Aline por Aline escrita por Mary


Capítulo 17
Capítulo 17 - Anjos sem asas




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Alguns anjos não exibem suas asas brancas e pomposas por aí, não podem dar pinta, mostrar quem realmente são e eis que estão escondidos nos cantinhos mais improváveis. Agem com palavras doces, às vezes ásperas, mas necessárias, até porque o verdadeiro amor nos obriga a ser duros com quem amamos quando somente a delicadeza não convence.

Alguns anjos não têm asas, mas podem usar óculos, muletas. A simplicidade é rica quando não associada com pobreza. Ser humilde não é a mesma coisa que ser modesta.

Tem anjos que estudam para salvar vidas, outros para fazer a justiça e tem aqueles que dedicam boa parte de seus anos a transmitirem o saber aos pequenos que um dia serão grandes.

Meu anjo é conhecido pelo seu apelido.

Tita desmaiou na classe e todo mundo, até a Cássia, ficou preocupado. Os meninos a carregaram no colo até a enfermaria (até agora eu estou arrepiada com essa atitude, pois quer dizer que bem lá no fundo os fanfarrões têm coração) e eu recebi permissão para ficar com ela. Foi por pouco que ela não bateu a cabeça e lhe aconteceu algo pior.

Naná deixou uma atividade em classe e atendeu ao meu chamado vindo conversar com a Tita, pois eu adotei, por recomendação dela, a estratégia de fingir que concordava com tudo. O diálogo foi muito esclarecedor, tanto é que as tias da merenda ficaram sabendo do que aconteceu e até liberaram um prato de macarrão com salsichas cortadinhas para que a minha amiga se alimentasse. Naná a ajudou na primeira garfada, pois as mãos tremiam muito.

Meire buscou a Tita na escola mais cedo, mas não estava com cara de quem ia bater. Isso me faz pensar que do seu jeito meio fechado e estranho, ela se preocupa com a filha e com certeza estava percebendo que havia algo de anormal.

Adolfo ficou morto de ciúmes porque o Erick foi um dos que ajudou a levar a Tita para fora da sala. Não debochou, não fez voz engraçada nem barulho de pum com o braço, nadinha. Nem ele, nem os seus amigos.

― Se você continuar aí cheio de orgulho é bem capaz que o Erick arraste as asinhas para cima da sua namoradinha.

— O Erick? Afim da Tita? Você está brincando, não tá?

Nos olhos chispando de fúria dava para ver o despeito contido. Adolfo e Erick sempre foram rivais, desde o pré-escolar. Adolfo estava maltratando e ignorando a Tita sem motivo algum e o Erick, por sua vez, estava preocupado com a minha melhor amiga, tanto que quando me encontrou sozinha quis saber como ela estava, dizendo que ficou, isso mesmo que você vai ler: preocupado. De verdade. E os seus olhos não deixavam indícios de que era legítimo.

— Continua aí ignorando a Tita para ver só no que é que dá.

Eu teria de utilizar a psicologia reversa com ele também.

― Dizer que o Erick é afim da Tita é a mesma coisa que dizer que a Cássia me odeia porque tem uma paixão por mim.

— Também não precisa exagerar, Adolfo. Só estou dando o recado: ou você se desculpa com a Tita ou já era.

― Eu me resolvo com ela — disse ele, petrificado de ciúmes.

Quando? Quando você vai largar mão de ser orgulhoso e pedir desculpas?

— Ela tem que pedir primeiro.

― Você deve desculpas. Quem engrossou o tom com ela foi você. Não foi você que a expulsou da sua carteira e disse que não queria mais falar com ela?

— Tá, falei... ― Ele admitiu sem entender que o tom utilizado magoou a Tita, que pedir um tempo para pensar e ser estúpido são coisas totalmente diferentes.

— Mesmo que tenha falado só da boca para fora, você falou e mesmo que não pense assim de verdade, não pode voltar atrás. Ela pensa que você não gosta mais dela...

― Agora você deu para ficar me enchendo, é?

— Só estou avisando que do mesmo jeito que a Tita gosta de você, pode deixar de gostar. Ninguém fica esperando ninguém para sempre. Passou uma semana, duas, três. Tudo bem, você disse que precisava de um tempo. A Tita passou mal, podia ter sido uma boa desculpa para você se aproximar, ditar a verdade, oras. Mas não. Nada abala esse seu coração de pedra. Uma coisa é esperar, outra é ser feita de boba.

― Aí o problema é dela.

— Pois é! Só depois não chore se o Erick realmente fizer tudo o que você não faz.

