Liberté escrita por Lehninger


Capítulo 3
A tonalidade mais inexpressiva do azul


Notas iniciais do capítulo

Olá!

Nos falamos mais nas notas finais, certo?

Para este capítulo, posso dizer que escolhi "Ciel errant" (Alcest). "Escolhi", afinal de contas, é sempre a música que escolhe o capítulo.

Boa leitura! ♡



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Mais parfois je ne ressens rien

Ou juste le vif sentiement

De ne pas être d'ici...

 

Antes que a luz do dia atravessasse as janelas, as portas e suas frestas, anunciando, assim, de maneira natural, mais um amanhecer, um estridente baque oriundo da cozinha despertou Antonio de seus flutuantes sonhos. O dito cujo estava sentado em uma poltrona ao lado da cama, lutando contra o próprio sono desde a noite passada. Suas pálpebras pareciam pesar e o pescoço estava dolorido devido à terrível posição mantida por horas a fio. Antes de se levantar ou ao menos tentar entender o que estava acontecendo, automaticamente olhou para o lado, constatando que o barulho não havia acordado Francis. Depois, olhou para as janelas cobertas pelas cortinas; ainda estava escuro. E perscrutando rapidamente todo o cômodo com um sonolento olhar, notou a ausência de Gilbert.

Por fim, Antonio levantou-se, esfregando os olhos com as costas das mãos. Era nítido que Francis dormia profundamente, então não havia a possibilidade de acordá-lo com mínimos movimentos. Antonio rumou à cozinha, onde encontrou Gilbert terminando de arrumar o balcão.  O espanhol nada perguntou, pois se lembrou de que o cômodo estava um tanto bagunçado no dia anterior. Pensou em perguntar o horário, mas avistou um celular sobre a mesa e constatou que ainda não eram nem ao menos seis horas da manhã.

Gilbert não havia conseguido cochilar. Antonio vez ou outra era vencido pelo sono e descansava das piores maneiras, mas Gilbert, por outro lado, não foi capaz. Passou a noite em claro, observando tanto o espanhol como Francis. Levantou apenas para arrumar a casa, que sabia estar um pouco desordenada devido à indisposição do dono.

E sem trocar uma palavra, ambos sentaram à mesa, um de frente para o outro. Antonio cruzou os braços sobre a superfície de madeira e abaixou a cabeça, cochilando mais uma vez. Gilbert, por sua vez, pegou o celular e começou a responder e-mails de alunos que havia acumulado na caixa de entrada. Não percebia a fluidez do tempo que passava até finalmente ouvir passos oriundos do corredor que levava aos quartos, largando o aparelho no mesmo momento e atentando-se ao som que se tornava mais nítido aos ouvidos à medida que os segundos passavam.

Francis, enfim, apareceu. Junto dele, a claridade do dia que já era capaz de invadir a casa.

— Mon Dieu, Gilbert... Você não dormiu?

Havia algo diferente na voz de Francis. E não só em sua voz, mas em sua aura como um todo. Com o diálogo iniciado, Antonio despertou.

— E você, Antonio!

Francis havia acordado como outra pessoa. De alguma maneira, num estado completamente distinto ao que lhe acompanhava quando havia adormecido no dia anterior. Aparentava estar incrivelmente disposto, e não somente pelo fato de ter repreendido os amigos por não terem dormido; tratava-se de uma quarta-feira e os dois ainda iriam trabalhar.

Estamos no dia 10 de abril.

Francis agradeceu pela presença dos dois, alegando que eles não precisavam se preocupar e que podiam ir embora. Antonio ainda quis dizer que era necessário que ficassem ali por mais um tempo, mas suas palavras fugiram ao ouvir Francis dizer que precisava se apressar, pois suas aulas na quarta-feira começavam mais cedo do que o habitual.

De imediato, Antonio e Gilbert se entreolharam. Francis estava, basicamente, falando que iria voltar ao trabalho; depois de longas três semanas e mais alguns dias. Estava reagindo. E sem relutar, talvez por medo de estragarem tudo se permanecessem ali por um instante a mais, os dois finalmente foram embora.

Ao fechar a porta, Francis foi à janela mais próxima e observou brevemente a dupla caminhando até o veículo esquecido do outro lado da rua. Antonio andava devagar, guiado pelo próprio sono. E Gilbert, à frente, tentava guiar o espanhol, murmurando “tome cuidado”. Ainda não havia me acostumado a vê-lo tão sério.  A um passo de deixar a área da casa, Gilbert tropeçou em um vaso caído no jardim. Todo o peso de seu corpo foi direcionado para um lado e ele cambaleou, prestes a cair, mas conseguiu se sustentar e voltar à posição habitual. Antonio estava tão aéreo que nem ao menos notou a quase queda do outro.

