Os Observadores escrita por Cozinheira de Cookies


Capítulo 2
Sem mentiras, por favor




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            Sabe aquele momento em que você pensa que já está no fundo do poço e que não há mais como se jogar pra cima? Bem, era exatamente assim que eu estava me sentindo enquanto era levada, imponente e sedada, pelos fortes braços dos médicos, mas sabia que as luzes extremamente brancas naquele ambiente claro afetavam meus olhos adulterados, mesmo assim, ainda de relance, olhava para o lado e via fleches de várias cores, como se visse vários rastros inexplicáveis. A meu ver, naquela hora, o remédio estava me causando isso.

            Enquanto voltava a minha lucidez e o efeito das drogas passava, voltei a resistir a quem me carregava do melhor jeito que conseguia.

            Quando meu cérebro voltou a operar "normalmente" e se deu conta de que nenhum esforço que eu fizesse iria me ajudar naquela situação _estúpida Emy _ e comecei a gritar e continuei com as contorções, me virando para trás uma vez, notando meus pais na porta que me separava agora no meu "mundo antigo".

            _Mãe, for favor, você sabe que eu te amo. Por favor, não faça isso comigo, mãe. Eu prometo ser melhor do que antes, nunca mais vou reclamar de coisas inúteis e das visões, porque eu sei que você não gosta. MÃE! _Minha mãe desviava o olhar de mim enquanto falava e aumentava meu timbre a cada palavra dita, sendo quase que impossível não notar o desespero e a súplica em minha voz nesse apelo. _Pai, por favor, o senhor me conhece, sabe que eu nunca machucaria uma mosca. Pai!

            Eles evitavam meu julgamento "silencioso", se virando sem nem ao menos olhar para trás.

            Eles não aguentavam o que haviam feito, mas fizeram mesmo assim e, por isso, os detestei.

            Se for fazer algo, pelo menos saiba arcar com as consequências de seus atos, que conseguirá encarar os efeitos colaterais, mas eles eram incapazes de sustentar meu olhar. Covardes!

            Ou aceite, ou lute contra, fazendo o que for necessário e, se sei de algo, é que iria lutar contra de todos os jeitos possíveis.

            Foda-se, também! Iria sair dali dando meu próprio jeito, não importa como. Aquele lugar era para loucos, e eu só seria uma se não tentasse me livrar.

            Eles tiraram minhas roupas, meus acessórios e meu par de sapatilhas, mas o que tive mais relutância em me desprender fora de um prendedor de cabelos preto e fino que, se não estivesse no meu cabelo, estava no meu pulso, como uma pulseira. Cômico, percebo agora. Separam-me de tudo que tinha e a maior pirraça que dei foi por conta de um amarrador de cabelo. Mas fora em vão, já que no final, ia para meu quarto sem o amarrador, sem minhas roupas, família e dignidade.

            Eu estava andando descalça naquele chão frio e liso, sendo levada para minha nova realidade (a qual não me agradava nem um pouco). Tinha me obrigado a permanecer com os olhos secos, mas eles continuavam ardendo ininterruptamente, contudo isso já fugia do meu controle, por tanto, era algo que eu não conseguia controlar.

            Se qualquer pessoa me visse naquele momento, daquele jeito, tenho certeza de que seu primeiro pensamento ser "olhe só, ela está igual uma boneca de pano!" e eu concordo com isso, só estava me deixando ser levada pelos médicos _para ser sincera, tentei a todo o custo me deixar mais pesada na intenção de dificultar o trabalho dos homens. Minha luta ainda não ia terminar tão cedo, mas me sentia tão exausta, com a cabeça pesada, olhos cansados e pernas parecendo chumbo, suspeitei que, ainda que mínimo, o tranquilizante ainda estaria fazendo efeito. Perecia que estava em uma terrível ressaca, similar a que havia sentido no fim de semana passada, após uma saída com Grace e meus amigos da faculdade a um bar com uma reputação não tão boa.

            Nem sei ao certo o que me aconteceu, pois era apenas para minha piscada demorar um pouco mais, entretanto, temo que tenha caído no sono enquanto ainda estava sendo carregada.

