu o amigo lhe avisando que havia acabado de receber um e-mail do departamento. Faltando pouco menos de 30 minutos para o início, a reunião havia sido cancelada. Francis logo abriu a própria caixa de entrada e percebeu que havia recebido o mesmo e-mail há poucos minutos.

A tarde havia sido descartada. Com o cancelamento das aulas, a maioria dos alunos já não estava presente. E com o cancelamento da reunião, os docentes repentinamente ficaram livres. Uma prévia de uma folga, por assim dizer. Antes que Francis pudesse sequer pensar no que fazer a partir de então, recebeu outra mensagem de Antonio. O espanhol lhe perguntava se, por acaso, ele não gostaria de ir comer em sua casa. “Acordei inspirado para cozinhar”, Antonio digitava.

Francis sorriu com o teor da mensagem. Aceitou o convite, pedindo para que se encontrassem em 10 minutos no estacionamento.

Surpreendentemente, Francis não mostrava sintomas de gripe. Na noite passada, depois do ocorrido em nosso jardim, decidiu tomar um banho e secou os cabelos antes de dormir. Aparentemente, sentia um estranho frio nos pés, mas a sensação sumiu ao acordar. O sono lhe pegou depressa, mas, assim como em todos os outros dias, os sonhos também lhe acompanharam. Meu nome continuava a ecoar de forma dolorosa pelo cômodo, arrancando do fundo de minha alma as mais profundas dores.

Depois das falsas esperanças oriundas do dia anterior, decidi não me iludir tanto com o comportamento de Francis ao acordar. Ele seguiu normalmente e não pensou duas vezes antes de ir ao trabalho. Ter aceitado o convite de Antonio foi algo que me agradou. Francis precisava voltar a ter um contato mais cotidiano com suas amizades.

No estacionamento, apenas se comunicaram à distância com gestos e cada qual entrou no próprio carro. Francis poderia deduzir até mesmo de olhos fechados o caminho para a casa de Antonio. Devido ao horário, não enfrentaram trânsito e chegaram rapidamente.

Quando Francis, já dentro da casa, caminhou em direção à cozinha e prendeu os cabelos, Antonio não protestou. Ora, era como se Francis estivesse em casa. Tudo que ele fez foi perguntar o que iriam fazer, e Antonio, com um olhar suplicante, perguntou se seu amigo ainda poderia suportar paella. Certo que Antonio certamente exagerava em fazer aquele prato quase todas as vezes em que convidava Francis ou Gilbert, mas nem de longe eles poderiam enjoar. Antonio cozinhava melhor do que qualquer restaurante espanhol por aí. Era, basicamente, impossível enjoar.

Depois de preparada, a paella não demorou muito para ficar pronta. O tempo no forno foi preenchido por Antonio resmungando sobre a tarde jogada no lixo devido à reunião fracassada. De fato, havia do que reclamar. As aulas canceladas iriam atrapalhar o plano de ensino de todos os professores do departamento. Enquanto o espanhol resmungava (veja bem, vez ou outra ele ria, em momento algum abandonou suas feições descontraídas; não estava verdadeiramente irritado) e embalava Francis para sua série de reclamações, o tempo em que a paella deveria permanecer no forno ultrapassou alguns poucos minutos e por muito pouco a refeição não foi perdida. Bem, Antonio acabou por queimar uma das mãos na pressa de salvar o almoço, mas não foi nada preocupante.

Ainda que nenhuma refeição compartilhada pelos dois fosse silenciosa, Antonio fez questão de não abrir brechas para momentos vagantes. Sua intenção era nítida; estava fazendo de tudo para manter a mente de Francis ocupada. Era o certo a se fazer. Assim que terminaram, trataram de deixar a cozinha em ordem. Enquanto mexia nos armários a fim de guardar os ingredientes deixados pelo balcão, Francis lembrou-se de que os armários de nossa casa estavam, praticamente, vazios.

— Preciso ir ao mercado — Francis comentou ao deixar a cozinha juntamente de Antonio.

O espanhol até se ofereceu para acompanhá-lo e ajudar nas compras, mas não seria necessário. Sendo assim, despediram-se e Francis não tardou em dirigir ao mercado. Felizmente, as sacolas nunca saíam do porta-malas.