Voltei meu olhar a Francis, percebendo que o quase acidente de Gilbert lhe fez mudar a expressão. Parecia estar se recordando de algo e, aparentemente, era agradável. Puxando das memórias algo que deveria ter surgido com facilidade ao ver a cena, Francis sorriu ao se lembrar com todos os detalhes. E ao ouvir um baixo riso de sua parte, por incrível que pareça, senti como se sua recordação invadisse meus pensamentos. E foi inevitável, de minha parte, acompanhar sua risada.

Dias antes de meu desencarne, fomos a um bar. Eu, Francis, Antonio, Gilbert e Roderich. Quando chegamos, poucos minutos depois encontramos Ivan, um amigo que eu havia feito ainda durante a graduação, mas que não trabalhava no mesmo lugar. Havíamos perdido contato há uns anos. Ele estava acompanhado de um rapaz de feições asiáticas que logo descobri se chamar Yao, e, sem pensar duas vezes, convidei ambos para sentarem conosco.

O clima estava bom, até Gilbert começar a se incomodar com a quantidade de álcool ingerida por Ivan como se fosse água. O russo bebericava vodka como se estivesse mandando limonada para dentro e não se alterava, mostrando que seu corpo estava mais do que habituado. Para Ivan, era normal; definitivamente, não estava se exibindo. Não era algo de seu feitio. No entanto, para Gilbert, era como se estivesse encontrando alguém para competir e esse mesmo alguém estava executando seguidas tentativas de lhe instigar.

Ivan era uma pessoa inocente demais e não percebeu as reais intenções de Gilbert ao lhe fazer perguntas como “até onde você consegue?”, “sua resistência é tão alta assim?” e etc.

Gilbert tinha uma grande resistência ao álcool, raramente era visto completamente bêbado. Todavia, bastaram alguns minutos na mesma mesa que Ivan para que a pior face de um embriagado surgisse. Enquanto o russo continuava bebendo e conversando normalmente conosco, o alemão mal conseguia segurar a si próprio. Seu corpo parecia ser de gelatina e sua voz apresentava todos os timbres existentes ao proferir uma só palavra.

Roderich estava sério. A meu ver, ele estava muito, muito desconfortável com um bêbado bem à sua frente, do outro lado da mesa. Mas, contrariando meus pensamentos, um discreto sorriso se formou em sua face como consequência de um também discreto curvar das comissuras labiais. Sussurrando, pediu para que Francis, que estava ao seu lado, se afastasse um pouco, dando-lhe mais espaço. Com seu pedido acatado, Roderich puxou uma garrafa de cerveja e a segurou pelo gargalo, mantendo-a sobre a superfície da mesa, assim como Gilbert o fazia.

Roderich esperou que Gilbert lhe olhasse. Feito isso, o austríaco lentamente começou a curvar o próprio corpo, da cintura para cima, para o lado. O ato de se inclinar também envolvia a garrafa entre seus dedos. Todos perceberam, mas ninguém contestou; estávamos mais curiosos em saber o objetivo de Roderich.

Até que, finalmente, percebemos que Gilbert imitava a atitude de Roderich. À medida que o austríaco inclinava o corpo para o lado, o alemão fazia o mesmo. Quando a inclinação chegou ao limite, Roderich tensionou o corpo, impedindo a si mesmo de cair. Gilbert, no entanto, não foi capaz de fazer o mesmo; ao chegar ao limite da inclinação, não conseguiu parar, e o restante de seu corpo foi de encontro ao chão.

Roderich, sem dizer uma palavra, havia feito um bêbado se espatifar no chão de um bar.

Rimos de Gilbert a noite inteira, mas apenas no dia seguinte ele se deu conta do que havia acontecido.

Antes que fôssemos embora, perguntei a Roderich o porquê daquilo acontecer. Depois de rir, lembrando-se do ocorrido de momentos atrás, o austríaco me explicou que uma das principais funções do cerebelo está associada ao equilíbrio e à coordenação motora. Basicamente, o cerebelo é o responsável por manter o movimento o mais refinado possível. Se ele não executar seu trabalho, não conseguimos nos organizar em três dimensões.

