A Melodia Profana escrita por Biax


Capítulo 1
Um




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Uma melodia suave instigava a grama e algumas folhas por ali, saída de uma flauta escura sendo assoprada por um rapaz de cabelos escuros. Os olhos do garotinho ao lado brilhavam de emoção e expectativa, observando seu amigo canino rodeado por uma áurea esbranquiçada e mágica. Não demorou para que ele desse sinais de que estava retornando à vida, e logo abriu seus olhos e, vendo seu melhor amigo, começou a abanar o rabo.

O garoto caiu em lágrimas, e abraçou o cão, tão feliz que mal conseguia falar.

— Dê água e o alimente, está bem? — O bardo disse, suavemente.

— Sim. Obrigado, Armin, obrigado! — murmurava ele.

— Por nada. — Armin levantou-se e guardou a flauta em seu cinto.

De repente, ambos ouviram cascos batendo contra a terra, apressados. Alguns cavalos passaram ao lado deles, e em apenas um havia um homem. Armin estranhou o movimento.

— Ei! O que houve?!

O homem fez o cavalo parar de correr, e deu a volta, sem parar de se movimentar.

— Um troll surgiu atacando a cidade! É melhor vocês correrem, antes que ele chegue aqui. — E com as últimas palavra, saiu em disparada.

Rapidamente, Armin buscou seu cavalo e encaminhou-se para a cidade, encontrando no caminho diversas pessoas correndo com seus pertences. Assim que se aproximou da entrada da vila, desceu e entrou a pé, tentando encontrar o tal troll. Graças aos urros do destruidor, pôde seguir até sua localização.

De longe, o viu esmurrando as casas e o que encontrava no caminho.

Com o coração acelerado, Armin avançou sem ser visto e sacou sua flauta, tentando se lembrar das canções que aprendera há pouco tempo. Quando uma surgiu, começou a soprar o instrumento, lançando notas no ar, agitando-o.

A sua frente, um moinho de vento começou a se formar e, quando estava forte o suficiente, avançou para o troll. Armin acompanhou logo atrás, porém, sem se aproximar demais. O troll não percebera devido a sua fúria, e foi pego pelo tufão. Começou a se debater, tentando se livrar das rajadas de vento que o jogava de um lado para o outro, apesar de seu peso. Seus gritos ficavam cada vez mais altos, e seus olhos localizaram o conjurador de sua prisão. Jogando o peso para o lado, saiu de dentro do tufão para o chão, e levantou, sem que desse tempo de a magia voltar a ele.

Em apenas dois passos, o troll chegou perto e jogou o bardo para o lado com apenas um tapa. Armin bateu contra um tronco velho, quase inconsciente. Mesmo assim, buscou sua flauta na grama e, antes de encontrá-la, vislumbrou uma luz em alta velocidade na direção da vila destruída. Antes que raciocinasse, o vulto passou por ele e se chocou contra o troll, o jogando para trás.

Apesar do momento de confusão, devido a batida na cabeça, Armin sabia quem era.

Dali, sentado e de braços cruzados, observou o paladino derrotar o troll sem muito esforço. Nem três golpes foram necessários.

Após o monstrengo cair no chão, morto, algumas pessoas surgiram batendo palmas e assoviando, comemorando a vitória. O bardo não se mexeu. Não sentiu vontade de fazê-lo. Tudo bem, ele não tinha feito grande coisa, mas foi o primeiro a chegar. Ele deixara o troll atordoado.

Como sempre, Alex ganhava toda a glória.

Cansado de ver os civis cumprimentando o paladino, se levantou com certo esforço e, não muito longe, avistou sua flauta. A pegou, limpando a sujeira, a guardou e começou a andar em direção ao bosque, evitando a aglomeração perto das casas. Deu a volta, andando cabisbaixo e com raiva, e foi para casa, pensativo.

Ele estava cansado daquilo. Talvez estivesse na hora de se aventurar por aí, sozinho. Sem seu irmão comandando o trajeto, ou ordenando o que deviam fazer.

Assim que entrou em casa, seguiu para o quarto. Pegou sua bolsa, colocou algumas roupas, seu punhal, amarrou algumas cobertas e pegou alguns pães e frutas na cozinha. Era o básico que precisaria. Armin era novo, mas já tivera algumas jornadas que o ensinaram como sobreviver, apesar de sempre estar acompanhado de seu falecido pai e seu irmão.