Embora opções para fazer as compras de casa não faltassem, eu e Francis concordávamos em fazer em um em especial. Não ficava tão próximo de onde morávamos, mas tinha os melhores preços e algumas coisas que não eram vendidas em outros lugares. Sendo assim, ter que dirigir um pouco mais não era um problema.

Naquele horário não havia tantas pessoas. O pior momento para ir era sempre pela noite; filas, assim como congestionamento no trânsito, me estressavam.

Depois de estacionar, e antes de deixar o carro, Francis ficou pensativo. Não havia feito uma lista. De qualquer forma, não eram coisas específicas que faltavam em casa. Se estivesse com uma lista em mão, certamente haveria um “tudo” escrito como item único.

Já dentro do estabelecimento, travou uma pequena batalha com o carrinho de compras. O diminuitivo pré-determinado de certas palavras faz com que eu me sinta um fã de Kafka. A moeda para destravar as rodas não estava querendo entrar, até que Francis parou. Após respirar e se acalmar, tentou novamente e conseguiu encaixá-la sem dificuldades.

 A primeira seção visitada foi a de limpeza. Embora Francis fosse um amante de desinfetantes, tinha um péssimo dedo para escolhê-los. E assim que ele deixou o carrinho de lado e analisou as prateleiras na altura de seu rosto, uma agitação por minha parte foi inevitável. A marca bem à sua frente era uma das piores. Além do preço, tinha um aroma exageradamente forte e enjoativo. Francis estava confuso, perdido em qual escolher. De fato, todas as vezes em que nos encontrávamos naquela situação, eu simplesmente lhe empurrava em direção a outro setor, enquanto eu me ocupava de escolher os produtos de limpeza. Nesse momento, senti as consequências.

Francis ergueu uma das mãos e encaixou seus dedos ao redor do desinfetante azul.  

— Não!

Meu tom de voz atravessou a linha tênue que o separava de um grito. No mesmo instante, quis repreender a mim mesmo; contudo, antes que eu pudesse o fazer, Francis soltou o produto instantaneamente. Deu dois passos para trás a fim de ter uma visão mais ampla das prateleiras, analisando as marcas e, aparentemente, procurando a embalagem mais familiar daquele que costumávamos levar para casa.

Finalmente, seus olhos deram atenção para as prateleiras mais baixas. Em especial, a última. Uma lâmpada acendeu em sua cabeça. Agachando-se com um quase sorriso, Francis reconheceu o formato das letras e os desenhos no rótulo. Respirei aliviado, satisfeito pela pequena vitória. Francis colocou quatro garrafas dentro do carrinho e não teve dificuldades para comprar os demais produtos de limpeza, como água sanitária e detergente.

A seção de limpeza era, afinal, a única dificuldade. Digo, a verdadeira dificuldade. Era natural que ele se atrapalhasse ao comprar outras coisas, afinal, era uma tarefa executada a dois e vez ou outra eu tinha de repreendê-lo por uma escolha péssima. Ao chegar à seção de pães e biscoitos, por exemplo, tivemos outra batalha.

Havia uma certa marca de biscoitos que compramos duas vezes, visando acompanhar o chá. Nas duas, eles estragaram. Eram péssimos. Na primeira vez, estragaram porque nos esquecemos de sua existência. Na segunda, experimentamos e detestamos, e, devido ao tempo, tiveram um triste fim.

Arregalei os olhos quando Francis segurou uma caixa dos tais biscoitos.

— Você está louco?! Isso não presta!

Dessa vez, minha reclamação não surtiu efeito imediato. Na realidade, para mim, o ocorrido na seção de limpeza não passara de uma coincidência. Ainda assim, Francis não colocou simplesmente a caixa em meio às compras; seu braço parou no meio do trajeto e Francis olhou novamente o pacote, como se estivesse tentando se recordar de algo relacionado. Alguns instantes bastaram; uma careta engraçada tomou suas feições e ele devolveu o produto à prateleira como se houvesse acabado de tocar em algo contagioso.

Por último, devido à proximidade com os caixas, Francis se dirigiu à seção de vinhos. Apesar de ser algo que tomávamos naturalmente nas refeições, era inevitável sentir certo receio naquele momento. A imagem de Francis estapeando o rosto de Gilbert por causa de uma garrafa me veio à cabeça, e, certamente, também à de Francis. Tudo que precisávamos era que... Ele pudesse se controlar. O vinho não era o problema, afinal, sempre esteve presente.