Uma pessoa embriagada age da mesma forma que uma pessoa com lesão cerebelar. Não há o equilíbrio no movimento — o que chamamos de ataxia — tampouco na voz, que se apresenta estendida — o que chamamos de disartria; logo, é natural que o tom de voz oscile em extremos, pois o indivíduo não é capaz de articular bem as palavras proferidas. Um indivíduo com lesão cerebelar não consegue frear o próprio corpo. O mesmo acontece com o bêbado.

Quando Roderich saiu da posição normal e começou a inclinar o próprio corpo para o lado, Gilbert, estando embriagado, acreditou que ele mesmo estava errado em se manter ereto. Uma pessoa bêbada, no geral, não tem noção do que está acontecendo e não é capaz de distinguir o normal do anormal.

Para se ajustar ao que seu córtex, naquele momento, julgava ser o normal, Gilbert imitou Roderich. No entanto, quando ambos chegaram ao limite da inclinação, uma diferença em seus estados se evidenciou. Roderich, não estando bêbado, estava com o funcionamento do cerebelo em perfeito estado e foi capaz de frear seus movimentos, equilibrando-se e evitando a queda.

Gilbert, no entanto, não pôde contar com seu próprio cerebelo, estando este afetado pelo álcool. Sem o dito cujo, não foi capaz de frear seu corpo, caindo diretamente no chão. Para finalizar, a garrafa não caiu completamente, pendendo sobre a ponta da mesa e jogando a bebida em cima do alemão.

A lembrança do ocorrido fez bem para Francis, que continuou a rir baixinho até Gilbert e Antonio sumirem de seu campo de visão. Com isso, Francis levou as mãos às cortinas, abrindo-as até o limite. Fez isso com todas as janelas da casa, permitindo que a luz do dia irradiasse completamente cada cômodo.

Como já pude dizer em outra oportunidade, Francis e o Sol eram uma perfeita combinação.

Francis retornou ao quarto, dobrando os lençóis e arrumando o restante da cama. Tomou um banho relativamente demorado e secou os cabelos com o auxílio do secador; poderia se atrasar se optasse por deixar secar naturalmente, ainda que fosse sua preferência. Depois de devidamente vestido, direcionou-se à penteadeira, onde nossos perfumes e outras coisas do mesmo gênero ficavam.

Sendo francês, não era de se estranhar que Francis tivesse mais perfumes do que uma pessoa de outra nacionalidade. Quando passamos a conviver, notei um certo consumismo de sua parte quanto a perfumes; algo que, felizmente, foi corrigido e extinto com o passar do tempo.

Observando a penteadeira, acompanhei o olhar de Francis. Estava escolhendo qual usar. Em meio à sua indecisão, acabou por perceber algo diferente.

Ainda que eu não fosse exigente, tinha um perfume preferido. E Francis estava olhando para ele no exato momento, notando que, em relação aos demais, o frasco estava desalinhado, como se alguém houvesse mexido apenas nele. Francis moveu um dos braços, guiando-o para alinhar meu perfume. Todavia, no instante seguinte o pegou, borrifando um pouco no próprio pulso e em seguida devolvendo à penteadeira.

Aproximou o pulso do nariz, aspirando o aroma recém fixado em sua pele. Suas pálpebras se fecharam e o seu corpo como um todo pareceu relaxar. Talvez um minuto tenha se passado daquela maneira, até uma grossa lágrima escapar de um dos olhos, trilhando um caminho pela bochecha até tocar o canto da boca. Francis afastou o pulso da face e respirou fundo, numa rápida tentativa de se recompor. Devolveu o frasco azulado — idêntico ao azul de metileno — à penteadeira e da mesma pegou um elástico preto de cabelo, amarrando os fios loiros em um rabo de cavalo frouxo e relativamente baixo. Ele sentia dores de cabeça quando amarrava com força; logo, nunca estava firme.

As olheiras não haviam magicamente sumido, mas a aparência de Francis era outra. Estava em equilíbrio com o Sol.

Preocupei-me ao acreditar que Francis sairia sem comer nada, mas, felizmente, ele parou na cozinha e preparou um café. Em um dos armários, encontrou um pacote com seus queridos paun au chocolat. Eles, assim como todas as outras coisas, estavam acabando. Francis precisava fazer as compras de casa e percebeu isso ao perscrutar o restante dos mantimentos, ainda que não estivesse à procura de mais nada específico para comer no momento.

Antes de deixar a casa, pegou apenas um casaco e o molho de chaves. Dentro do carro na garagem já estava tudo que precisava para o trabalho. E sem mais cerimônias, Francis dirigiu até a universidade. Chegou 25 minutos adiantado, tempo de sobra para resolver o que fosse preciso. Lembrava-se que a reitora não havia falado nada sobre a procurar quando retornasse ao trabalho, então não se preocupou em fazê-lo.