            Sempre relaciono essa memória a outra, de quando era pequena, dormindo no sofá da sala e acordando misteriosamente em minha cama. Quando fui crescendo, comecei a acordar no mesmo lugar em que dormia, assim fui descobrir que era minha mãe que me levava ao meu quarto, segura e enrolada em cobertores. Dessa vez acordei em outro lugar também, mas aquela lembrança logo tornou-se amarga, já que meus olhos despertaram e eu não estava em um local seguro, não me encontrava aconchegada em cobertas e com o fato de que minha mãe havia me colocado lá martelando minha mente sem cessar.

            Havia pernoitado naquele lugar, algo que iria me perturbar por muito tempo. Não sabia o que aquele dia poderia me ocasionar, por esse motivo, estava desprovida de planos, estratagemas, apenas esperando o que me aconteceria. Agradeço a qualquer ser divino por não ter tido que esperar tanto para que algo me acontecesse, pois logo fui levada (contra a minha vontade apenas gostaria de frisar isso) a uma sala com uma mesa em seu centro, duas cadeiras, uma de frente para a outra e espelhos em paredes paralelas, cada um atrás de um dos assentos.

            Sentei-me na mais próxima de mim, olhando ao meu redor e notificando que estava sozinha no primeiro instante. Meu primeiro chute fora de que quem iria entrar por aquela porta seria o homem que seduzira meus pais a me deixar aqui, o qual não me recordava o nome, mas percebera meu equívoco ao ver um homem de aparência jovial com uma caneca que trajava o símbolo das forças armadas. Era um homem levemente bronzeado de cabelos castanhos e olhos azuis e com um porte atlético. O tipo de homem que vemos na televisão em aventuras radicais, surpreendendo-me ao vê-lo de jaleco.

            Não esquecendo meu objetivo principal, pensei em como poderia usá-lo a meu favor. O que ele poderia não saber é que eu também era uma estudante de medicina caminhando em direção a psiquiatria. Nossa diferença era que ele possuía um diploma.

            Um flerte talvez funcionasse, já que o ser humano é burro o suficiente para confundir sentimentos com trabalho, sem contar a incrível necessidade por sexo que as pessoas possuem. Já havia reparado em suas mãos sem qualquer tipo de anel e ele não teria mais que trinta anos, já eu faria 21 em poucas semanas e ele nem de longe poderia ser considerado descartável, mas seria eu capaz de me submeter a isso? Até que ponto iria meu desespero?

            Refleti essas questões rapidamente até cair a ficha de que deveria esquecer o orgulho que fingia ainda ter.

            Dignidade era um luxo do qual eu deveria abrir mão se quisesse reaver minha antiga liberdade.

            Tenho que ser sincera, também adoraria testar um desafio bom como esse.

            Ele olhava para mim com os olhos atentos, me fazendo perceber que era estudada como um animal engaiolado, algo que poderia muito bem usar a meu favor

            _Então, Emilly, eu me chamo Lúcio e eu não quero que você se sinta desconfortável com isso. Eu sei como pode ser assustador você achar que perdeu tudo _eu não acho, querido, eu realmente perdi tudo, mas me segurei porque a impressão que eu queria passar era de uma mulher sexy, não de uma menina revoltada e desesperada _, mas quero te mostrar que estou do seu lado e que eu vou tentar entender a sua parte.

            À primeira vista, ele me parecia ser um homem razoável e cálido, até lembrar que fazer com que o paciente se sentisse acolhido é um dos primeiros passos para recolher seu histórico pelas suas palavras. “Não se deixe enganar, Emy”.

            A verdade é que eu sempre me senti mais confortável quando os outros me chamavam pelo apelido, mas eu sei que, por mais insignificante que isso seja, poderia contribuir para um perfil perturbado, por isso não pedi para que ele me chamasse assim, algo que normalmente eu faria.

            _Não se preocupe, não estou nem um pouco nervosa. _Disse com uma voz um pouco sussurrada, ajeitando-me na cadeira de um jeito que a manga da camisola de hospital caísse pelo ombro esquerdo, mostrando um pouco mais de pele e permitir a insinuação.

            Sua inquietação mostrava que, o que quer que fosse, estava fazendo efeito.

