As Lendas dos Retalhadores de Áries escrita por Haru


Capítulo 20
— Medo da escuridão




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— Medo da escuridão 

Fisicamente Mari estava ao lado da janela do último banco de um ônibus executivo voltando para casa, emocional e mentalmente, por outro lado, ela já estava lá. Nas semanas que ficou fora, não parou de pensar nem por um minuto em Kin e em Haru. Morria de saudades deles, os amava como se realmente fossem seus filhos, sempre dizia a si mesma que os dois foram o prêmio que Deus lhe deu por ter suportado a dor de não poder gerar uma criança. De bônus ainda ganhou Arashi. Nunca seria capaz de agradecê-lo pelo quão feliz ele fazia a sua filha mais velha. 

 Puxou mais para perto a mochila azul escura que deixou no banco vago e a abriu devagar para não acordar algum dos outros passageiros. Eram quase três horas da manhã, estava chovendo um pouco lá fora e o frio estava bárbaro. Adorava tempos assim, se sentia a pessoa mais protegida do planeta quando se refugiava deles debaixo de um cobertor grosso como aquele que guardou na bolsa.

Se cobriu, jogou para trás os cabelos castanhos e pôs a touca rosa clara na cabeça. A touca foi um presente da Yue. Aquela menina estava fazendo de tudo para ganhar o seu coração, mal sabia ela que já o tinha, só não falou nada porque estava gostando de vê-la tentar consegui-lo. O sono veio em questão de segundos. Em poucos minutos, sonhou, com uma riqueza de detalhes e coerência dignas da realidade, milhares de coisas. Sonhou que chegava em casa e era recebida com abraços, que jogava vídeo game com Haru. Viu Kin se casar. 

Em um outro desses sonhos, estava de cabeça para baixo. A touca que tapava seus cabelos estava fora do seu campo de visão, muitos cacos de vidro enfestavam aquele que era para ser o teto do ônibus e o que a prendia na cadeira era o cinto de segurança, pois o cobertor que ela usava estava bem debaixo de seus olhos. Uma dor aguda correu toda a sua barriga e seu abdômen, seu coração foi a mil. Aquilo não era um sonho. 

Um barulho assustador veio de onde ficava a entrada, era o motorista pisando a porta para sair. Um homem velho, alto, de pele clara, olhos castanhos, todo sujo de sangue, ele olhou lá dentro de novo para verificar se havia alguém acordado ou vivo. Com pavor, percebeu que nem todo mundo havia posto o cinto de segurança e fez o sinal da cruz. Durante o impacto, uma jovem moça atravessou a janela e agora, com o pescoço perfurado pelo vidro, jazia morta.

 O motorista entrou, ajudou Mari a soltar o cinto de segurança, a ficar de pé e cuidadosamente a guiou para fora. 

— Obrigada. — Mari, de pé ao lado dele observando os estragos, agradeceu. A dor aguda voltou e, dessa vez duas vezes mais forte, deixou Mari literalmente de joelhos. Seu casaco azul marinho de capuz tinha uma grande mancha de sangue na exata região onde doía. 

Preocupado, o velho imediatamente a ajudou. 

— A senhora está bem? — A indagou, ajudando-a a ficar de pé. 

— Sim — Respondeu ela, agradecendo aos céus pela folga que a dor lhe deu. — Eu acho... Acho que sim. Vem, temos que ir lá dentro ajudar os outros a saírem. 

Mari e o motorista entraram no ônibus de novo e acordaram as pessoas. Cinco delas morreram onde estavam. Uma moça com a idade da Mari, antes sentada na frente dela, acordou de repente e entrou em pânico, gritava tanto que acordou todos os que até então apenas dormiam. Mari a ajudou, enquanto o motorista guiava para fora um jovem que milagrosamente escapou sem nenhum ferimento, mas que estava em estado de choque. Em seguida, ele voltou e ajudou um outro homem. 