Durham está localizada ao norte da Inglaterra, no alto de uma colina em uma península no tortuoso rio Wear. Ao falar de Durham, é natural pensar na Catedral de Durham e no Castelo de Durham. O castelo foi construído no século XI e representava uma projeção do poder do rei normando, Guilherme, O Conquistador — basicamente, visava controlar as turbulentas consequências da Invasão Normanda.

Todavia, desde 1840, o castelo é ocupado pela universidade. Em termos de antiguidade, a Universidade de Durham fica atrás apenas de Oxford e Cambridge. Nela, havia me graduado e trabalhado, logo, era como uma segunda casa. E, certamente, jamais me cansaria de admirar sua imponente beleza.

Francis, naturalmente, encontrou alunos durante o trajeto até seu departamento. Retribuiu docemente o cumprimento de todos, não deixando de notar que alguns pareciam carregar um pesar no olhar. Era natural; Francis sabia e não julgava, tampouco se abalava. Quando saiu de casa, sabia o que iria encarar pela frente.

Ao chegar ao departamento, a primeira pessoa que encontrou foi alguém que sabia ser professor, mas cujo nome não lhe vinha à cabeça. Tudo que lembrava era que se tratava de um novato e que também era francês e lecionava Cultura dos Povos de Língua Francesa. Tinha cabelos mais longos que os de Francis e eram rubros, assim como seus olhos. Ele e Gilbert eram as únicas pessoas que eu conhecia com esse tom de íris.

Quando viu Francis, parou onde estava para mais do que um simples cumprimento. Após perguntar como Francis se encontrava, explicou que lhe substituiu durante o tempo que esteve fora e que iria lhe repassar os conteúdos dados no plano de ensino. Após receber o documento, Francis apenas esperou os ponteiros do relógio cumprirem seu papel e foi à sala onde estava a turma da primeira aula do dia.

Francis tinha uma relação quase fraternal com seus alunos. Dentre os diversos tipos de professores, ele era a famosa figura paterna. Mais do que simplesmente ministrar aulas e avaliar o desempenho dos discentes, ele olhava para cada qual como um amigo e sempre estava disposto a ajudar no que fosse preciso. Ouvia problemas, dava conselhos, fazia tudo ao alcance.

Sentou-se à mesa do professor e esperou exatos 5 minutos para que toda a turma chegasse. Cada pessoa que entrava parecia parar na porta, surpresa pela retorno. Muitas desviaram do caminho em direção às carteiras e rumaram a Francis. Algumas falavam, outras abraçavam; e os dois juntos. Todas, sem exceção, sabiam do motivo da ausência do professor por 3 semanas. E quase todas me conheciam.

Durante o tempo inteiro, estive ao lado da mesa de Francis, apenas observando a calorosa recepção dada por seus alunos. Em determinado momento, todavia, uma aluna, após abraçá-lo, olhou repentinamente para o lado, exatamente onde eu estava. Arregalei os olhos no mesmo instante, e, quando eu estava prestes a lhe dizer qualquer coisa, ela desviou o olhar. Não havia me visto. Quem sabe, apenas sentido por um segundo; e nada mais.

A aula seguiu-se normalmente. Depois, Francis atentou-se ao plano de ensino, direcionando-se à outra sala para lecionar para mais uma turma. Era um de seus dias mais lotados da semana, sabia bem. No entanto, também era um dos que, por começar mais cedo, saía igualmente mais cedo. Nada muito surpreendente; provavelmente, ao fim da tarde.

No intervalo do horário do almoço, encontrou-se com Antonio e Gilbert. O espanhol estava normal, ainda que vez ou outra bocejasse; o alemão, no entanto, era nítido que estava sob efeito de energéticos. Estava elétrico.

Às quatro horas da tarde, a última aula de Francis terminou. Sabendo que Antonio e Gilbert sairiam mais tarde, enviou uma mensagem a ambos, avisando que não teria mais nenhuma turma naquele dia. Como o habitual, Francis não foi embora de imediato. Permaneceu durante um tempo dentro de sua sala e tirou a agenda de uma das gavetas, organizando o restante da semana. O professor que havia lhe substituído durante o tempo que esteve fora era um tanto sério e perfeccionista, então não foi nenhuma surpresa constatar que ele tinha feito um bom trabalho. Não havia assuntos atrasados. Francis poderia seguir normalmente com o plano de ensino, sem dores de cabeça.