— O Erick é um idiota, por que a Tita ficaria com ele?

― E quem vai saber? Um garoto apaixonado é capaz de muitas coisas.

— Tita não faz o tipo do Erick.

― Ninguém conhece o Erick fora da escola. Aqui ele pode ser um fanfarrão que só perturba as aulas, mas do mesmo jeito que fora daqui você é extrovertido, quem não garante que o Erick não é romântico e sensível? Ele já disse que a Tita é bonita. Disse mais de uma vez, inclusive.

— Duvido.

― Pois disse sim, almôndega...

É... Isso é verdade, amigos... eu ouvi mesmo... Erick do Carmo tem uma quedinha pela Tita!

Ele e os garotos estavam comentando sobre as meninas mais gatinhas da classe e o Erick disse que a Tita era bem gata... os garotos partiram para cima dele para bagunçar o cabelo, tirar o maior sarro, cantarolando a marcha nupcial... Ele ficou com o rosto todo corado e eu não o vi assim nem quando o Fefê (Fernando Monteiro) trouxe uma revista em que a Tiazinha estava nua na capa. Esse dia da revista foi memorável, especialmente quando a Naná deu o flagra na molecada. Eles também deram mole para o azar, decidirem ler (tem algo para “ler” naquela revista proibida para menores de 18?) em plena aula de produção de textos...

Ao final da aula, meio sem jeito, a professora deu uma bronca no Fefê, mas devolveu a revista.

O Erick nunca falou formalmente, mas na aula passa boa parte do tempo (isso quando não está de fanfarrice) olhando para Tita. Ele veio na hora da saída me perguntar se estava tudo bem e eu respondi que sim, mas que era melhor que ela ficasse em casa repousando.

Depois que a Tita e o Adolfo formalizaram o tal namoro (uma amizade colorida com uma vela ao meio), o Erick passou a implicar o dobro com a minha amiguinha, vive tirando sarro, perguntando o que ela viu no presuntinho.

Ele faz tudo e mais um pouco para chamar a atenção da Tita. Até o grupinho da Cássia sabe disso.

Cássia tem três regras de ouro que estão em vigor no seu grupo.

Regra número 1: não namorar ninguém que estuda na mesma classe.

Regra número 2: não paquerar ficantes/namorados de amigas.

Regra número 3: não namorar, sob hipótese alguma, irmão de amiga.

Thayanne estava quebrando o mandamento número 1 dos relacionamentos, querer namorar um garoto da turma. Não que fosse uma prática proibida, mas quebrava a harmonia do quarteto, sem contar que segurar vela não é nada legal para as outras integrantes e não lhes tiro a razão.

A Thay não quer ver o Erick nem pintado de ouro depois que se declarou para ele com uma música do Daniel e levou um fora, além de ser zoada por um mês inteiro. Aquele lance da carta. Oh, que desencontro!

Thayanne escreveu uma carta “anônima” para o Erick e transcreveu os trechos de uma música famosa do cantor Daniel que ainda toca bastante nas rádios. Até aí, nada de anormal. Ela aproveitou uma aula vaga em que o Erick e os amigos pularam o muro para aprontar e colocou a cartinha debaixo da carteira dele, pois era certo que ele ia olhar, só que diz um velho e conhecido ditado que há sempre um olho que tudo vê. Nesse caso, um par de olhos de lince, só pode. Erick chamou Thayanne em particular e sei que a conversa não engrenou, pois ela entrou chorando na sala e as meninas saíram para acalmá-la.

A Rita também inventou um jeito de terminar o romance inventado, esperando para saber quem seria a próxima paixonite feroz a contagiar alguma amiga do grupo para embarcar na jogada.

Os amigos do Erick não perderam a oportunidade para achincalhar o fanfarrão e viviam batendo nessa tecla, atiçando quando a Thay entrava em classe, escrevendo corações com os nomes dos dois no quadro-negro, cantarolando a música do Daniel na fila para a cantina, nas aulas de Educação Física.

Tenho certeza de que Thayanne pensará duas vezes antes de enviar uma cartinha anônima para se declarar a algum garoto.

Agora com a proximidade do fim de ano, o único assunto é a aprovação, não interessa o que seja feito, então de certa maneira a Thay deixou de ser o alvo das brincadeirinhas e está ardendo de inveja porque hoje a Tita foi o grande assunto. Se até a Cássia mostrou preocupação com a tampinha é porque o negócio foi sério.