Francis pensou mais de uma vez antes de adentrar a seção. E já dentro, ao virar em direção ao segundo corredor, onde estavam aqueles que comprávamos normalmente, nos deparamos com um cenário, por assim dizer, inusitado. Lado a lado, dois italianos (estavam falando na língua materna) de traços semelhantes discutiam, embora um deles estivesse, na realidade, se defendendo dos berros do outro. Ao que tudo indicava, eram irmãos. Nenhum dos dois pareceu notar a presença de mais uma pessoa, então Francis simplesmente pegou quatro três garrafas do mesmo vinho e saiu. E naquele momento, eu senti segurança. Se Francis, mesmo que de maneira inconsciente, cogitasse a possibilidade de beber além da pequena quantidade padrão das refeições, ele teria comprado de outro tipo.

Por fim, Francis foi ao caixa sem enfrentar fila. O trajeto de volta ocorreu tranquilamente.

Assim que chegou em casa, Francis tratou de retirar todas as compras do carro e colocá-las sobre o piso da garagem. Eram quatro e estavam todas pesadas, abarrotadas. Ao finalizar a missão que consistia em levá-las para dentro de casa, deu início à outra que consistia em retirar todos os produtos e guardá-los em seus devidos lugares. Para tanto, Francis esticou os braços e em seguida abriu os dois primeiros botões da camisa, em seguida dobrando a barra das mangas até os cotovelos. Feito isso, começou sua jornada.

A primeira sacola foi a contendo produtos de limpeza. O caminho era o mais longo, visto que eles eram guardados na área de serviço e nos banheiros. Justamente por ser o mais trabalhoso, Francis o fez primeiro. E assim que começou a esvaziar a segunda sacola, o som da campainha ecoou pela casa. Percebi que uma súbita preguiça de sair dali o atingiu, mas, ainda assim, ele suspirou e pausou sua tarefa, rumando à sala de estar e posteriormente à porta.

Ao abri-la, nossas expressões entraram, inicialmente, em sincronia. Ficamos surpresos. Um segundo depois, sua expressão foi tomada por um certo tédio mesclado ao desagrado; e a minha, todavia, pela mais pura alegria.

À nossa frente, Honda Kiku.

O meu melhor amigo.

Ele não se importa se você usar a ordem ocidental e chamá-lo de Kiku Honda, mas, acredite, um brilho surge nos olhos dele se você o chama de Honda Kiku.

Eu e Kiku nos conhecemos na adolescência. Enquanto eu tinha 16 anos, ele tinha 14. Tudo se deu quando eu quebrei uma das pernas caindo de bicicleta e o médico me encaminhou a uma fisioterapeuta. Por sorte, a clínica ficava perto de onde minha mãe trabalhava. Assim sendo, não foi motivo de estresse para meus pais. Já na clínica, mergulhando em tédio na sala de espera até que o paciente atendido no momento deixasse o consultório da fisioterapeuta, percebi a presença de um garoto de traços asiáticos imerso em um pequeno livro de sudoku. Certo, ele estava no outro extremo da sala, mas, ainda assim, eu estava entediado demais e minha mãe estava quase dormindo ao meu lado. Saí do meu canto e decidi cumprimentar o menino.

Ele falava pouco, era reservado e não tivemos um grande avanço na primeira oportunidade. Contudo, na minha segunda ida à clínica de fisioterapia, tive a surpresa de encontrá-lo novamente. A curiosidade foi grande demais e eu perguntei o que ele fazia ali, já que, aparentemente, não era um paciente. Ele me explicou que sua mãe era a fisioterapeuta e ele precisava a acompanhar até o fim do trabalho. Apenas depois disso que finalmente descobrimos o nome um do outro. Ele se chamava Kiku. E ainda que fosse realmente reservado, um fator a mais para sua timidez era o fato de que ele ainda era inseguro demais falando em inglês.

Os pais de Kiku eram divorciados. Na realidade, quando nos conhecemos, havia sido algo recente. Enquanto o pai permanecia no Japão, a mãe vivia na Inglaterra. Por isso, ele estava ali. Kiku vivia em constante trânsito entre os dois países e isso, inegavelmente, deixava-lhe um pouco desorientado.