A noite estava muito bonita, havia parado de chover. Com indiferença mordaz à tragédia, uma meia-lua brilhava dourada e as estrelas, algumas nitidamente azuis, se exibiam naquele frio céu negro. O motorista, após ajudar um outro senhor, olhou para os dois lados da estrada e, preocupado, viu que não haviam carros a caminho. Ao redor só enxergava mata, onde alguns dos acidentados se sentaram para assimilar o que aconteceu.

Viu Mari entrar lá mais uma vez e poucos minutos depois sair ajudando uma moça grávida, então voltou para dentro e foi tirar os sobreviventes que faltavam. 

— Onde é que a gente tá? — A moça grávida perguntou repetidas vezes, tão rápido que Mari não conseguia responder. Ela era loira, alta, tinha olhos castanhos escuros, vestia um casaco rosa com listras brancas e uma saia bege. Era igualzinha à Kin. — Não tem ninguém para nos ajudar, é isso? Nós vamos... O que vai acontecer com a gente? O que...

— Você vai ficar bem. — Mari enfim conseguiu responder. — Você só tá em estado de choque, nem se ralou, não tem nem sangue em você... Vai ficar tudo bem!

Mari ia voltar para dentro do ônibus para verificar se mais alguém precisava de ajuda, mas logo na porta deu de cara com o motorista e aquela dor, dessa vez mais forte do que nunca, voltou com tudo, a fez cair sobre os joelhos com o rosto no veículo virado. Assim que terminou de ajudar uma outra jovem, o motorista foi até ela, a apoiou em seu ombro e a manteve de pé. 

— A ajuda já tá vindo! — Exclamou o velho, logo após proferir uma dúzia de palavras que Mari não ouviu. — Continue acordada, por favor!

— Não se preocupe comigo... — Disse Mari, agora de pé pelas próprias forças. — Tem mais gente viva lá dentro, temos que ajudá-los a sair!

Juntos, os dois tiraram todos os que faltavam. Enquanto esperavam uma ambulância chegar, Mari se sentou na grama ao lado da garota grávida. Abraçando-a, a tranquilizava, lhe dizia que tudo ficaria bem, que seu bebê nasceria com saúde, e lhe fazia uma série de perguntas pessoais para fazê-la esquecer o momento. Aquela maldita dor aguda que quase a fazia mijar nas calças ficou vários minutos sem dar as caras. 

Conseguiu arrancar um sorriso da jovem grávida. O nome dela era Satomi e ela estava grávida de seis meses. 

— Ele ficou tão feliz! — A garota contava sobre a reação do pai da criança. — Eu não... Não posso perder nossa filha, ele nunca mais vai me olhar da mesma forma se... s-se isso acontecer!

Mari segurou forte o seu ombro e disse:

— Você não vai perder essa criança e nem o amor do pai dela, vocês dois vão criá-la juntos e vão ser muito felizes!

Satomi conteve o choro e, grata pelas palavras, além de muito mais tranquila, a abraçou. Mari, de repente, sentiu no ar um calor incomum para uma noite daquelas e olhou instantaneamente para o ônibus. A traseira dele estava pegando fogo. Ouviu-se o choro de uma criança. Mari olhou em volta e percebeu que foi a única a notar aquilo, então se levantou e bravamente entrou no ônibus. 

Estava escuro, o avanço do fogo lhe deu a luz que ela precisava para achar o garoto que chorava. Estava no antepenúltimo banco. Assim que o avistou, Mari correu até lá, o pegou nos braços e se dirigiu para a saída, mas na metade do caminho a dor voltou até mais agressiva do que na última vez e a nocauteou. Um senhor apareceu na porta, pegou o garoto e o entregou para a mãe que, de tão abalada, nem se deu pela falta dele, em seguida entrou lá, tomou Mari nos braços e a carregou para fora. 

Junto com o motorista, sem deixar Mari, o homem afastou os acidentados o máximo possível do ônibus, que explodiu minutos após todos estarem fora de perigo. Os sobreviventes contemplaram a cena com horror, rezavam para não terem esquecido ninguém lá dentro. Só o que lhes restava, contudo, era aguardar a chegada dos paramédicos, que demoraram mais do que o prometido, mas vieram. 