            _E esse café, é só para os doutores? _Essa pergunta poderia se encaixar com uma jogada de charme, mas a verdade é que eu realmente queria colocar algo em meu estômago, para me ajudar a pensar melhor. Não queria café, nunca fui muito fã, mas mirava em um bom chocolate quente.

            _Claro que isso pode ser providenciado. Do que você gostaria?

            Dei glória para algo superior por ele ter entendido que aquilo, na verdade, era sério.

            _Chocolate quente, se puder.

            Quase sem perceber, ele deixou e voltou à sala com um copo daquelas máquinas de expresso que sempre se encontra espalhadas pelos lugares. Agradeci em um tom baixo e me perguntei depois se ele realmente havia escutado, mas preferi deixar do jeito que estava. Algo que me deixou um tanto sentida foi perceber que nem seu próprio café ele havia comprado, já que estava em sua própria caneca (pelo menos foi o que presumi, já que era o caminho lógico mais simples), mas para me deixar agradada, se deu a esse trabalho e eu apenas pretendia usá-lo para minhas próprias ambições, entretanto, logo que comecei a sentir aquele pingo de humanidade, algo que estava sentindo falta, me amolecendo, lembrei-me da frase “os fins justificam os meios”. Quem ainda tem sentimentos sempre acaba andando na navalha. Isso justificava o porquê de estar no hospício e o porquê ele iria me servir apenas como passagem para outro lugar bem longe do qual me encontrava.

            Ele o depositou em minha mão e vi novamente aquilo, o maldito rastro colorido que me trouxe até aqui, em primeiro lugar, em uma linda cor azul esverdeada, um pouco mais claro do que turmalina no caminho que sua mão percorreu com o café até a minha. Não podia falar sobre isso, era obvio, mas não conseguia parar de olhar até perceber que estava aérea tinha muito tempo, balancei a cabeça e fiz aquilo, ilusão, visão, alucinação, o que quer que for, desaparecer, contudo, era tarde demais. Ele já havia notado.

            _Você está bem? _Sentia a curiosidade pulando em sua voz, a sensação de já ter conseguido algo. Lamentei por ele, não teria o que queria tão facilmente.

            _Estou sim, agradeço pela preocupação. Só sou um pouco sensível a luzes fortes, como você deve imaginar. Me dá um pouco de dor cabeça.

            Minhas cartas foram bem jogadas, pelo menos presumi, já que sensibilidade para pessoas com heterocromia não é nenhuma novidade e ele, como médico, deveria saber disso, o que não impediu que ele cerrasse os olhos e me olhasse como sua competidora em um jogo de war, querendo saber minhas estratégias para conseguir seus países.

            _Primeiramente, gostaria de saber por que você acha que está aqui?

            Levantei uma sobrancelha e dei um sorriso sem mostrar os dentes de uma forma que julgava sedutor.

            _O problema não se encontra em meus “achismos”. Eu sei porque estou aqui. Meus pais não têm muito aquele lance da empatia. Você tem?

            A frase, assim que dita, percebi que ficara um pouco estranha, mas não queria que escapasse uma oportunidade de transformar minhas palavras em algo instigante.

            Ele pigarreou e nem se importou em esconder como não queria responder aquilo, sendo claramente algo que o afetou.

            _Ok, e... _outra prova de que aquela conversa já estava deixando-o desconcertado _como você conceituaria suas reações em experiências cotidianas ou seus estados de humor?

            Conseguia sentir que havia algo por trás daquela frase, algo que talvez não me agradasse, mas não iria parar de brincar com a situação.

            _As consideraria normais, regulares. Já meus estados de humor são bem... limitados. Eu me considero uma pessoa mais neutra, não muito emocional.

            Dobrei minhas pernas sob a mesa, algo que poderia ser imperceptível, mas fiz questão que fosse notável e coloquei minha mão apoiando o queixo, uma maneira de projetar-me mais para frente, com semblante ao mesmo tempo neutro e malicioso.

            _Tudo bem, agora me espere aqui na sala por um tempo, por favor. _Antes de poder relutar com isso, ele levantou novamente, passou pela porta e depois de um tempo mais demorado do que suas outras “pausas”, ele voltou com uma televisão levada por um carrinho, o deixou ao lado da mesa e a ligou.

