Acesos escrita por Kate Lewis


Capítulo 1
Único




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Ela usava sapatos delicados e claros, e sorria abertamente ao se ver no espelho. A penteadeira do seu quarto era toda de madeira, e sobre ela havia um pequeno arranjo de crochê branco que sempre a fizera se sentir em casa. Da janela, a luz dourada tingia o seu vestido novo de uma tonalidade vibrante, e era um tanto por sua culpa que ela se sentia encantada ao se olhar de frente.

(Marilla havia costurado-o com afinco, seus dedos um pouco trêmulos ainda muito hábeis. Havia se derretido com o tempo, era verdade, e às vezes pensava que era tudo culpa de Matthew, sempre tão doce com a menina. Já não era tão capaz de lhe negar mangas bufantes nem doces prediletos.)

Anne se encarava no espelho com um pouco de nervosismo, o calor do sol tocando sua nuca nua – o cabelo ruivo preso em suas tranças habituais. Por mais que tentasse, ainda não conseguia se sentir completamente bem sem elas. Pensava, em devaneios de angústia, se tudo aquilo era mesmo suficiente, e em um momento mordeu o lábio em uma ansiedade quase palpável.

Por fim, desistindo de esperar por um milagre, suspirou fundo e acenou à sua linda cerejeira branca, saindo pela porta com um livro nas mãos. Passou pela mesa de jantar no andar de baixo, pela cozinha que ela adorava tanto, e ouviu a voz de Marilla lhe perguntar para onde estava indo. Anne estacou já com a porta aberta, e a olhou com um sorriso amarelo.

— Preciso entregar isso a Gilbert – e apontou para o livro, seus gestos rápidos e a voz arriscando o bom-humor de Marilla.

Esta lhe sorriu singelamente, quase no caminho de lhe dizer algo importante.

— Não demore para voltar.

Anne abriu um sorriso enorme enquanto agradecia, e então saiu pela porta, tomando algum cuidado para não se sujar enquanto andava rápido pelos caminhos de terra.

 

...

Ela esperava encontrá-lo tão logo batesse na porta de sua casa. Mas, depois de uma demorada espera, percebeu que talvez ninguém tivesse sequer escutado-a. Quando bateu novamente, no entanto, com um pouco mais de força, a porta se entreabriu sem querer, dando para uma cozinha adorável em que ela nunca havia estado.

Pisou os pés para dentro só porque nunca fora muito boa em conter a própria curiosidade, e tentou chamá-lo mais uma vez.

— Gilbert? – e sua voz soou pelos cômodos mais próximos, quietos em resposta. Ela franziu os lábios, tomada por uma frustração, e pensou que talvez pudesse encontrá-lo em um outro dia.

Quase se virou para ir para fora, indecisa, quando ouviu um barulho vindo de um aposento de cima da casa. Mordeu os lábios, lembrando que Marilla lhe contara que Sebastian estava passando alguns dias em Charlottetown com Mary. Reviveu sua ansiedade, respirando fundo, e tomou coragem para ir em direção às escadas. Subiu-as com cuidado, apoiando seus dedos no corrimão, até que desse de cara com um pequeno corredor, e uma porta fechada.

Seu coração bateu forte demais, e ela quase decidiu fugir. Mas o livro pesava em suas mãos, e ela de repente sentiu vontade de descobrir de que cor seriam as paredes de seu quarto, e de que lado sua cama estaria escorada.

Avançou com uma timidez que não era sua, e bateu na porta com suavidade, achando-se muito tola assim que ouviu um ruído do lado de dentro. Percebeu aos poucos que havia invadido a casa dele, sem pedir permissão, e quis muito voltar correndo pelas escadas. Mas a porta se abriu pela metade tão rápido que ela só pôde congelar no lugar, absorta com aquela visão.

— Anne?

A voz dele era tão linda, e ele parecia surpreso. Ela enrubesceu de imediato, sem saber como lidar com o fato de que ele não vestia uma camisa e seus pés estavam descalços. Só de calça, os cabelos escuros revoltos, e os olhos tão surpresos quanto encantados.

O rosto dela estava mesmo todo vermelho, e ele amava o quanto seus cabelos eram ruivos. Ela usava um vestido rodado e curto, azul, e as mangas bufantes iam até o comecinho de seus braços nus. Os ombros estavam quase inteiros à mostra, e ele engoliu em seco só de se dar conta de que estavam tão sozinhos.

(As férias vinham sendo longas, e ele não queria admitir o quanto sentia falta de vê-la de perto.)

— O que você...? – e foi dizer isso, os olhos nos dela, para que ela desatasse a lhe dizer muitas coisas.

— Gilbert! Oh, deus, me perdoe, eu não deveria ter vindo, eu... eu só queria passar para lhe entregar uma coisa, porque... foi natal, você sabe, e eu pensei que seria bom retribuir o presente que você me deu. Eu realmente gostei muito — e as suas sobrancelhas se juntaram em uma expressão quase suplicante. – Pensei que gostaria de receber algo que tem estado na minha estante desde que vim para cá.