Mari não acordava e muito mal respirava. O sujeito que a salvou, acompanhado da jovem grávida, a pôs na maca. 

— Por favor, não deixem ela morrer! — Satomi intercedia pela vida dela, até ser, ela própria, conduzida para a maca mais próxima. 

— É uma heroína. — O motorista, abismado, informou os paramédicos, retirou o chapéu, o pôs frente ao corpo e disse: — Eu nunca vi nada assim antes.

Para garantir que nada fosse acontecer com ela durante a suspensão da maca, três homens se juntaram a sua volta e contaram até quatro antes de colocá-lá lá dentro. Um dos paramédicos, um jovem negro de olhar gentil, virou-se para ele e disse:

— Vamos fazer tudo o que pudermos. O senhor é parente dela? 

— Não. — Respondeu o velho. — Mas ela estava indo para o Reino de Órion e, enquanto estava semi-consciente, repetia um nome... Era "Kin", ela dizia "Kin"! 

A retalhadora de elite, pensaram os paramédicos. O mundo inteiro a conhecia. 

— Certo, vamos ligar para ela quando chegarmos. — Disse o rapaz que perguntou a ele sobre algum parentesco com Mari, fechando as portas da ambulância. — O senhor também parece estar ferido, procure ajuda. 

Só então o velho motorista parou para se olhar, mas não prestou muita atenção em si mesmo, ficou aonde estava e encarou a ambulância que levava Mari até ela sumir do seu campo de visão. Se lhe perguntassem, ele não saberia dizer o que aconteceu. Num minuto dirigia despreocupadamente, num outro, um tremor violento o fez perder o controle do volante e o automóvel com o qual trabalhava há vinte anos capotou. Se a culpa matasse, teria morrido no segundo que tudo começou.

Kin, desacompanhada, acabava de chegar em casa. Estava séria, apressada e sonolenta, as roupas que usava, todas da equipe de elite que encabeçava, indicavam que ela estava vindo do trabalho. Viu da janela que as luzes estavam apagadas, o que significava que Haru já tinha ido dormir. Abriu a porta e ouviu o telefone tocar. Não teve pressa para atender. Tirou a jaqueta com calma, a deixou no braço do sofá, deu a volta por trás dele e pegou o telefone em cima do suporte de madeira do abajur. 

Haru desceu as escadas esfregando os olhos, tinha o sono leve de um guerreiro, qualquer som o despertava. Ia perguntar para Kin o que houve, mas lembrou do quanto a irritava a chamarem enquanto ela estava ao telefone e ficou quieto. A expressão que tomou o rosto da loira imediatamente acordou Haru de vez, de um segundo para o outro ela pareceu extremamente preocupada. Ao descer os degraus que faltavam, parou ao lado dela.

A retalhadora de elite esfregou a testa com a mão como fazia em momentos de grande estresse.

— Entendi. — Assentia nervosa, agora com a mão na cintura. — É, ela mora aqui mesmo. Tá legal. Aham, já estou a caminho. — Prometeu, depois bateu o telefone. Seu rosto ficou assustadoramente pálido. 

— O que houve? — Seu irmão a conhecia muito bem: sem que ela dissesse uma só palavra, ele sabia que algo terrível havia acontecido. 

— O ônibus da Mari capotou. Ela está no hospital, em cirurgia. — Revelou. Uma repentina tontura a abateu, a forçou a se apoiar no sofá. — Vamos lá. 

— Tá. — Haru, apreensivo, jogou as chaves no bolso e concordou.

— Ligamos pros outros de lá. — Disse-lhe, abriu a porta para ele sair primeiro, apagou a luz da sala, trancou a porta e saiu. 