Não queria dizer uma coisa dessas, mas a Tita merece alguém melhor que um orgulhoso cabeça-dura. Adolfo está me irritando com essa frieza toda. Ele não é galã de novela para ficar se enrolando desse jeito e ela é tímida, não vai tomar a iniciativa e quem ofendeu que se desculpe.

Eu fiz o que pude, tentei abrir os olhos dele, mas mais do que isso não posso fazer. Falar que gosta é muito fácil, mostrar que gosta são outros 500.

Se o Erick fosse menos fanfarrão e tivesse um tiquinho de coragem, eu não faria oposição se a minha amiguinha deixasse a Thayanne morrendo de ciúmes, até porque ela não gosta da Tita por causa dele.

***

O aniversário da Tita foi à quarta-feira dos milagres.

Sim, pois não?

Tita voltou a se alimentar e até ganhou uns quilos, está mais corada, mais bonita, mais saudável. Está falando de escrever e eu fiquei tão feliz, pois minhas orações foram atendidas, minha amiga é a minha amiga de volta, aquela Tita que eu tanto gosto de ver: sonhadora, alegre, inteligente, dedicada.

Eu vou gostar de ser amiga de uma escritora.

Eu vou gostar muito de ter uma personagem inspirada em mim.

Minha mãe sempre me fala que a persistência é o degrau que faz toda a diferença quando se decide lutar por um sonho. Se levar em conta que até os Beatles ouviram um não, por que eu não poderia ouvir?

Faz parte.

Ouvi um não ontem, amanhã eu vou me lembrar desse episódio e concluir que o superei, que não deixei um obstáculo estragar os meus ideais.

Tem que haver um início e ele nem precisa ser grandioso, estrondoso. Ele só precisa fazer com que todo o resto aconteça. O fim precisa dele para respirar, para outro início gerar.

Eu bem que queria ter coragem de mostrar à Tita os poemas que escrevo, mas tenho medo de que alguém da turma leia e tire sarro, já que eles acham isso bobagem.

Ela é sensível e gosta de poesias, seria bacana.

Eu gosto do Adolfo, mas tem coisas que eu me sinto mais à vontade conversando com a Tita e vê-la se recuperando dessa crise existencial que quase a deixou acamada me deixa instantaneamente mais calma. Tirei aquele peso enorme que estava carregando nos meus ombros, sei que cumpri com o meu dever de amiga e não me vanglorio. Se deixasse Tita padecer ao sofrimento, sentir-me-ia mil vezes culpada.

Depois da pressão básica, Adolfo acordou para a vida e se aproximou da Tita, agora a tratando como se ela fosse quebrar, pois Erick não está fora da jogada totalmente. O medo de perder serviu para situar o orgulho e mostrar que quem manda de verdade é a coragem.

A festa da Tita foi à casa do Adolfo, na parte da tarde. Convidei alguns amigos da minha rua que a Tita já conhece porque quando vai pousar na minha casa, nós brincamos juntos. Adolfo e Miriam convidaram alguns primos e conhecidos do CM.

A tarde foi bem legal, pois brincamos de tudo. Adolfo, enciumado, pediu a Tita em namoro a oferecendo um anel desses que vem em chicletes. Na salada mista, ela respondeu a última opção depois de pedir para que eu a beliscasse quando fosse ele a sua frente. Acho que quase todo mundo perdeu o BVL ali, inclusive a senhorita Miriam que desencanou do Marinho e ficou com o Bernardo, um vizinho meu. Ela tentou amarelar na última hora, mas beijou com gosto e não se satisfez com um beijinho chocho de 30 segundos.

Na minha vez disse pera e ganhei um aperto de mão... do Yohann!

Que aperto de mãos!

Logo eu que estava que estava me esforçando para desgostar dele... Logo eu...

Tudo que consegui foi sorrir. E ele abriu também aquela boca cheia de dentes.

— E aí? Beleza?

― Beleza...

Logo eu que não sou muito dada a falar gírias.

— Você é a Aline?

― Sim, sou eu... você é o Yohann?

— Como você sabe o meu nome? ― Ele perguntou surpreso.

— Eu sou conhecida do Jean.

― Ah, o Jean... Ele ficou me olhando com atenção e nós atravessamos a rua, pois a Meire já havia chegado para buscar a Tita:

― Você conhece o Jean?

— Sim, tenho alguns amigos no seu colégio.

― Você estuda de manhã?

— Sim, mas não no Militar. Sou amiga do Jean que é irmão da Rayanna que é a melhor amiga da irmã do meu amigo Adolfo. — Dei uma risadinha para retomar o fôlego. ― Então, é isso.