Infelizmente não foi rápido o suficiente. Seu irmão adentrou a cozinha, vendo a bolsa acima da mesa, e indagou com o olhar. Armin a puxou para o ombro e deu a volta, prestes a sair.

— Recebeu algum trabalho? — perguntou Alex.

— Não é da sua conta.

— O que aconteceu?

Armin travou o maxilar. Alex sempre usava aquele tom inocente, fingindo não saber o que sempre fazia. Todas as vezes.

— Por que você não vai ajudar seus civis? Eles devem estar esperando por você para respirar o mesmo ar.

— Eu não entendo...

— Eu cheguei primeiro — exclamou baixo, irritado. — Eu ia cuidar daquele troll.

— E onde você estava?

— Estava prestes a atacá-lo de novo! E aí você chegou, e eu fiquei parado vendo o espetáculo!

— Poderíamos ter trabalhado juntos...!

— Ah, cala essa boca. Você nem sequer suou para matar aquele verme. Você é o herói dessa cidade, não sei por que ainda me dou o trabalho de tentar fazer alguma coisa.

Alex ficou surpreso com o tom do irmão. Nunca o vira daquele jeito, então não sabia o que dizer para acalmá-lo.

— Não ouse me seguir. — Armin finalizou a conversa, e saiu de casa, batendo a porta.

Atravessou a vila a passos pesados, sem prestar atenção para onde ia. Ele apenas queria andar, conhecer algum lugar. Algo. Qualquer coisa.

Quase uma hora depois, sua raiva se esvaíra, e seus passos já não estavam mais apressados. Ele caminhava tranquilamente, admirando as paisagens que encontrava. Andou durante toda a tarde, parou em uma pequena caverna para dormir, e continuou logo que amanheceu após um breve desjejum.

Enquanto admirava o campo de flores pelos quais passava, Armin se lembrava de sua mãe. Como ela gostava de tocar harpa no jardim ao amanhecer. Sua habilidade era tanta que nem precisava estar atenta ao instrumento, seus dedos dedilhavam as cordas suave e rapidamente, por puro instinto. Era algo que ele adorava assistir. Ela sempre dizia que ele havia herdado o mesmo instinto para a música, e foi assim que ganhou sua primeira flauta. De fato, parecia um dom, pois as melodias fluíram naturalmente assim que começou a treinar.

Junto dessa habilidade, veio outra: o dom da cura através das notas musicais. Sua mãe o ensinara como tocar e curar, quer fossem plantas, animais ou pessoas.

Seu estilo sempre combinara com o trabalho de bardo. Sempre gostou de se aventurar, tocar músicas para alegrar quem estivesse por perto e sempre tinha informações relevantes. A única coisa que o incomodava era que, normalmente, bardos acompanhavam outros seres, guerreiros, magos, paladinos... Ou seja, um bardo era sempre um mero acompanhante que fornecia suporte.

Armin queria ser mais do que um acompanhante. Ele buscava sabedoria, aventuras e poder e, por isso, sabia que devia seguir sozinho. Era o único jeito.

Após a morte de seu pai, os trabalhos que conseguia eram sempre por conta de Alex, que sempre diziam que eles eram uma dupla, que precisavam trabalhar juntos. A maioria dos trabalhos eram simples: acompanhar carregamentos valiosos, ajudar em travessias perigosas, afugentar e, ou, matar seres ruins em cidades vizinhas... Nada que suas habilidades fossem necessárias. Caso precisasse, Alex já estava ajudando antes mesmo de alguém pedir ajuda. Raras eram as vezes que a violência era essencial.

Não que ele fosse alguém que gostasse de violência, porém, sua vida estava monótona demais.

Após dois dias passando por algumas vilas sossegadas, enquanto andava por uma estrada vazia, avistou uma carroça parada e, ao se aproximar, notou que uma das rodas havia quebrado. Indo para a frente, viu uma senhora alimentando os dois cavalos que puxavam a carroça.

— Senhora? Precisa de ajuda?

— Oh, querido, seria adorável, mas imagino que você não tenha uma roda em sua bolsa.

— Hm... Não, mas... — Armin olhou ao redor, procurando por algo que pudesse ajudá-los, e viu uma árvore caída. — A senhora por acaso teria um machado e uma corda?

— Sim, eu tenho. — Ela deu a volta e indicou onde as ferramentas estavam.