E emudeceu, olhando-o aflita até se lembrar de lhe estender o livro. Ele segurou-o nas mãos, confuso enquanto passava os olhos de seu rosto até a capa bonita. Abriu as páginas, percebendo seus muitos desenhos. Os traços eram certeiros, as cores azuladas. Devia ser um exemplar raro, pintado à mão, e ele sentiu um aperto no coração ao observar tantas linhas separando continentes.

Gilbert Blythe: Global. Bookish, havia dito, e ela não podia ter sido mais certeira.

— É um Atlas – constatou, apenas, olhando para ela com os olhos brilhantes.

— É, sim. Pensei que iria gostar, porque sempre me lembro de você, e Marilla e Matthew não leem realmente mais nada – e ela deu um pouco de ombros, quase querendo se justificar ao ver a forma como ele a olhava tão de perto.

— Anne... – ele soltou a respiração, segurando sua mão de um jeito muito delicado. Levou-a aos lábios, fechando os olhos quando a beijou, e ela sentiu que tudo em volta desaparecia. Sentiu quando ele abaixou suas mãos e continuou segurando a sua, gostando tanto do quanto era macia que chegava a afagá-la. Ela tinha o corpo inteiro mais quente só de olhar para os olhos dele, e era realmente uma pena que não tivesse ideia do que fazer com isso. A calça dele estava amassada, e ela precisou se desfazer de seu aperto para não lhe entregar tudo o que vinha pensando.

— Preciso ir – e, sem querer lhe dar escolha, virou-se rápido, de costas para ele. Estava quase chegando até as escadas quando ele a interrompeu.

— Anne...

Viu quando ela se virou, o rosto corado e a respiração mais rápida. Pediu com os olhos que ela ficasse para sempre, e então ergueu a voz:

— Quero te mostrar uma coisa.

Ela mordeu o lábio, acelerada, e lembrou-se de todas as cartas que fizera questão de lhe endereçar, do outro lado do mundo, e da sensação sôfrega de esperar cada resposta. Não tinha ideia se ele também ansiava tanto por ela, mas estendeu seus passos até ele, um de cada vez, decidindo ficar porque não tinha realmente escolha.

Viu quando ele segurou a porta para que ela entrasse, e passou por ele se arrepiando.

Seu quarto estava só um pouco bagunçado, e ela não queria ter amado-o tanto. Seu armário era baixo e marrom escuro, e Gilbert havia colocado vários livros em cima dele. A cama estava do lado direito, e a luz de uma janela já vinha fraca pelo pôr do sol. Havia duas paredes pintadas de marrom, e duas quase brancas, e ela se virou para ele com qualquer encanto em seu sorriso.

Ele piscou um olho, com aquele seu sorriso de lado que a deixava vermelha, e encostou a porta atrás dele. Tomou sua mão em um gesto que a arrepiou, e a levou até uma escrivaninha onde seus cadernos e penas se espalhavam. Ali em cima, no canto, residia majestoso um globo terrestre inclinado. Estava desgastado, e não foi com surpresa que ele viu Anne estender os dedos para tocá-lo, esquecendo sua mão por alguns instantes.

— Ah, meu deus, essa é a coisa mais linda que eu já vi na minha vida! Gilbert... – e o olhou, um sorriso que fez com que ele sorrisse também.

— Era de meu pai. E, antes, de meu avô. Os dois adoravam viajar.

— Eu sei – ela disse, enquanto voltava a olhar para o globo, tentando decifrar seus cantos e palavras.

A luz da janela a tocava nas costas, e ele viu quando uma pequena mecha de cabelo escapou de suas tranças, toda ela tão alvoroçada que era uma surpresa que já não estivesse toda desfeita. A ideia mexeu com algo em seu peito, e ele observou o sol transformar em fogo os fios que desciam por sua nuca. Olhou de novo para seus ombros, para as pintinhas espalhadas pela pele clara, e se aproximou sem quase perceber.

Tocou tão leve a mechinha solta que Anne encolheu os dedos, fechando os olhos. Sentiu que ele tocava sua trança, e assistiu quieta quando ele a desfez tão devagar, querendo que cada chama tomasse seus dedos no silêncio certo, numa ciência exata. Desfez todo um lado e, passando as mãos pelo ombro dela, aproximou-se para desfazer o outro. Tão quieto e tão calmo que ela sentiu que derretia em suas mãos. No final, o cabelo inteiro pegando fogo, ela o sentiu bagunçar cada fio conforme passava seus dedos por eles.

Ela se virou, linda como uma leoa, seus fios vermelhos intensos pelas últimas brechas da janela. Olhou-o, seus olhos claros fitando aqueles orgulhosos e inteligentes olhos castanhos.

Sabia que era ele, por algum motivo, desde o início. E só o que pôde fazer foi lhe contar cada sílaba conforme se aproximava e alastrava o fogo por seus lábios lindos. Ele a beijou de volta, só porque tinha vontade de lhe acompanhar todos os dias, e porque já era ridículo demais fingir que não estava sempre prestes a lhe oferecer tudo que tinha.

Apertando-se como podiam, viram o calor do sol ir embora, e então incendiaram o mundo inteiro.


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Notas finais do capítulo

Eu gosto demais deles. Demais. E a cena de um Gilbert desfazendo as tranças dela me deixa tão... ♥ ai. nem sei dizer.
Obrigada por lerem até aqui, e feliz natal pra vocês.
Beijinhos