Após organizar a semana na agenda, Francis ligou o notebook e abriu a caixa de entrada do e-mail profissional. E não havia novos e-mails, senão os automáticos enviados pela própria instituição e sites educacionais onde tinha cadastro. Ademais, nada de alunos. Todos haviam respeitado seu tempo e optado por não incomodar. Francis sabia que, mesmo estando de volta, levaria certo tempo para que voltasse a receber e-mails de discentes.

A sala de Francis era impecável. A combinação de tons neutros não era nenhuma novidade. Cada objeto tinha seu devido lugar. E sobre a mesa, exatamente ao lado do notebook que nunca saía de sua localização, havia três porta-retratos. Uma foto sua quando criança junto aos pais; uma com Antonio e Gilbert; e, por fim, uma nossa.

Ao terminar de limpar a caixa de entrada, Francis desligou o aparelho e desconectou o carregador da tomada. Parecia ter ficado pouco tempo por ali, mas havia passado quase duas horas. Sem mais demoras, foi embora.

Quando já saía do estacionamento, Francis encontrou uma de suas alunas e perguntou para onde ela ia. A estação de trem. A garota aceitou a carona, mas foi inevitável se sentir perdida durante o tempo em que esteve dentro do veículo.

Na realidade, nunca sabemos ao certo o que dizer para uma pessoa de luto. Até acreditamos saber, mas não sabemos; principalmente quando a pessoa a sofrer nos é importante. Percebendo o desnorteamento da aluna, Francis perguntou como foram as aulas com o professor que esteve lhe substituindo. Um diálogo considerável durou até chegarem à estação, onde a garota agradeceu pela carona e deixou o veículo.

Por ainda ser cedo, não havia congestionamento ou outras complicações no trânsito. Francis dirigiu tranquilamente, uma expressão serena adornando seu rosto. Desde meu desencarne, nunca o havia visto tão bem. Isso, naturalmente, me deixou feliz. Ver Francis bem me fazia bem. Todos os dias, eu esperava por isso.

Em determinado ponto do trajeto até nossa casa, todavia, Francis desviou do caminho, indo por uma rua que levava uma direção totalmente contrária. Não demorou muito para que uma rua já conhecida por nós dois surgisse à vista, delatando os motivos de Francis para ter mudado seu rumo.

Havia estacionado sob a sombra de uma árvore, ao lado de um estabelecimento fechado. Do outro lado da rua, havia um orfanato. E já esperando por algo, olhei para o espaço ao meu lado, encontrando, sem surpresa, uma pequena criança ao meu lado.

Alfred e Francis olhavam, da mesma maneira, para uma direção.

Francis desligou o motor e fez menção de abrir a porta do carro e sair, mas não o fez. De dentro do veículo, continuou a observar o pátio do orfanato. Estava vazio. Pelo horário, as crianças estavam todas ocupadas.

Dentro daquele lugar, havia alguém importante para nós três.

Quando Alfred desencarnou, tinha apenas 8 anos.

Aos 7, Alfred sofreu um acidente de carro em uma viagem; o mesmo acidente que lhe tirou os pais, as únicas pessoas que tinha na vida. O garoto, além de quebrar alguns ossos, teve o baço lesionado. O baço é um órgão sensível, frágil, o que torna mais suscetível a rompimentos em caso de acidentes. Usando do artifício das analogias, podemos imaginar um saquinho de plástico contendo gelatina; isso é o baço. Ao rompê-lo, o sangramento é alarmante. É preciso retirá-lo; caso contrário, o indivíduo pode sangrar até a morte. Alfred precisou se submeter à cirurgia para a retirada do órgão.

É comum ouvir que o baço é “inútil”. Usualmente, vemos pessoas desconsiderando sua importância como um dos órgãos linfoides secundários, essencial para o sistema imunológico. Pouco se fala da capacidade do baço de combater germes encapsulados, por exemplo.

Quando uma pessoa retira o baço, é preciso que ela tome três vacinas indispensáveis, sendo estas contra três bactérias encapsuladas: Streptococcus pneumoniaeNeisseria meningitidis e Haemophilus influenzae. Todavia, devido a negligências por parte da equipe do hospital, tal detalhe foi simplesmente esquecido. No mesmo ano, Alfred foi diagnosticado com meningite bacteriana e o falecimento não tardou.

No acidente que lhe tirou os pais e lhe machucou, uma pessoa saiu quase ilesa, apenas com um braço deslocado.