Os dois chegaram lá literalmente voando e foram avisados de que Mari ainda estava em cirurgia. Pediram-lhes que aguardassem na sala de espera, uma pequena ala de porta amarelada aberta e paredes azuis claras com aproximadamente vinte cadeiras pretas. Os ventiladores, ligados, mais atrapalhavam do que ajudavam, as luzes estavam fortes demais até para os dois. Seus sentidos, assim como seus corações, pareciam ligados no máximo.

Tão amedrontado quanto Kin, Haru andava de uma ponta da sala a outra. Nem pensou na irmã. A mulher que tomou conta dele quando era criança, que lhe deu educação, amor e carinho enquanto Kin trabalhava fora, estava entre a vida e a morte. Essa é a sensação de perder uma mãe?, ele se perguntava, incrédulo. Olhou para Kin e pensou: foi isso que você sentiu? Se foi, tinha uma irmã mais forte do que imaginava. Pedia tanto a Deus que ela sobrevivesse. 

Sentada, Kin mantinha as mãos juntas apoiadas nas pernas. Sua mente estava como que anestesiada. Nenhum pensamento entrava ou saía, nenhuma impressão era registrada e não haviam memórias sendo processadas em sua cabeça. A expressão de seu rosto, por outro lado, era vazia como a de alguém que refletia sobre mil coisas relacionadas a um tema específico. Ela estava vivendo uma perfeita experiência extracorpórea. 

Arashi chegou poucos minutos depois de Haru ligar. Junto com ele, igualmente apressadas, estavam Yue e Naomi, os três, antes de encontrarem Kin e o ruivo, ficaram perdidos na recepção. O guerreiro glacial só pensava na última conversa que teve com Mari, em como se abriu com ela sobre o que sentia pela retalhadora de elite e na maneira que falou dos muitos planos que às vezes perdia as noites fazendo. Só se sentiu tão a vontade daquele jeito com Kin. 

Os encontraram, como indicou a recepcionista, na salinha aberta no final do corredor a esquerda do balcão de entrada. Arashi se sentou com Kin e a trouxe de volta à realidade com um amoroso abraço. Extremamente triste, fraca, desmotivada demais para se mexer, ela deixou a cabeça cair no ombro dele. Yue e Naomi abraçaram Haru. Ele, demonstrando o quanto precisava daquilo, não importava de quem viesse, agradeceu e as envolveu com os braços.

Os quinze minutos seguintes pareceram uma eternidade. O som dos ponteiros se movimentando no relógio da parede era o único que Kin escutava, muito embora suas amigas, seu namorado e seu irmão mexessem os lábios e conversassem entre si. Agradecia por ninguém ter lhe dirigido a palavra. Queria permanecer quieta, parada, que ninguém lhe perguntasse coisa alguma. Não queria nem mesmo pensar. 

Ouviu passos se dirigirem à sala em que, com seu irmão e os outros, esperava por notícias. Lentamente ergueu o olhar para a porta, Arashi sentiu seu rosto se mover no ombro dele e olhou na mesma direção que ela. Um cirurgião, com uma poderosa feição de pesar estampada na face, apareceu na porta, Haru foi o primeiro a correr até ele. 

— Doutor! Como ela está, doutor?! — O questionou, desesperado. 

O homem retirou o óculos dos olhos, fitou, um por vez, todos os que estavam na sala de espera e finalmente deu a angustiante notícia:

— Infelizmente, ela não resistiu

Ele provavelmente disse mais algumas coisas, mas essas quatro palavras foram tudo o que Kin captou. Haru deu com a testa na parede para chorar, as garotas o abraçaram e Kin, antes de ir ao chão em prantos como era o desejo dela, foi amparada por Arashi, que a segurou e abraçou como se ela fosse se desfazer. O médico contou dos feitos heroicos de Mari, disse o quanto sentia, falou do muito que se esforçou para salvá-la, mas o que realmente os tocou foi saber que, enquanto era levada para a sala, padecendo das piores dores físicas que já sentiu, ela não parou de chamar por Kin e Haru e de se referir a eles como seus filhos.


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