Armin as pegou e foi até o tronco. Primeiro, cortou as extremidades, deixando um toco com menos de um metro. Com a ajuda de uma foice, fez furos ao longo do tronco, por onde passou a corda e amarrou na estrutura da carroça.

— Podemos tentar — informou após algumas horas de trabalho, e prontamente a senhora fez os cavalos andarem alguns metros.

— Funcionou! — Ela comemorou, sorrindo.

— Acho que deve aguentar até chegar na cidade mais próxima.

— Eu lhe agradeço profundamente, querido. Você está indo até a cidade? Quer uma carona?

— Aceito uma carona.

— Então vamos. Meu nome é Rubina.

— Armin.

Depois de guardar as ferramentas, Armin subiu ao lado da senhora na frente da carroça, e assim eles seguiram até a cidade, comendo algumas das frutas que a senhora estava levando para vender.

— Você gosta de música? — perguntou Rubina, indicando a flauta presa no cinto do bardo.

— Sim, amo música. Quer que eu lhe toque algo?

— Com muito prazer.

Armin começou a tocar uma das músicas que aprendera com sua mãe. Notas médias e alegres fluíram entre seus dedos, e o sorriso no rosto de Rubina foi quase automático. Como ela pareceu tão feliz, o bardo continuou tocando algumas melodias até estarem nos arredores da cidade.

Quando chegaram, Armin desceu e agradeceu.

— Muito obrigada pela ajuda, querido... Eu quero te dar uma coisa...

Rubina mexeu em suas bolsas até encontrar o que procurava. Uma caderneta em capa de couro e uma fivela, prendendo as folhas soltas.

— Aqui. Minha irmã também gostava de tocar e compor. Ela morreu há alguns anos... Espero que você possa aproveitar as criações dela.

— Tem certeza que quer me dar uma lembrança importante? — Armin hesitou.

— Tenho. Terá mais utilidade para você do que para mim. Aceite, por favor.

Ele aceitou o presente. — Obrigado.

— Eu que agradeço. Boa sorte na sua viagem.

— Igualmente.

A senhora Rubina seguiu com sua carroça, e Armin procurou uma hospedagem para passar a noite. No outro dia, tomou café da manhã e voltou à estrada, lembrando-se do caderno. O abriu e começou a ler as partituras enquanto caminhava, já conseguindo montar as melodias em sua mente.

Próximo ao anoitecer, Armin parou debaixo de uma árvore para descansar e comer. Aproveitou e pegou sua flauta para treinar alguma das músicas. A que mais chamou sua atenção foi a penúltima. Havia algo de diferente nela.

Começou a soprar o instrumento e usar os dedos, fazendo a melodia nascer.

Armin sentiu o vento soprar seus cabelos, como uma rajada lenta. Parou, e o vento também. Voltou a tocar, e novamente seus fios balançaram. Notou, então, que aquela não era uma partitura comum. Ela era especial, conjurava algum tipo de poder e, curioso, o bardo aumentou a velocidade da melodia. Percebeu que o vento veio com mais rapidez, mais intensidade.

Conforme praticava, conseguiu manipular a velocidade das rajadas e direcioná-las. Conseguiu arrastar troncos e galhos caídos, folhas e até algumas pedras.

Sorriu, agradecendo mentalmente à Rubina por aquele presente.

Será que ela sabia? Que uma das melodias de sua irmã era especial?

Talvez, no fim das contas, a moça também fosse um ser do ar, inclinada a conseguir conjurar magias à base dele. Ou talvez fosse coincidência.

Tarde demais, Armin notou que ficou boa parte da madrugada treinando, e dormiu pesadamente a manhã toda, acordando quando o sol estava a pino. Comeu algumas coisas, arrumou suas coisas e voltou a caminhar. Poucas horas depois, notou uma muralha iniciando em certo ponto do caminho, e continuou. Era uma vasta muralha, e devia ser um vasto reino.

Finalmente, chegou à entrada da fortaleza. Pôde visualizar como era por dentro, já que os portões estavam abertos, porém, estranhou o silêncio, a falta de movimento. Entrou, lentamente, atento a qualquer barulho. Alguns sons chamaram sua atenção. Sons de aço sendo golpeados contra outros objetos do mesmo material.

Seguindo o barulho, que começou a ficar mais alto, percebeu que era uma luta. Haviam pessoas brigando. Alguns gritavam em uma língua desconhecida, guinchavam e resmungavam.