            No começo, era estática, até a imagem começar a ficar mais nítida gradualmente e consegui perceber do que se tratava. Era uma gravação minha entrando no manicômio registrada por uma das câmeras de segurança do lugar.

            Me ver daquele jeito quase fez meus olhos encherem de água, mas deixei as lágrimas para o passado, já que as mesmas também me atrapalhariam de enxergar a cena direito. Não quero minha visão debilitada por conta de choro.

            Eu estava lá, meu rosto vermelho, gritando sem parar e com a raiva quase saindo de mim. Por um segundo não me reconheci, não sabia que poderia ser daquele jeito e me impressionei. No momento do calor, nem percebi o quanto lutava, mas assistindo àquele vídeo fiquei em parte até orgulhosa dos meus esforços. Realmente parecia que eu era mentalmente instável, mas não me arrependi por um segundo sequer (talvez por um segundo eu tenha me arrependido, sim, porém isso eu relevo), por me provar que eu literalmente lutava pelo que acreditava.

            Quando a exibição acabou, voltei-me para Lúcio com uma feição que por outros poderia ser considerada metida ou até cínica, mas a questão era que o propósito do vídeo não provava nada e eu sabia disso.

            _É isso que você chama de “experiências cotidianas”? Poxa, isso é realmente uma pena, mas já não é a mesma realidade que eu vivo _ou vivia _, então eu não sei qual é a sua intenção com isso, afinal, como você aceitaria se, de repente, sua família, o grupo de pessoas que sempre prometeu te apoiar, ser seu suporte, tentar entender você independente da situação te colocasse em um manicômio do nada, sem nunca terem nem comentado com você uma sequer possibilidade por um motivo que você não acha justificável e você se encontra aqui, cego de sabedoria, sem saber o que pode ou o que vai acontecer com você, as vertentes disso ou qualquer coisa do tipo. Você aceitaria numa boa? _Sempre me orgulhei de ser bem racional, mas essa foi uma das ocasiões que eu não calculei direito, pois as palavras que eu estava sentindo foram saindo e eu não pude impedir (e nem queria), só depois me repreendi em meus pensamentos. Era para ser uma mulher desejável, não uma adolescente cheia de problemas com os pais, entretanto, enquanto ele digeria meu discurso, tive a ideia de deixá-lo com a impressão de uma pobre menina injustiçada que merecia justiça e cuidados (tentei sensualizar assim também, mas eu sempre soube que nessas questões eu sou horrível). _Pelo menos foi isso que eu senti, desculpa jogar tudo isso pra cima de você, é só que...

            _Tudo bem, eu entendo, não precisa se desculpar. _Eu estava com uma mão sobre a mesa e a outra eu tinha levado ao rosto, para simbolizar um quase choro, quando ele pegou a que estava mais perto de si e segurou, fazendo carinho na mesma. Naquele momento, senti-me tão realizada por estar sendo correspondia (não sei direito se isso se encaixava bem, mas foi o que achei que serviria), por saber que meu plano estava fluindo bem apesar de todos os empecilhos. _Olha, não quero que se sinta incomodada, mas tenho que fazer uma pergunta.

            Para com que todos entendam, a minha reação no momento foi: PUTA QUE PARIU, agora é a hora, Emilly, você consegue, está na reta final. Meu Deus.

            Concordei com a cabeça e me inclinei um pouco para frente para que a camisola revelasse um pouco do meu decote e tive sucesso ao reparar que ele havia olhado, me fazendo sentir vitoriosa e um pouco invadia, porque não gostava daquilo de verdade, mas na minha cabeça aquilo era necessário.  Fui engolindo em seco e tentando disfarçar os sinais que me entregavam até eu ver ele abrindo a boca, segurando todo o meu ar.

            _Você sempre flertou com todos os seus psiquiatras/psicólogos ou só eu mesmo?

            Atônita, era como eu me encontrava. Como ele notou isso? _se bem que a minha intenção realmente era fazê-lo perceber ao que estava disposta, mas não daquele modo. Talvez eu não fosse uma atriz tão boa quanto eu achava.