Matthew era um ano mais novo que Alfred e, com a morte do irmão, esteve completamente sozinho desde então. Os pais já eram solitários, visto que, desde a juventude, suas famílias não aprovavam o relacionamento entre ambos. Não tinham com quem contar. E no acidente em questão, como já mencionado, estavam em viagem. Se a Alfred e Matthew havia restado algo após a perda da família, estava no Canadá, e não na Inglaterra.

E entre tantas coisas em nossa vida, eu e Francis decidimos adotar uma criança para formar uma família. E entre tantas crianças, Matthew pareceu, contrariando seu próprio comportamento retraído, destacar-se.

Como é possível deduzir, não chegamos a adotá-lo. Não conseguimos ir até o final. Pois eu...

Eu morri.

E atrapalhei tudo.

Destruí todos nossos planos.

E estraguei tudo.

Nos primeiros dias com Alfred, ele me agradeceu por olhar para seu irmão e ter dado o primeiro passo para dar a ele uma vida normal outra vez. E tudo que fiz foi chorar, pois sabia que, do outro lado, antes de meu desencarne, Alfred havia colocado todas suas esperanças em mim e em Francis.

O que ainda me ligava a Terra era Francis.

No caso de Alfred, era Matthew.

E, agora, eu e Alfred estávamos interligados do mesmo lado.

A falta de expressão no rosto de Francis cedeu espaço à angústia. À medida que os minutos passavam e continuava a encarar o pátio vazio do orfanato, seu olhar tornava-se mais aflito. A cada situação que se seguia durante o dia, era como se ele precisasse se tornar cada vez mais forte. E eu sempre soube que isso ele era; sim, a pessoa mais forte do mundo, tão forte como um leão.

Francis desviou o olhar, encarando agora o volante. Parecia ter dificuldade para respirar, mas era simplesmente a angústia numa tentativa de lhe tomar por completo. Comprimiu os lábios e apertou a barra da camisa que vestia até a tonalidade dos nós dos dedos mudarem levemente, escurecendo.

O ato foi interrompido quando Francis percebeu uma gota d’água do lado de fora cair sobre o vidro do para-brisa. Em seguida, mais uma, e outra, e mais outra. A chuva estava chegando e tinha pressa. De repente, Francis lembrou-se de ter visto alguns alunos na universidade segurando guarda-chuvas. Não havia visto a previsão do tempo. De qualquer forma, estava de carro, então não teria problemas.

Respirou fundo e ligou o motor. Ao mesmo tempo, Alfred, que estava ao meu lado, desapareceu. E assim continuei a acompanhar Francis, que agora voltava a dirigir. Por muito pouco, não bateu no caule da árvore que lhe proporcionou a temporária sombra.

Infelizmente, encontrou congestionamento. A chuva sempre parecia retardar o fluxo. Estava intensificando-se pouco a pouco, até finalmente começar a dificultar a visão através do para-brisa para os motoristas. Francis ligou a rádio, procurando se atualizar quanto às últimas notícias. Tinha seus jornais preferidos, mas só poderia consultá-los em casa, pois eram virtuais.

Quando Francis se aproximava da rua de nossa casa, já estava escurecendo. Havia passado um bom tempo no trânsito, mas não estava estressado. O responsável por se estressar no volante sempre fui eu, afinal de contas.

Diminuindo a velocidade com a qual dirigia, Francis notou que havia uma pessoa na chuva. Estava sozinha e não havia sinal de guarda-chuva, capa ou algo parecido. E pela fisionomia, era uma garota. Aparentemente, uma criança.

Ao se encontrar mais perto da menina, Francis pôde reconhecer. Era da vizinhança. Seu nome era Lili, não tinha mais do que 15 anos e morava com o irmão mais velho, um suíço um tanto estressado que se chamava Vash; tínhamos uma boa, embora rara, convivência. Seu estresse era compatível com o meu.

Francis abriu parcialmente o vidro da janela e chamou pela menina. Inicialmente, a mesma se retraiu e olhou assustada, mas suavizou a expressão ao perceber quem era. Nossas casas ficavam a mais ou menos duas ruas dali, mas estas eram longas. Sem pensar duas vezes, Francis gesticulou para que Lili entrasse no carro, destravando a porta do passageiro. Lili hesitou, mas aceitou. Antes de adentrar, pediu infinitas desculpas, pois estava encharcada e iria molhar o veículo por dentro. Fez menção de desistir da carona por isso, mas Francis insistiu mais uma vez, alegando que se importar com algo tão supérfluo, principalmente na situação em que se encontravam, era incabível.