Armin achou no caminho corpos sem vida, e logo encontrou a cena onde a guerra ainda acontecia. Alguns cavaleiros lutavam contra bárbaros invasores entre os mortos e, em um dos cantos, Armin avistou alguém curvado sobre um dos corpos. Ele tremia e, de repente, levantou-se, pegou a espada caída no chão e avançou sobre os invasores, gritando desesperadamente. A voz repleta de raiva e mágoa. Ele era habilidoso, derrubou três bárbaros em poucos minutos, enquanto os poucos cavaleiros eram massacrados.

O bardo não sabia se devia interferir, entretanto, Alex não estava por perto para ajudar. Apenas ele poderia fazê-lo, e conseguiria colocar em prática o que aprendera há pouco.

Sacou sua flauta e começou a tocá-la. O vento soprou, cada vez mais forte, e jatos batiam contra os bárbaros, os jogando para o alto e para os lados, para as paredes. Mais dois bárbaros restavam, e atacavam o guerreiro sobrevivente. Armin se aproximou para ataca-los com mais intensidade, e antes que chegasse perto, o guerreiro cortou suas gargantas com um movimento giratório, fazendo-os cair para trás e sangrar até a morte.

O guerreiro, de costas, não notou a presença de Armin. Respirava ofegantemente, observando a cena de destruição e morte. Deixou a espada cair, e segundos depois se ajoelhou, começando um choro angustiado.

Armin sentiu-se tocado pela dor do guerreiro, e apenas podia demonstrar apoio. Deu os poucos passos que os separavam e tocou-lhe o ombro, fazendo com que o guerreiro se jogasse para o lado e se arrastasse para trás, ao mesmo tempo que puxava sua espada junto. Rapidamente Armin se afastou, erguendo as mãos, e só então viu que o guerreiro, na verdade, era uma guerreira.

— Quem é você?! — indagou ela, assustada, levantando-se e empunhando sua espada.

— Calma, eu estava te ajudando...

— Estava? — Soou confusa, desconfiada.

— Sim. Me livrei de alguns bárbaros para você.

— Ah... obrigada. — Descansou os braços, mas não soltou a espada. — O que faz aqui?

— Eu estava andando pela região... procurando algo para comer. Sou... um viajante. E você?

— Meu nome é Galienne Averardus, filha de Guillelmus Averardus Segundo. — A guerreira hesitou, como se esperasse que Armin reconhecesse tal nome. — Ah... você disse que é um viajante, não é? Então não conhece nada por aqui.

— Não, não conheço...

— Meu pai é o rei de Gapia, exatamente onde estamos. Ou melhor... era rei — acrescentou, olhando tristemente ao redor.

— Mas... o que houve aqui?

— O reino foi invadido pelos bárbaros. Vieram pelo Norte. Não eram esperados... Atacaram no meio da madrugada. Deviam ser em torno de cinquenta ou mais. Não tínhamos guerreiros suficiente, todos os homens tentaram lutar, algumas mulheres conseguiram fugir com seus filhos... Eu fiquei para lutar ao lado do meu pai e meu irmão... — Seus olhos se encheram de água novamente. — Eles não conseguiram se esquivar dos golpes... — Galienne fungou e dispersou as lágrimas. — Minha família morreu.

— E... agora?

— Eu não sei. Eu... Não sei o que fazer.

— Você... é a princesa de Gapia, não? E agora... você será a rainha.

— Eu vou governar quem? Os mortos? Quem conseguiu fugir provavelmente não voltará. E também... eu não tenho vontade de governar. Nunca tive... Bom... Eu acho que tenho parentes em Ekrakar. Ouvi meu pai falando deles algumas vezes. Sabe onde fica?

— Não, mas podemos tentar descobrir. Provavelmente seu pai tinha mapas, não?

— Sim, claro. Podemos... procurar. Venha.

Galienne seguiu na frente com sua espada. Guiou o caminho até o castelo, e os dois subiram até o escritório de Guillelmus. Não havia uma alma viva lá dentro, estava silencioso. O silêncio pós massacre.

A garota deixou sua espada ensanguentada sobre a mesa e buscou alguns livros nas várias estantes que ornavam as paredes. Armin a ajudou, e eles encontraram alguns mapas datados, e escolheram o mais recente para pesquisar o local. Demoraram alguns minutos até localizarem o reino de Ekrakar, mais ao sul. Talvez levasse cinco dias ou mais de viagem.