Na minha terceira e última ida, percebi que havia chegado um pouco tarde e tinha mais de um paciente na frente. Iria demorar. Cogitando a possibilidade de ter a proposta negada, chamei Kiku para, simplesmente, irmos lá fora. A clínica tinha um grande jardim.

Ainda que, a essa altura, eu já reconhecesse que Kiku era uma pessoa inteligente, foi em tal oportunidade que descobri seu interesse por botânica. Enquanto eu apenas comentava sobre as plantas que decoravam o jardim da clínica, Kiku acrescentava dizendo seus respectivos nomes científicos, origens e usos. Era algo aleatório ademais para um menino de 14 anos. E me entediando tanto com seus comentários, eu jamais poderia imaginar que, futuramente, o interesse de Kiku iria me influenciar tanto a ponto de eu mesmo me tornar um apaixonado pela botânica e ter um jardim.

Apesar do fim das minhas idas à clínica e o constante trânsito de Kiku entre dois países, não perdemos contato. Eu nunca havia experimentando uma amizade tão presente. Quando me dei conta, vez ou outra eu estudava japonês apenas para poder proporcionar a Kiku uma atmosfera mais segura preenchida por seu idioma materno. E assim nossa amizade seguiu até o fim que, inevitavelmente, cortou meus laços com todas as pessoas na Terra.

Alguns anos depois de mim, Kiku se graduou. Havia se formado em Medicina e travou consigo mesmo uma pequena luta por não conseguir se decidir entre Oftalmologia e Endocrinologia. No fim das contas, ele seguiu o primeiro caminho.

A primeira vez que Francis viu Kiku foi através de uma chamada de vídeo. Devido à diferença entre os horários no Japão e na Inglaterra, eu e Kiku tínhamos de marcar um horário para que pudéssemos nos ver. Geralmente, acontecia duas ou três vezes por mês, sempre aos domingos. Na chamada de vídeo em questão, eu e Francis estávamos juntos há apenas duas semanas. Os dois trocaram somente rápidos cumprimentos e nada mais. No mês seguinte, Kiku finalmente encontrou uma sequência de dias vagos em sua agenda e veio à Inglaterra.

Tudo era mais fácil quando éramos adolescentes. Com a chegada da vida adulta, todavia, tornavam-se cada vez mais difíceis as vindas de Kiku. Por minha parte, eu havia ido apenas duas vezes ao Japão para vê-lo. O contrário era mais fácil, visto que, aqui, além de mim, havia sua mãe.

Quando Francis e Kiku se conheceram pessoalmente, tudo ocorreu bem. Todavia, conforme o tempo passava, eu sentia uma espécie de desconforto por parte de Francis. Naturalmente, não hesitei em perguntar o motivo. O que ouvi em seguida nos custou uma semana preenchida por um clima terrível.

Francis, sem medir suas palavras, alegou que eu era um tanto bobo de não perceber os fatos escancarados. Abrindo mão de todos os escrúpulos, alegou que Kiku não me via como um amigo. A princípio, precisei de alguns segundos para ter certeza de que eu não estava ouvindo coisas da minha cabeça. Quando percebi que, de fato, era aquilo que Francis dizia, não me contive. Tivemos uma briga péssima.

Tanto dentro como fora da universidade, e mesmo ao meu lado, Francis recebia diversos olhares e palavras com segundas intenções subentendidas. A cada dia, eu me esforçava para me tornar uma pessoa melhor, aprendendo a controlar meus ciúmes, não me incomodar e tampouco imaginar coisas. Francis era cobiçado e eu não podia mudar isso.

Logo, quando Francis disse aquelas coisas ridículas, eu cheguei ao ponto de querer terminar. Kiku me era como um irmão, nos conhecíamos desde a adolescência. Acompanhamos o crescimento de cada qual, vimos um ao outro amadurecer, descobrir-se como pessoa. O que Francis disse me soou como uma afronta.

Durante uma semana, nosso relacionamento esteve na corda bamba. Francis não parava de me pedir desculpas, mas, para mim, nada adiantava. Apenas quando contei a Kiku o que estava acontecendo que decidi aceitar as desculpas. Kiku foi essencial, alegando que Francis estava realmente arrependido e havia se deixado levar pelo impulso.