            Em meio ao caos em que me sentia, ri na tentativa de levar a conversa para outro caminho.

            _O quê? De onde você tirou isso? _Tentava rir moderadamente e não deixar mais claro do que já estava que era de nervoso.

            _Emilly, gostaria de esclarecer que é muito evidente que suas segundas intenções têm segundas intenções. Você mesma se sente incomodada com o que está fazendo. Por que não paramos de joguinhos e vamos para a realidade?

            Depois de ser cortada de um jeito tão brusco e todas as minhas cartas estarem expostas na mesa, não pude parar o fluxo do meu pensamento e me obriguei a entrar em outro plano.

—Olha só, posso oferecer um acordo mutuamente benéfico? _Disse ambiciosa, louca para provar de um jeito ou de outro que aquele lugar não era pra mim.

—Essa sugestão por acaso tem algo relacionado a flertes? _Questionou receoso, talvez. Dei uma breve risada e complementei:

—Não! _Mas, ao encará-lo, dei continuidade a frase, já que não poderia assassinar nenhuma das opções que estavam disponíveis, _A não ser que você seja sucessível...

Antes de qualquer ação, preferi tornar isso um pouco mais subjetivo, de forma que ele entenderia como quisesse, podendo ser uma brincadeira ou sério, rindo de maneira descontraída, porém não forçada e nem prolongada, tendo êxito em tirar do mesmo um sorriso sincero.

—De todo jeito, minha proposta seria que eu fosse completamente honesta em minhas respostas e em minhas palavras, sem tentar manipular sua “entrevista”, já que sei como isso é feito e, em troca, você responde minhas perguntas sem mentiras, sem receio das consequências, diretas ou indiretas e me mostre as avaliações feitas sobre mim. Aceita?

No fim, apertei fortemente minhas mãos para que não tremessem e que não denunciassem o nervosismo aparente. Nunca havia feito aquilo, por isso um sentimento de fracasso não saía da minha mente.

—Você sempre fala desse jeito? _Perguntou, deixando minhas emoções à flor da pele, já que esperava uma resposta bem diferente.

—Geralmente, não converso com ninguém em condições como essa, _dei uma risada sarcástica para enfatizar minha frase _mas, em situações normais, meu linguajar é bem casual, porém agora não posso me dar esse luxo, pois eu quero que você entenda o que estou ofertando, sem deixar brechas para confusões, segundas intenções ou qualquer coisa do tipo. Quero que saiba onde nós dois estaríamos nos metendo.

Terminei com o coração acelerado, falando em um só fôlego, mesmo contradizendo meu plano inicial de deixar tudo nas entrelinhas. Não estava conseguindo me aguentar de ansiedade (sempre fui muito perfeccionista, por isso sou uma pessoa extremamente ansiosa, mas tinha que me controlar para que ele não enxergasse isso como algo muito problemático e me fizesse tomar remédios para isso como aconteceu alguns anos atrás), sentindo meus ouvidos latejando, esperando apenas escutar um “aceito suas condições”.

Ele colocou a mão direita em seu queixo e me encarou, pensativo.

—Você tem noção de que foram duas coisas pedidas para mim, né?! _Naquela hora, já estava quase pulando em seu pescoço querendo minha resposta, por esse motivo, quase trinquei meu maxilar com a força com a qual eu o forcei, apenas balançando a cabeça para respondê-lo.

Após um breve suspiro vindo da parte dele, lançou palavras preguiçosas e cansadas.

—Ok, acho que é justo. Por onde você quer começar?

Ao terminar a frase, me encontrava boquiaberta, não conseguindo acreditar que havia obtido êxito em meu planejamento.

Meu alívio era tamanho que, talvez se levantasse a mão, pudesse senti-lo. Não queria que ele notasse meu desespero, mas agora, que havia soltado todo o ar que estava segurando desde o começo desse jogo de interesses, era um pedido um tanto impossível.

—Primeiro, o que os meus pais disseram sobre minha... condição? _Queria ser o mais objetiva possível (também saber o tamanho lâmina que meus pais enfiaram em minhas costas), mas ainda não tinha nada em mente, então seria objetiva quanto a que? Perguntava-me até me ocorrer que o caminho mais acessível seria prová-lo de que minha saúde mental estava em perfeitas condições com uma análise um tanto diferente.