— Bem... Acho que não tenho outra opção senão ir para lá — disse Galienne dobrando o mapa. — Aliás, para onde você está indo?

— Nenhum lugar específico. Estou... em busca de conhecimentos. Você gostaria que eu a acompanhasse?

Ela colocou a mão desocupada na cintura, pensando. — ... Tudo bem. Acho que será uma boa ideia ter um viajante como companhia. Mas se você tentar alguma gracinha, eu arranco sua cabeça em um golpe só.

Armin ergueu as mãos novamente. — Juro que não farei nenhuma gracinha.

— Ótimo. Eu... — Olhou para baixo, para sua armadura respingada de sangue. — Vou me limpar, arrumar algumas coisas e podemos ir. Se quiser se limpar também, pode usar o quarto do meu irmão. É o último do corredor.

Indo na frente, Armin foi até o quarto. Aproveitou para se lavar e trocar as roupas. Após terminar, encontrou Galienne no corredor, já com sua bolsa e sua espada na bainha, e desceram até os aposentos da cozinha, onde fizeram uma refeição rápida, e ela equipou sua bolsa com o que sobrou. Enquanto caminhavam para fora da vila, Armin observou os corpos que jaziam ali, pensando como a pequena guerreira parecia alheia a eles, ou mesmo parecia não ligar muito para a família que morrera, apesar de tê-la visto chorar.

Galienne levou Armin até as baías dos cavalos e aprontou dois deles para os ajudar na viagem. Os selou, guardou comida e galões de água para eles, ajeitou as bolsas e cada um puxou o seu para fora.

— Antes de ir... você não deseja enterrar seus familiares?

— Eu não sei onde eles estão, e também não quero vê-los. Não quero... me lembrar deles desse jeito. — Sua voz embargou, evitando olhar para o chão que passavam.

— Entendo.

Os dois chegaram à estrada e começaram sua caminhada para o sul.

— Como você me ajudou? — interrogou Galienne casualmente, de repente.

— Eu... conjurei um poder de ar e arremessei os bárbaros para o alto. Eles morreram com o impacto no chão, ou pelo menos ficaram desacordados.

— Você é feiticeiro? Mago? — Encarou o outro curiosamente.

— Não. Sou bardo.

— Então você viaja o mundo?!

— Hm... Não. Na verdade, não viajei para tantos lugares assim.

— E como você aprendeu a controlar o ar?

— Herdei da minha mãe, assim como a habilidade com a música. E eu não controlo o ar. Eu só... sei alguns modos de usá-lo ao meu favor.

— E como faz isso?

Para mostrar, Armin puxou a flauta e tocou uma melodia. O ambiente, até então sem vento algum, começou a balançar os cabelos longos de Galienne, vindo como uma brisa, para então se transformar em um jato de ar intenso e repentino. Ela, surpresa, encarou Armin com a boca entreaberta, e ele riu, voltando o instrumento para o cinto.

— Assim. Mas eu não sei fazer tanta coisa, aprendi poucas melodias que manipulam o ar.

— Então a música que controla?

— Em partes, sim, porém, se alguém que não possui algum poder tocar, nada acontecerá.

— Uau... é fascinante. Eu sempre ouvi histórias sobre... pessoas como você. Sempre sonhei em ter algum poder especial.

— E você não tem? — Armin perguntou, descrente.

— Não. Por que fala como se eu tivesse?

— Eu a vi lutando contra os bárbaros. Você tem uma força inacreditável. Até achei que fosse um guerreiro.

— O que quer dizer? Que uma mulher não pode ser uma guerreira?

— Você entendeu o que eu quis dizer. E eu a vi de costas, apenas quando você virou, assustada, que vi seu rosto.

— Hm... Tudo bem. Eu... sempre treinei. Desde criança. Meu pai... queria que eu soubesse me defender. Muitas vezes, eu desejava ser uma menina comum, para poder brincar de boneca o dia inteiro, escolher vestidos para usar... Mas na maior parte do tempo, eu usava os trajes de treino, às vezes usava armaduras feitas especialmente para mim e meu irmão. Treinávamos juntos. Eram bons momentos, apesar das dores. Hoje em dia agradeço por ter sido do jeito que foi.

— Uma princesa guerreira. — Armin sorriu. — Isso é algo que eu nunca vi.

— Está vendo agora.