Embora Kiku sempre agisse normalmente com Francis, este nunca se permitiu conhecê-lo de verdade. Não estou me referindo a algo de meses, mas anos. E eu precisei aprender a lidar com o fato de que meu companheiro não gostava verdadeiramente do meu melhor amigo; Francis simplesmente o aturava, por assim dizer, e isso por mim.

Naquele instante, à frente de Francis, Kiku não alterou as próprias expressões, mesmo que Francis lhe encarasse de maneira pouco convidativa. Ele não estava surpreso, assim como eu.

Ignorando a rispidez da recepção de Francis, Kiku proferiu um “olá” e se curvou. Embora o ojigi fosse algo natural vindo de Kiku e não fosse novidade para Francis, este, repentinamente, sentiu-se constrangido. Mesmo sendo tratado de maneira rude, meu melhor amigo nunca abria mão da educação; e isso, definitivamente, foi necessário para que a ficha caísse na cabeça de outra certa pessoa.

Francis respondeu com a mesma palavra, e, sem nada falar, deu um passo à esquerda, cedendo espaço e deixando subentendido o convite para que o outro adentrasse. Também estava se guiando pela educação, embora não o quisesse ali dentro.

Antes de retirar os sapatos, Kiku olhou rapidamente para os pés alheios, constatando que estavam apenas de meias. O costume de deixar os sapatos ao lado da porta eu adquiri quando, no começo de nossa amizade, visitava a casa da mãe de Kiku. Devido a isso, meus pais também adquiriram o costume. Francis nunca havia contestado, então, provavelmente, não sabia que o hábito em nossa casa era em função da cultura de Kiku. Em questão de instantes, os pés deste também estavam apenas de meias.

Enquanto Francis ainda girava a chave na fechadura, Kiku observava as sacolas e produtos espalhados pelo chão.

— Posso lhe ajudar? — gesticulou em direção ao cenário de guerra.

Francis não respondeu de imediato. Passou direto ao lado de nossa visita, agachando-se para pegar outros produtos e guardá-los.

— Tanto faz.

Em outras palavras: sim.

Kiku não esperou nenhum segundo a mais e se prontificou. Por não ser sua primeira vez ali, e eu sempre lhe deixar à vontade, como se estivesse em sua própria casa, ele sabia o devido lugar de cada produto.

— O que o traz até aqui?

A resposta não veio de imediato. Afinal, o que responder? A pergunta era desnecessária, em seu teor a provocação era clara.

— Talvez seja melhor reformular a pergunta.

Foi a maneira que Kiku encontrou para contornar as intenções de Francis; no entanto, este interpretou as palavras de maneira equivocada, como se também estivesse sendo provocado. A bem da verdade, ele queria interpretar daquele jeito.

— Bem, não me recordo de ter feito um convite ou algo semelhante.

O pacote de cereais nas mãos de Francis sentia-se em apuros. Tinha medo de ser, de súbito, esmagado.

— Sua memória não falhou. Não foi feito convite algum.

— Oh, é uma boa notícia. Então, a que devo sua presença?

Embora Kiku permanecesse agindo naturalmente, era nítido que Francis começava a se aborrecer. Seu olhar fuzilava as costas de nossa visita; principalmente por esta não estar dando importância às provocações, respondendo como se estivesse em um diálogo civilizado. Francis estava se frustrando por não vê-lo alterado, mesmo que soubesse que tipo de pessoa ele era.

A situação não me era agradável. Quando eu estava entre os dois, Francis media as palavras; daquela vez, no entanto, estava passando de limites que eu nem ao menos sabia da existência.

Antes que Kiku respondesse, Francis prosseguiu:

— Não há mais ninguém de seu interesse por aqui. Eu não vou ser o seu consolo, se é o que você pensa. E agora, veja só, eu não tenho mais motivo para lhe suportar, assim como foi por tantos anos. Não sei onde estava com a cabeça quando, minutos atrás, deixei você colocar os pés na minha casa.

Ainda que Kiku não houvesse se alterado, a fala me machucou. Avancei na direção de Francis, como se pudesse lhe conter. Eu sentia que estava começando a ficar irritado.

Finalmente, Kiku virou-se na direção de Francis.

— Eu não quero você aqui! Eu sei que você sempre esteve esperando por uma oportunidade de roubá-lo de mim! Está frustrado, não? Ele se foi. Eu o perdi, e você também. Ele se foi... Ele se foi antes que você conseguisse! Eu sei que... Você está frustrado, Honda! Está triste não por ele ter ido, mas por ter ido antes que... Antes que você pudesse...