Então ele me contou uma versão da realidade bem deformada, típico dos meus pais, exagerarem algo que não entendem. Eles disseram que eu tinha visões surreais desde pequena e que sempre fui muito espalhafatosa quanto a isso, por esse motivo sofria bullying _até parece! Naquela época, ainda acreditava que era ilusão de ótica, por isso me continha e, pelo visto, meus pais esqueceram de que uma criança gorda e com heterocromia não precisava de mais nada para ser um grande alvo, ou melhor, ninguém precisa realmente de um motivo explícito para receber as piadinhas infantis sem nexo que escutamos ao longo da vida.

Ele também me contou que minha mãe entregou-me falando que mais ou menos dos doze até quinze anos havia me tornado extremamente reclusa, tendo poucos amigos, buscando desculpas para não sair de casa e sendo vista poucas vezes fora do quarto. A verdade é que não havia muitas extrapolações, já que muitos fatos deste relato realmente aconteceram, mas isso não o deixava livre de correções. Eu tinha amigos, conversava com todos da sala, mais precisamente e, se puder, ousaria dizer que todos gostavam da minha companhia, já que nunca deixara de ser polida e educada.

O resto, pelo menos nesse instante, não precisava de mais explicações, já que o motivo do meu afastamento vai ser exposto em pouco tempo.

Por último, eles alegaram que, nos últimos tempos, tinha ficado mais eufórica com as visões, mais agressiva, gritando mais e me alterando. Aquilo, em tese, era até realidade, pois eu de fato ficava um tanto quanto esbaforida e nervosa sempre que via algum rastro colorido. Porém sempre era isso, nervosismo e empolgação, nunca sendo nociva a ninguém (sem contar que eles venderam minhas alucinações como algo terrível e indescritível, como se eu visse fantasmas ou monstros e a não apenas partes de arco-íris).

Todas as irregularidades presentes no que eu ouvia eu consertava em voz alta, para que o psiquiatra pegasse a minha verdade, ou melhor, a única verdade.

—Agora sim podemos me diagnosticar, mas eu preciso de um papel e uma caneta. Isso pode ser providenciado?

Ele parecia surpreso e divertido com minha desenvoltura sob pressão (talvez ele não tenha notado como meus nervos estavam em minutos atrás), concordando com meu pedido e em sequência, saindo brevemente e retornando quase no mesmo instante com meus requisitos.

—O que sugere que façamos? _Terminou entregando os objetos para mim, embora eu tivesse que me segurar para não lhe dar uma resposta maliciosa.

Senti-me emocionada por (quase) estar no controle da situação. Pigarreei, tentando demonstrar tranquilidade e talvez impor superioridade mesmo sabendo que meu verdadeiro lugar não poderia ser mais inferior.

 _Pelo que meus pais disseram, poderia suspeitar de psicose, mas... _enquanto dizia, escrevia rapidamente no papel o que vem ocasionar tal doença _nunca usei drogas, meu cérebro tem uma formação normal em sua forma física e quimicamente, pelo menos foi o que consegui ver em todos os exames cerebrais feitos ao longo da minha vida. A probabilidade de ser psicose secundária é pequena, já que atualmente não tenho nenhuma doença neurológica proativa, não pode ser relativa breve, já que tenho isso desde pequena. Esquizofrenia se encaixa bem com tudo isso, mas podemos avaliar os tipos de psicose antes de ver se sou realmente esquizofrênica. Bem, voltando, transtorno bipolar não deve ser, não tenho depressão e tais mudanças não fizeram parte da reclamação dos meus pais, já transtorno esquizoafetivo, bem, cabe a você definir isso, mas acho que não seria considerada excluída da sociedade. _Soltei todas as palavras sem nenhuma pausa, desesperada para que ele entendesse meu lado (temo que nessa situação toda estava muito desesperada, como já deixei bem claro). Ainda pensativo, coçou sua barba por fazer e abriu a boca para me responder.

