Aline por Aline escrita por Mary


Capítulo 3
Capítulo 3 - Dureza na cidade grande




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Eu não sabia como contaria tudo ao Tadeu, mas tive que fazer e tempo era tudo o que eu não tinha a meu favor. Ele ficou muito triste, sentido, perguntou se eu não podia ficar e eu sabia que não poderia. Isso doía mais do que tudo. Ir aos poucos abrindo mão da minha (antiga) vida. Eu estava dando adeus à minha infância.

Eu ia embarcar num ônibus para Curitiba na manhã seguinte. Aquela era a nossa última tarde juntos. Eu queria fazer cada minuto durar anos, mas não tinha jeito. Eu não queria tocar naquele assunto, não curtia de modo algum aquele clima de despedidas, nunca fui boa nisso. Estava tocando Suddenly – Soraya em algum lugar quando ele segurou na minha mão e me beijou antes de me dar tchau.

― Você volta para me ver nas férias?

— Eu... eu acho que sim!

― Eu deixei o meu endereço para você me escrever quando chegar.

— E você ainda vai gostar de mim até as férias?

― Eu gostei de você desde o primeiro dia que a gente conversou.

Quando nós dois tínhamos quatro anos e ele bateu com a pá do baldinho dele no meu braço? Ele não se lembra de como doeu e do escândalo que eu fiz retribuindo o golpe?

Ele chorou mais que eu que cruzei os braços e mostrei a língua. Nossos pais trataram de nos obrigar a fazer às pazes e apesar de eu amolá-lo com a história do chorão, a partir dali nunca mais nos desgrudamos.

Ele não era muito chegado a brincar de casinha e de boneca, mas me deixava brincar com os seus carrinhos, nós dois também tomávamos banho de mangueira, soltávamos bolhas, apostávamos corridas nos nossos carrinhos de rolimã, voltávamos sempre com os joelhos e os cotovelos ralados. Ele fazia aniversário em janeiro e eu em fevereiro. Nossa diferença era de apenas quinze dias.

― Verdade? — Eu sentia o meu rosto esquentar.

— Você é a menina mais bonita para mim. No mundo todo.

― Mais que a Vivi das Chiquititas?

— Mais que a Thalia. — Garantiu Tadeu, seguro do que dizia e sei que ele se esforçou um montão para dizer aquilo. Tadeu era bem tímido.

― Tá brincando... mais que a Thalia?

― Sim, Lilica. — Respondeu ele todo envergonhado, olhando para baixo, riscando a sandália nas britas da entrada da casa de vovô.

― Eu também não quero te esquecer.

— Se você ficar muito triste em Curitiba me manda uma carta que eu vou correndo te buscar.

Eu estava com tanto medo quanto ele, mas assim como a minha mãe, não iria chorar, mesmo quando meus olhos arderam e a música tocava à medida que ele ia ficando pequenininho pela rua, virando a esquina e meus próximos passos, esses tão incertos, tinham que ser dados.

Terminei de ajudar minha mãe a empacotar nossos poucos pertences e na manhã seguinte nós embarcamos cedinho para Curitiba, uma cidade bonita, diga-se de passagem, a qual eu viajei algumas vezes para passar alguns dias com os meus padrinhos. O Tio Alípio é irmão mais velho da minha mãe que tem outra irmã que mora no Pará e um irmão que nesse momento está residindo em Porto Velho.

A princípio, com o dinheiro que teria, mamãe alugou uma casa em um bairro afastado do centro e saiu à luta porque sempre disse ela que vontade de trabalhar nunca lhe faltou e sendo assim, não exigiria nada, aceitaria o que viesse, já que de repente meus avós quiseram o terreno que era do meu pai para vender. Fiquei muito magoada com o meu vô, não esperava que ele fosse deixar minha mãe desamparada, logo ela que sempre foi tão boa com ele, meu pai foi o seu primeiro e único amor. Pensei que eles se lembrariam de que Nice tinha dois filhos ainda muito dependentes dela... quer dizer, ainda somos...

Consegui uma vaga em uma escola um pouco antes das férias de julho, mas não consegui fazer nenhuma amizade, as pessoas me tratavam muito mal, caçoavam das minhas roupas de frio, do meu cabelo, me xingavam, me batiam, simplesmente me odiavam sem qualquer explicação, mesmo que eu gentilmente tentasse me enturmar.

Eu nunca tive nenhuma queixa de professores, nunca briguei nem na época da creche e em menos de um mês levei várias surras, roubaram o dinheiro da passagem, fui denunciar e apanhei mais ainda, sem contar que mal minha mãe conseguiu um emprego e foi demitida sem nenhuma explicação, depois ficou fazendo um bico atrás do outro porque não queria incomodar o Tio Alípio que ajudava do jeito que dava, comprando comida ou pagando alguma conta.

Na primeira carta que escrevi para Tadeu, disse que estava tudo bem, juntei uns trocados e lhe mandei um cartão da cidade, dizendo que mal via a hora de que chegassem as férias de dezembro para nos vermos de novo...

Toda noite eu esperava todo mundo se deitar para chorar... Minha mãe ia dormir com fome para que meu irmão e eu tivéssemos pão para o desjejum... Eu queria ter o meu pai de volta mesmo não podendo... Queria a minha vida antiga de volta... E não mais teria... E na minha mente ecoavam as palavras doces da minha mãe dizendo que tudo que estava acontecendo era um teste de Deus para reforçar a minha fé... E assim eu vou vivendo, ciente de que por muito me amar, Deus me prepara para o mundo, para todas as provações da vida que jamais vai mimar alguém, só vai dar um jeito nos mimados porque tem muita gente nesse mundo que tem casa, comida, pai e mãe vivos, saúde plena, estudo e ainda assim acha algum motivo para reclamar, às vezes por bobeira...