O olhar de Kiku nada transmitia. Cada palavra proferida era absorvida sem alteração em suas feições. E Francis, por sua vez, estava transmitindo todas as emoções possíveis em questão de segundos. Em seu rosto, todas as expressões caminharam. E quando as palavras lhe faltaram, ele olhou para o rosto daquele à sua frente. E não havia indignação, revolta ou julgamento; havia simplesmente alguém que compreendia o estado de Francis.

Quando Francis retomou sua fala, o contraste com o tom de voz anterior se fez presente. Era baixo. Calmo. Triste. Rendido.

— Você perdeu, Honda... Você... E eu... Nós... Nós o perdemos...

As embalagens caíram das mãos de Francis, bem como as lágrimas de seus olhos. Quando Kiku finalmente se moveu, aproximando-se, Francis andou em sua direção, e, hesitante, circundou, com os braços, o corpo alheio. Surpreso, meu melhor amigo retribuiu o calor emanado pelo abraço.

Em meio a um cenário de guerra caracterizado por sacolas e produtos espalhados, Francis soluçava no ombro de Kiku.

— Ele... Nós... Ele nos deixou sozinhos, Kiku...

Ao ouvir seu primeiro nome sendo proferido, o dito cujo arregalou minimamente os olhos. Sentiu o abraço por parte de Francis se intensificar, e retribuiu com a mesma intensidade. As lágrimas inicialmente grossas atravessavam o tecido branco e tocavam a sensível epiderme, crescendo um sentimento dentro de si. Lentamente, seus olhos se fecharam em sincronia com seus braços que aninhavam Francis ainda mais.

E então eu cheguei à conclusão de que, sim, em mim ainda havia um coração humano. E cheguei a contestar minha própria morte, pois, naquele instante, nunca estive tão vivo. Ver meu companheiro e meu melhor amigo daquela maneira... Duas das pessoas que eu mais amava... Meu ser passou a transbordar do quê mais puro e feliz, preenchendo-me com um conforto que, há tempos, havia sido perdido por mim. O sentimento que meu eu emanava era o mais doce de todos os existentes.

Kiku, repentinamente, abriu os olhos. Não por simplesmente estar deixando o próprio corpo agir, mas como se tivesse tomado um susto. E no instante seguinte, seu olhar escolheu um rumo; mirou exatamente em minha direção. Por longos segundos, nós dois sustentamos um contato visual.

Quando ele desviou o olhar, eu senti como se estivesse saindo de um transe.

Não havia dúvidas.

Kiku havia me encarado.

— Kiku... Kiku! Ei! Não finja que nada aconteceu! Eu sei que me viu!

Todavia, ele agia como se nada tivesse acontecido. Francis começava a se recuperar, mostrando ter parado de soluçar. Lentamente, os dois desfizeram o abraço. Mesmo assim, Francis, ainda que tomado por uma expressão angustiada, sorria de maneira sutil. E eu nem ao menos pude apreciar meu companheiro e meu melhor amigo em um momento que nunca imaginei que poderia acontecer, pois todos meus pensamentos se centravam no fato de que Kiku havia me visto.

Não foi uma coincidência. Se o fosse, não teria passado de meros instantes e Kiku não teria olhado daquela maneira.

Francis e Kiku terminaram de guardar as compras, mas em nenhum momento eu deixei de falar com meu melhor amigo. Eu estava, praticamente, grudado em si. Embora ele não demonstrasse mais nada, eu não conseguia mudar de ideia. Havia sido real demais.

E eu me senti cansado. Provavelmente, fruto da frustração.

Francis convidou Kiku para se sentar à mesa. O primeiro queria café, mas, não sabendo as preferências de nossa visita e se guiando por um gosto que sabia que eu e ele compartilhávamos, optou por fazer chá. Além disso, havia comprado os biscoitos para acompanhar. Tudo foi feito em silêncio. Kiku quis ajudar, mas Francis pediu para fazer sozinho, pois estava voltando a se habituar à cozinha e outras atividades cotidianas. Seu pedido foi respeitado.

Do outro lado da mesa, eu observava Kiku olhando fixamente para a superfície de madeira. Seus olhos incrivelmente negros e inexpressivos não delatavam seus pensamentos. Ainda que fossem as janelas da alma, estavam sempre fechadas. Em nenhum momento eu desviei meu olhar, encarando-o de maneira persistente. Eu ainda esperava por uma resposta.