Era raro ver Lili sozinha. Ela estava sempre com o irmão.

Francis perguntou o que havia acontecido para Lili se encontrar na rua, sozinha e pegando chuva. Envergonhada, a menina explicou que havia saído sem Vash saber. A vergonha se transformou rapidamente em tristeza. O tom de voz que acompanhavam suas palavras delatava o arrependimento. Francis logo agiu para animar a garota, distraindo-a.

Lili sabia o que havia acontecido com Francis. E comigo. Havia lhe surpreendido ver Francis dirigindo, pois há tempos não o via. Entre tropeços na articulação das próprias palavras, a menina tentou falar palavras doces, indiretamente relacionadas à perda de Francis.

— Está tudo bem, Lili — Francis sorriu de maneira doce, tranquilizando a garota, que demonstrava nervosismo por ter se pronunciado quanto àquele assunto delicado. Estava claramente arrependida e desesperada, mas as palavras, juntamente ao sorriso, a tranquilizaram.

Francis deixou Lili na porta de casa e bastou dirigir um pouco mais para chegar à nossa. Estacionou na garagem e selecionou o que iria levar consigo para fora do carro, afinal, estava chovendo e não poderia correr o risco de molhar coisas importantes. Por isso, decidiu deixar as pastas no veículo, levando consigo apenas o molho de chaves.

Já estava escuro e a chuva contribuía com tal detalhe. E havia se tornado ainda mais violenta, caindo com tudo que tinha e tornando difícil até mesmo se ouvir os próprios pensamentos.

No geral, havia sido um bom dia.

Na realidade, desde meu desencarne, havia sido o melhor de todos. Um perfeito contraste com o anterior, que havia sido, até então, o pior. E era sempre para nós dois, pois as emoções de Francis influenciavam diretamente as minhas.

Após entrar em casa, Francis tirou o casaco e o colocou no pequeno suporte fixo à porta, feito especialmente para isso. Seus cabelos não haviam molhado completamente, mas estavam encharcados; o mesmo se aplicava às roupas que vestia. Retirou os sapatos e as meias e deixou os pares ali mesmo, sabendo que iriam sujar o restante do piso da casa.

Colocou um pouco de água para ferver e, enquanto a mesma tardava a alcançar seu ponto de ebulição, Francis foi ao quarto para trocar suas roupas. Não queria tomar banho naquele momento, deixaria para mais tarde, antes de dormir. Usou uma toalha para secar parcialmente os cabelos; o bastante para não gerar um incômodo.

Quando voltou, a água já fervia. A bem da verdade, antes de colocá-la no fogão, não tinha ideia do que iria fazer. Poderia fazer café, ainda que houvesse uma máquina para isso. Sobre a mesa, era visível uma mediana caixa de madeira vermelha. Dentro dela, havia várias divisórias, cada qual com seus sachês de chá. Havia sido primeiro de minha bisavó, depois passou para minha avó, e, finalmente, para minha mãe, que resolveu dar para mim quando decidi sair de casa e dar conta da minha própria vida.

Francis, repentinamente, saiu da cozinha. Olhou para a chuva que caía do lado de fora através da janela mais próxima da porta. A janela em questão permitia uma ampla visão de nosso jardim; que, no momento, era castigado pelo excesso de água que recebia da própria natureza. Da mesma maneira que deixou a cozinha, repentinamente deixou a sala, rumando em direção à porta.

Arregalei os olhos, sem entender sua atitude. De um momento para o outro, Francis havia aberto a porta e saído, entrando em contato direto com a chuva. Estava descalço. E sem hesitar, afundou seus pés na grama encharcada do nosso jardim.

Seu olhar era vazio.

Perdido.

Tudo havia se dissipado.

Por que o infinito azul de seus olhos se tornara tão opaco?

Francis caminhou até um canteiro específico. Strelitzia reginae, também conhecida como “ave do paraíso” e “estrelícia”. Eram minhas flores preferidas. Francis agachou-se minimamente, o suficiente apenas para conseguir tocá-las suavemente. Sua boca se entreabriu, as gotas da chuva não tardando em tocar seus lábios.

Ele iria ficar doente, mas... Mas, meu Deus, nenhuma enfermidade conseguia ser pior do que qualquer coisa antecedida pelo vazio de seu olhar. Ainda que estivesse chovendo, pude ver as lágrimas que enchiam os olhos de Francis. Elas caíam grosseiramente, misturando-se às gotículas de água advindas da revoltosa natureza.