Nessa hora fico chateada.

Tem gente que não come para não engordar, que desperdiça alimentos por frescura porque com certeza nunca enfrentou uma recessão tão grande que faz o ovo frito ser tão desejado quanto uma fatia de bolo com recheio de doce-de-leite, enquanto o meu pai não comia antes de morrer e sentia o aroma apetitoso do feijão temperado, minha mãe não comia porque não tinha para todo mundo ― se ela comesse, meu irmão e eu ficaríamos com fome.

Quando a situação naquela escola ficou muito ruim, mamãe por sugestão do meu padrinho encontrou outra escola que era bem mais perto de casa a qual eu poderia ir andando (daria 15 minutos de trajeto) ou de ônibus que demorava uns oito ou nove mais ou menos... E eu simpatizei com aquele terreno arborizado, com as meninas brincando de bambolê... Quase caí de costas quando encontrei o Vando Figueira dando aula...

O professor Vando é primo do pai do Tadeu e era um solteirão todo xucro, cheio de timidez, teve namorada, mas era que nem cabeça de camarão que todo mundo sabe que existe e ninguém nunca viu... O tal do Vando sem sobrenome que escolheu a Geografia dentre tantas outras áreas... Bem, pelo menos ele foi coerente e escolheu ensinar essa matéria que é tão difícil quanto à matemática... E isso ele faz bem...

Fiquei olhando para uma menina de marias-chiquinhas que fazia anotações no seu caderno... Sei que ela também ficou olhando para mim, pois recebi um bilhetinho e logo saquei que era dela... Respondi e ela correspondeu, aí continuamos trocando mensagens em folhas de caderno até soar o sinal, quando ela me convidou para juntarmos as carteiras. Era a aula de Artes e a professora bem dizendo não estava nem aí para a gente, então ficamos de prosa.

O nome dessa menina é Renata, mas Renata Muriel é só na chamada, pois todo mundo, até os professores, chamam-na de Tita. E ela tem jeito de Tita, sempre vai ter. E eu gostei dela de imediato porque admiro quem não tem medo de puxar conversa e ser quem é.

Ela é divertida, meiga, toda inteligente, aplicada. Voltei para Prudentópolis naquele feriado com acréscimo de um dia porque meu vô estava doente de saudades de mim. Matei a saudade do Tadeu, do Juquinha (meu único primo por parte de pai), dos meus amigos de brincadeiras e fui viajar contente porque quando voltasse teria a Tita para conversar, contar as coisas. Ela me ouviu sem reclamar, me achou muito legal.

Na volta do feriado, no ônibus eu fui reconhecida pelas outras amigas da Tita e elas me viram lendo uma revista, começando a conversa. Tadeu e eu não estávamos mais namorando, mas nosso sentimento era o mesmo. Para impressioná-las, já que estava tocando na rádio As long as you loved me dos Backstreet Boys, eu disse que o Tadeu falou ao vivo com um locutor (aquele que apresenta o programa romântico da noite, o Love Songs) e dedicou àquela música (a minha preferida) para todo mundo. A dupla de Marianas e a tímida Juliana foram da incredulidade à euforia e pelo menos eu tinha alguns pontos a meu favor, já que tinha fotos dele, do Juquinha, até inventei um triângulo amoroso para elas me adorarem e não me maltratarem como as meninas da outra escola fizeram...

Analisando pelo ângulo mais pleno da situação, a mentira me protegeu, mas o problema é que as meninas da outra turma queriam porque queriam ouvir todas as histórias do triângulo amoroso... Elas me davam lanches, doces, presentinhos, tudo... Os meninos estavam me olhando de um jeito diferente... Eles me tratavam bem, é verdade, eu sei que muitos se esforçavam para me dar um "oi" e eu retribuía os cumprimentando também...

Fico triste porque a Tita está se afastando de mim e eu não sabia o que tinha feito para magoá-la. Ela deve se sentir mal porque não tem (ou eu acho que não) histórias românticas para contar e a Mariana Franco está exagerando com esse negócio de virar adulta...

Eu não sou mocinha ainda. Sei de cor e salteado do processo todo, mas apesar de entender que não é um castigo, também não quero essa responsabilidade para mim, se é que me entendem...

A Mariana Franco ficou mocinha e saiu gritando para quem quisesse ouvir... As meninas do oitavo ano ficaram olhando com caras de espanto... Eu disse a ela que era mocinha só para não me encherem como fizeram com a Tita. Senti uma pontinha de inveja dela por não ter medo de falar a verdade...

A Tita fala as coisas na cara, já a Mari Franco fala as coisas na cara quando está com raiva, então se ela diz que minha pulseira é linda, quando ficar braba vai falar que achou a mesma pulseirinha um horror...

Com a Mariana Franco eu preciso ser aquela Aline rica, que tem um pai milionário, com dois meninos a disputando e tudo o mais. Esse personagem me fez ser a menina mais popular do quinto ano, até o povo da manhã me acha legal, mas eu peço perdão a Deus toda noite porque sei que serei castigada por estar mentindo... Logo eu que sempre ouvi da minha mãe que é feio mentir...          


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