Armin e Galienne fizeram uma pausa horas depois para comer, e outra ao anoitecer para se alimentar e dormir. Na manhã seguinte, verificaram o mapa e marcaram por onde tinham ido e para onde deviam seguir. Não havia muita conversa entre os viajantes. Apesar de não se conhecerem tão bem, eles ficavam confortáveis com o silêncio que reinava durante boa parte do dia.

Apenas dois dias de viagem depois, enquanto comiam e bebiam em uma pequena instalação, é que conversaram mais avidamente.

— Sabe, chega uma hora que você cansa — disse Armin, mudando de assunto de repente, um pouco embriagado, mesmo depois de comer. — Acho que ninguém cresceria com a mente saudável sendo a sombra do irmão prodígio.

— Você é a sombra do seu irmão? — indagou Galienne, também alterada pelo quarto copo de bebida.

— Sim. E olha que ele é alguns minutos mais novo que eu! Ele sempre foi iluminado. Meus pais já sabiam para onde ele seguiria quando crescesse. E ele puxou meu pai. Ele sempre foi um guerreiro iluminado. Ele também era paladino. Sempre serviu à Deus, sempre foi forte, bondoso... Mas Alex... parece que faz de tudo para me irritar. Parece que tudo isso é uma fachada, que ele não é tão bonzinho assim, que adora ser o maior, que adora ser presenteado, elogiado por seus feitos... Ele me tira do sério — resmungou, batendo o corpo vazio na mesa.

— EI! PARA COM ISSO!

Ao prestar atenção à sua volta, o bardo notou que todos os que estavam na instalação tentavam fechar as janelas e portas, mas não conseguiam devido à ventania que soprava para dentro do lugar. Galienne protegia o rosto e seus cabelos escuros balançavam fortemente para trás. Armin deixou sua raiva de lado, e assim o vento foi cessando gradativamente.

As conversas sobre o vento repentino começaram, e todos voltaram aos seus lugares.

— Desculpe — murmurou Armin, erguendo seu copo, pedindo mais bebida.

— Bem... Então você nunca se resolveu com ele, pelo jeito — continuou Galienne, puxando os fios para trás.

— Não. Eu quero tanto... ser forte. Também quero ser reconhecido. Quero conseguir acabar com ele em alguma luta. Eu nunca consegui derrotá-lo nos treinos que fazíamos. Ele sempre foi mais forte do que eu. Ele sempre comandou os trabalhos. Sempre estava à frente de tudo. Eu cansei... Por isso resolvi viajar sozinho. Para ficar forte.

— Entendo. Eu nunca tive esses problemas com o meu irmão. Estávamos sempre iguais... — E, de repente, seus olhos se encheram de água. — Ele era meu único amigo, e eu nunca mais vou vê-lo. — Começando a chorar, ela soluçou e bebeu metade do seu copo em um único gole. — Eu devia ter lhe dado um fim digno. Eu devia tê-lo enterrado devidamente. Eu sou um monstro egoísta.

— Por que está chorando, benzinho? — Um rapaz barbudo perguntou, parando ao lado da mesa e tocando o rosto de Galienne, que rapidamente levantou em um salto. A pele morena ficando vermelha.

— NÃO ME TOQUE, SEU PORCO IMUNDO!

— Com quem você acha que está falando, sua meretriz?! — exclamou ele, empurrando a cadeira para longe.

— Meretriz é a depravada da sua mãe!

— O QUÊ?!

Antes que o homem avançasse, Galienne avançou primeiro com toda sua raiva, o empurrando, o fazendo cair para trás em uma das mesas que desabou. Ela foi para cima, sem dar tempo para ele reagir, e começou a socá-lo na face. O homem tomou impulso e a empurrou ao mesmo tempo que se erguia. Antes que conseguisse acertá-la, a ventania voltou com ainda mais força, levando as cadeiras e algumas louças para o fundo do cômodo. Alguns bêbados perderam o equilíbrio e foram levados junto.

Aproveitando o susto, Galienne deu uma cabeçada no nariz do homem, que grunhiu de dor, enquanto ela era puxada para fora por Armin.

— Muito bem, guerreira — resmungou ele, protegendo os olhos do vento, que só parou minutos depois, para que ninguém os seguisse. Só então soltou a menina.

— Ninguém toca em mim. Ninguém.

Armin se afastou um pouco dela, apenas por precaução. Suspirou.

Após alguns minutos de caminhada, avistaram um abrigo debaixo de grandes pedras e resolveram parar ali, onde dormiram durante a noite toda.


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