Francis ergueu-se, voltando a ficar de pé. Levantou a cabeça, olhando para o céu. E continuou a chorar, não contendo nada em si.

E eu não pude aguentar.

Eu também chorei.

E gritei. O mais alto que minhas cordas vocais de um corpo não mais humano permitiam, gritei pelo nome de Francis.

Com tudo que eu tinha, gritei.

Com tudo que ainda me restava, gritei.

Francis não fazia questão de controlar seu choro. Como uma criança, chorava alto; mas o barulho da chuva abafava seu desespero.

Ainda assim, como se nada mais no mundo existisse, eu conseguia ouvi-lo perfeitamente. Não havia interferências naturais; seu choro era percebido por mim da maneira mais ampla possível.

Mas, quanto mais alto eu gritava, mais alto Francis chorava.

E me aproximando o máximo possível de Francis, gritei novamente o mais alto que podia, gritei mais alto do que a própria natureza em seu ouvido:

 Eu estou aqui! Eu estou vivo, eu estou bem aqui! Eu estou ao seu lado, Francis!

Mas ele não me ouvia.

Ninguém podia me ouvir.

Que todos fossem incapazes de me ver, ouvir, perceber; ao menos naquele momento, ninguém mais importava. Eu só queria que Francis fosse capaz.

Eu só queria que...

Por que, depois de gritar, o ar parecia me faltar? Por que o universo brincava comigo, dando-me sensações de alguém com um corpo em carne e osso?

Naquele momento, tamanha dor que me preenchia, eu só...

Eu só queria morrer.

Mas...

Eu já estava morto.

E não havia mais nada que eu pudesse fazer.

Minha existência tanto em vida terrena como espiritual aprisionavam Francis à dor.

E, acima de tudo; de meu desespero, de minha dor, de meu eterno cárcere, eu queria — e precisava — libertar Francis de sua dor. 


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Notas finais do capítulo

Começando pelos links

Ciel errant: https://www.youtube.com/watch?v=ICDZP83Voqo

Ave do paraíso:
https://previews.123rf.com/images/mariusz_prusaczyk/mariusz_prusaczyk1602/mariusz_prusaczyk160200547/52471786-strelitzia-reginae-a-bird-of-paradise.jpg


Uma "errata" sobre o capítulo anterior:
Com o artigo em mão, eu e meu professor percebemos que uma informação foi repassada de maneira equivocada. São 86 bilhões de neurônios, não 96. Mas, só para lembrar, as assinaturas do artigo em questão são de pesquisadores brasileiros, mesmo, hehe;;; infelizmente, há quem já duvide da veracidade simplesmente por serem brasileiros. Tenso.

Para quem ter interesse, este é o artigo original:
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/19226510

E esta é uma matéria (em pt) da Fapesp sobre o artigo:
http://revistapesquisa.fapesp.br/2012/02/23/n%C3%BAmeros-em-revis%C3%A3o/

Sei que não é nosso foco, mas, cara, é quase impossível não frisar tanto isso porque::: foi basicamente a quebra do mito dos "100 bilhões de neurônios". E por brs :')


Agora, peço desculpas pela demora. Estive abarrotada de provas, seminários e mais e mais trabalhos. Na realidade, ainda estou, risos. Tenho 3 provas na próxima semana e mais uns trocentos trabalhos. Enfim... Eu não pretendia escrever hoje, pois tenho que estudar, mas não consegui "deixar para depois" e a vontade de desenvolver esse capítulo ia ficar enchendo o saco da minha pobre concentração.

No próximo capítulo irá FINALMENTE aparecer um dos meus personagens preferidos dessa história e eu já tô ansiosa para escrever, socorro, mas vou me controlar

Antes de dar um tchau, queria falar mais uma coisa

Como vocês já sabem, nosso Arthur desencarnou em função de morte cerebral.
Há uns dias, saiu uma novidade no meio científico. Cientistas conseguiram reativar (parcialmente) as células cerebrais de porcos que haviam morrido há algumas horas. "Alto lá", não estamos falando de ter trazido a consciência "de volta". A questão se encontra em "uma preservação temporária de algumas das funções celulares mais básicas no cérebro dos porcos, e não a preservação do pensamento e da personalidade". Então não, a descoberta não se liga >diretamente< à morte cerebral. Ainda assim... É algo.

edit, pois esqueci de deixar o link:
https://www.nature.com/articles/d41586-019-01169-8

Enfim...
Muito obrigada a você que leu até aqui!
Até o próximo! ♡



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