—Concordo com você em... praticamente tudo e, quanto ao transtorno esquizoafetivo, creio que não seja o caso, já que, a julgar pelo pouco tempo que estamos juntos, _nesse momento também tive que me segurar para não dizer algo do tipo “Como já estamos juntos se você ainda nem me pagou um jantar até agora?”, afinal, era uma hora séria, o tempo de flerte e “descontração” já havia passado _posso avaliar que você não é muito aberta e também pode ser bem manipuladora, mas acho que estaria arriscando muito alto se dissesse que tem esse transtorno. _Ao escutar isso, mentalmente já preparava a segunda parte da minha avaliação.

—Então o senhor concorda comigo que tudo se encaixa com esquizofrenia, certo? _Ele assentiu com a cabeça e emitiu um som baixo interpretado como um "prossiga". Sem perder a linha de raciocínio, fiz o que me foi pedido. Peguei o papel e a caneta e escrevi tudo que uma pessoa esquizofrênica sofre de cor (tenho uma boa memória e estava esperando até o dia em que isso seria útil para mim com exceção dos testes que fiz ao longo da vida). _Então acho melhor avaliarmos. "Escutar ou ver algo que não é real", isso condiz com a realidade, _era realmente uma piada sem graça, o que fez com que a única pessoa a rir fosse eu mesma, _ então um ponto para uma Emily problemática.

 "’Sentimento constante de estar sendo vigiada ou perseguida’, bem, eu sou uma mulher vivendo nos dias de hoje, por isso é praticamente impossível passar pela rua sem sentir minha bun... partes do meu corpo quase pegando fogo pela intensidade dos olhares indesejáveis, sem contar que o mais preocupante ultimamente é uma pessoa te seguindo para te assaltar ou algo pior, pelo menos são isso que se passa em uma mente feminina, então, pra mim, é um ponto para uma Emy normal. ‘Maneira peculiar ou sem sentido de escrever ou falar’, porra!, eu faço medicina, agora se você quer me foder me beija.” Dei uma risada fraca e talvez um pouco forçada apenas para descontrair, mostrar-lhe que sou nada mais que uma qualquer que não merece atenção especial, algo que sabia desde sempre que não é bom. “Olhe a minha letra e veja que não é atoa que os médicos têm uma reputação que os precedem, mas a minha escrita é só feia, não indecifrável ou peculiar. Você concorda comigo que isso é um ponto para minha versão normal?” Ele, nem sequer monossilábico, apenas assentiu maneando a cabeça. "’Posição estranha do corpo’" nem comecei a minha dissertação sobre o porquê eu não me encaixava no tópico e já comecei a rir. Sabia que era errado, mas me permiti deixar de ser formal o tempo todo (pelo menos no tempo em que não tentava seduzir o médico que me analisava), “então, o que você acha sobre isso? Acha que meu corpo está em uma posição estranha?”

Perguntei quase em tom de ironia, pensando com todas as células do meu corpo que sua resposta seria óbvia, mas para meu desespero, ele demorou a responder.

—Sua postura não tem nada de diferente, pelo menos é o que eu vejo. _Ele falava de forma pausada, como se a qualquer momento pudesse mudar de opinião, o que me fez ficar com vontade de xingá-lo naquele momento, afinal, o assunto era minha sanidade, não seu programa de TV favorito.