Despedi-me da Tita e ele continuou ali me olhando com vontade.

― Tua mãe vem te buscar? — Perguntou ele, coçando o nariz.

― Não... A sua vem?

— Não... mas, e aí? Quer que eu te leve para casa?

Eu tinha ficado de ajudar a Miriam e o Adolfo com a bagunça, mas meus amigos sabem que eu gosto muito do Yohann e que receber um convite dele por lógica anulava os planos iniciais.

Estava anoitecendo meio devagar. Foi uma quarta-feira bem ensolarada e quente. Aquele azul claro ia se escurecendo e o por do sol parecia ter sido idealizado por um pintor muito inspirado. O sol se punha com a sua graça de sempre quando os relógios já passavam e muito das sete da noite. O cinzento do asfalto parecia mais escuro do que o normal. Carros e seus escapamentos afobados, as luzes amarelas do poste lentamente se acendendo, obedecendo sempre aos mandos e desmandos do astro rei.

Yohann caminhava ao meu lado sem saber se pedia para segurar a minha mão ao atravessar a rua e eu não sabia se tomava a iniciativa ou se esperava, de fato, uma brecha para ele se encher de coragem e se aproximar mais.

― Eu não brincava de salada mista fazia um tempão — ele comentou.

― Eu brincava mais antigamente, antes de me mudar para cá.

— Você não é daqui?

― Eu me mudei para cá na metade do ano passado. Sou de Prudentópolis.

— E eu sou de Guarapuava.

― Meu vô também...

Chegamos ao terminal de ônibus, passamos por um túnel para pararmos do outro lado onde apanharíamos um ônibus alimentador verde que pararia a uma quadra da minha casa. Se Yohann mora na mesma rua que o Adolfo (meu amigo no início, meu amado no final), ele usou aquela desculpa de me levar até em casa para ficar pertinho de mim. E eu juro, não estou sendo presunçosa. Eu conheço muito bem o jeito que um garoto age quanto está afim de uma garota.

― Eu te convidei, eu pago. — Ofereceu-se ele na fila da banquinha.

Yohann custeou a minha passagem e comprou um pacote de papel pardo cheio daquelas balas de hortelã. Colei aquela embalagem na agenda e escrevi o nome dele bem grande com a caneta preta.

Yohann me contou que estava ansioso para se formar no último ano, que pretendia se possível, seguir a carreira militar a exemplo dos pais que assim como Sônia e Sérgio também usam fardamento.

Conversamos em frente a minha casa até realmente ficar escuro e a verdade é que não demos conta do tempo porque não o sentimos passar. Tive de entrar porque ele ficou preocupado que eu pegasse sereno, coisa e tal, mas sei que assim como eu, também não queria ir embora.

— Ei, me passa teu telefone para a gente marcar de sair um dia desses? ― Perguntou ele tirando de dentro da mochila o seu caderno o qual anotou na última folha o número do meu telefone que ditei bem calmamente para não haver erros.

— Obrigada por ter me trazido até em casa.

― Disponha. E se cuida, viu? — Ele me deu um beijinho na bochecha, meio sem jeito, torcendo para eu me virar e ser na boca. Até que não seria ruim, não?

― Você também.

Passei o meu telefone. E ele me ligou na tarde seguinte. E nas outras também.

Tita não deve mais me aguentar com essa história do Yohann, mas ao contrário da Miriam que endeusava o Jean imaginário, eu estou realmente conversando com o meu garoto e gosto de conhecê-lo melhor porque se olhando nos olhos a timidez afugenta as grandes perguntas, pelo telefone ele se revela, se sente bem à vontade, não me esconde nada.

Às vezes ele me liga à noite, desliga bem tarde. Ao final diz que já está com saudades. Eu também não queria desligar.

Penso nele até dormir.

Penso nele ao acordar.

Quando penso nele, a tristeza se vai.

Eu sei que tudo tem a sua razão.

Ficou claro naquele doce aperto de mão.

Yohann diz que vive pensando em mim, que me acha muito bonita, que eu sou diferente das outras e sei conversar. Não quero me iludir por tão pouco. Ele tem 16, eu ainda vou completar 13. Eu estou indo para o sétimo ele, ele está a cada ano mais perto da faculdade. Meninas bonitas da idade dele não faltam. Ele disse que esse lance de idade não importa quando duas pessoas se entendem de verdade...

Eu estou sendo correspondida?

(Pausa para dar alguns suspiros profundos de amor)


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