Quando Francis trouxe o chá, os biscoitos e sentou-se, eu cansei de ficar simplesmente esperando. Fui para o lado de Kiku e comecei a lhe chamar de maneira incessante. Aos poucos, meu tom de voz ia se elevando, até finalmente assumir o característico de gritos. Eu não só queria uma resposta; eu precisava. Kiku era minha única esperança, eu não podia desistir sem ter certeza de que, de fato, não havia chances.

Os dois começaram a conversar. O diálogo começou com Francis perguntando como estava a mãe de Kiku, mas, fora isso, eu não consegui acompanhar as palavras que trocavam. Todo meu foco estava apenas em uma pessoa. Eu estava morto, mas, como se ainda fosse um humano, minha garganta começava a me avisar que era hora de parar. E eu a ignorei.

Francis levantou-se para buscar mais biscoitos, e, nesse momento, eu abri mão das palavras e comecei simplesmente a tocar em Kiku, chegando a empurrá-lo. Eu queria sua atenção a todo custo, mesmo que meu corpo atravessasse o seu quando eu o tocava. Voltei a gritar por seu nome, continuando a empurrar seu ombro, até que Francis retornou à mesa e, sem que o mesmo percebesse, Kiku olhou de canto em minha direção.

E me lançou um olhar repreendedor.

Estava me mandando parar.

Era a certeza que eu precisava.

Kiku me via.

Meu primeiro pensamento foi o de simplesmente me deixar ser tomado pela felicidade em saber que alguém sabia que eu estava ali, mas o segundo se sobrepôs ao primeiro: apesar de me ver, ele estava me ignorando.

Meu melhor amigo, o mesmo que, em meu aniversário de 19 anos, prometeu que estaria para sempre comigo, estava me ignorando. Meu grito, meu socorro, minha desolação. Tudo que ainda restava de mim e estava sendo depositado em meu incessante chamado à sua pessoa. E eu podia jurar a mim mesmo ser uma das poucas pessoas capazes de compreender o que se passava na cabeça de Kiku, ainda que ele se mostrasse inexpressivo na maior parte do tempo. Porque... Porque eu o conhecia como a palma da própria mão; era-me como um irmão. Uma parte de mim. Um alicerce. Um porto seguro. Uma razão.

Kiku podia me responder.

Kiku podia dizer a todos que eu estava ali.

Kiku podia dizer a Francis que eu estava ali.

Quando as lágrimas começaram a se tornar pesadas demais para que eu fosse capaz de segurá-las, escaparam tão violentamente como uma represa que consegue destruir o obstáculo que a oprime. Molhando meu rosto, trilharam um rápido caminho até se encontrarem no queixo, onde pareceram parar para, juntamente a mim, contestar o porquê daquilo tudo estar acontecendo.

Todas minhas forças haviam se dissipado. Minha voz para chamá-lo, meus braços para tocá-lo. E mesmo mergulhado em meu pranto, não consegui desviar meu olhar de Kiku, que, alheio a minha presença, conversava com Francis.

Só uma fala ainda conseguia ser proferida; e ela carregava personificado todo o peso que, repentinamente, havia se apossado de minha alma.

Por que está fazendo isso comigo?


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Notas finais do capítulo

Eclosion: https://www.youtube.com/watch?v=V-x87xt6rzU


O título do capítulo em parte vem de um poema de Bertolt Brecht:

"A árvore que não dá fruto
É xingada de estéril.
Quem examinou o solo?

O galho que quebra
É xingado de podre, mas
Não haveria neve sobre ele?

Do rio que tudo arrasta
Se diz que é violento
Ninguém diz violentas
Às margens que o cerceiam."


Acho que deixei tudo explicado dentro do capítulo, mas, se ficou alguma dúvida, não hesitem em perguntar

Eu sabia que o capítulo ia demorar, mas achei que iria conseguir terminar e postar na semana retrasada rs nesse período estou tendo prova praticamente toda semana, então, né, tá bem apertado. Peço desculpas pelo atraso, mas também queria relembrar que ele pode acontecer vez ou outra

Enfim...
Obrigada a você que leu até aqui!
Nos vemos no próximo! ♡



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