—"Sentir-se indiferente diante importantes situações". Olha, é só darmos mais uma olhada naquele vídeo bem legal que temos bem aqui e podemos ver que isso é mais um ponto provando que eu não pertenço a esse lugar. "Regressão no desempenho dos estudos ou do trabalho", então, sem querer me gabar nem nada, mas eu entrei na faculdade de medicina em Yale ainda com quatorze anos, durante meu segundo ano do ensino médio e, agora, com vinte e dois dias para fazer vinte anos, já formada e com diploma, estou fazendo especialização para psiquiatria. Acho que é mais um ponto para uma mente lúcida _O que eu disse no começo de tudo era que não queria me vangloriar por tudo isso, mas acontece que, mesmo inconscientemente, eu o faço por provocar uma reação de surpresa nas pessoas, realçando meus feitos e não algo fútil, o que de certa forma é bom, afinal, eles vêem um lado diferente seu, não apenas outro lado para apontar e criticar (sem contar que todos gostam de inflar um pouquinho o ego, mesmo que quase ninguém admita). _Mudança nos hábitos higiênic... _nem de terminar a frase fui capaz, pois já estava rindo, afinal, minha cabeça já estava esgotada e eu não queria continuar atuando a psiquiatra séria sendo que de todo o jeito eu estava no outro lado da mesa, não o que eu estava habituada nas minhas experiências de campo. _Ainda preciso comentar? _Ele ficou apenas olhando para mim, como uma estátua, o que já tomava como um pedido de explicação. Revirei os olhos e, mesmo medindo todas as palavras, fui grossa e podia passar por inconsequente. _Eu faço xixi direito, me limpo direito e tomo banho direitinho. Minha palavra basta ou você ainda quer uma demonstração?! _Não pude deixar de perceber o quanto pareceu outro flerte, mas queria deixar claro para ele que aquilo não era brincadeira (mesmo o bom humor que eu estava levando a conversa até agora não era sem objetivo).

— Ponto para Emy normal. O próximo tópico seria "mudança de personalidade"... _bufei de cansaço e curiosidade com o que falaria a seguir, porque eu realmente não sabia como pontuar isso, muito provavelmente pelo esgotamento rápido das minhas forças e fadiga mental que sentia (estava com quase certeza absoluta de que tinham me injetado alguma substância enquanto dormia) _cara... eu sempre fui assim!

—Era manipuladora desde a infância?

—O senhor me deixou seguir um monólogo vital, do qual deveria ter feito parte pelo menos minimamente, mas não o fez, então, por favor, não me interrompa agora. _Me senti até vitoriosa quando notei a surpresa misturada de culpa no rosto do jovem médico.

O encarava ainda com um olhar duro, até que sem mais nem menos passei logo para outro tópico.

 _"Afastamento visível de atividades sociais".

O encarei e soube, naquele mesmo instante, que teria que contar sobre a fase na minha vida que mais contribuía com o relato dos meus pais. Consegui ver que, aparentemente, o tempo que eu estava esperando para conseguir forças para continuar foi considerado longo, já que vi sua boca se abrindo, presumi que já era para me mandar começar a falar, então comecei antes

 _Sim, dos meus onze até meus quinze anos eu preferia ficar no meu quarto, não gostava de sair e me expressava em poucas palavras, mas em momento algum me tornei alguém incomunicável. Sabe por que eu fazia isso? Porque eu comecei a desconfiar que minhas visões não se tratavam apenas de ilusões de ótica, então comecei a pesquisar. Pesquisei bem fundo, sendo o verdadeiro motivo de ter me dado tão bem na área da medicina. Fui atrás de qualquer coisa que poderia explicar o que se passava comigo, até que minha última opção foi que eu poderia ter algo psíquico que fizesse isso e, por coincidência, me interessei muito por tudo isso e continuei. Quando minhas coleguinhas foram fazendo 15/16 anos, comecei a se convidada para suas festinhas e me caiu a ficha: estava perdendo toda a minha juventude fazendo coisas que eu ainda posso fazer, só que menos. Na verdade, foi algo engraçado, porque como saía poucas vezes do quarto, muitas vezes eu esquecia de comer e ficava estudando, o que me fez emagrecer bastante, além da puberdade que eu passei escondida e, depois disso, comecei a ser reconhecida como gente de verdade, o que me fez ficar puta e ao mesmo tempo intrigada, afinal, como um corpo pode ser tão importante para a aceitação social, né?! Depois da época das festas, comecei a gostar de ter atenção, de ter uma vida social, então voltei a ser “normal”. Essa realmente foi uma fase da minha vida, eu não tenho vergonha dela, já que aprendi muito nesse tempo e é por ele que eu sou a pessoa que eu sou hoje, tenho orgulho disso. _Respirei fundo, observei o teto e terminei. _Essa resposta eu dou para você, se é um ponto para uma Emy normal ou não.

            Ele olhou para baixo, mas seu sorriso era aparente, reparava pelos seus olhos. Isso era o que eu achava mais bonito naquele homem, ele sorria pelo olhar.

            _Bem, acho que terminamos por aqui.

 

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