Gil não era um filho de vilão comum. A maioria dos VKs era assustadora, meio grosseira e com humor ácido. Já Gil era animado, com sorriso fácil, ingênuo e bobo.

Uma e Harry sempre lhe disseram para evitar abrir a boca o máximo possível e fingir ter pose de durão. Depois que vieram para Auradon, lhe disseram para pelo menos fingir não ser tão ingênuo, porque todos estavam zoando dele.

Gil não via assim, as pessoas eram simpáticas e ele gostava. Mas, percebia que até mesmo Jay e Carlos de vez em quando chamavam sua atenção para não ser tão bobo. De qualquer forma, ele não podia evitar.

Era fácil ficar impressionado com tudo que tinha em Auradon. Tipo, banho quente era fantástico, bolo de cenoura sem moscas era uma delícia e borboletas… Borboletas eram lindas! Ele queria que houvesse mais borboletas porque as adorava quase tanto quanto adorava chocolate quente.

Franziu os lábios enquanto pensava em borboletas e chocolate, prestes a pegar mais uma uva, quando uma mão passou na frente da sua, puxando a vasilha de frutas para longe de seu alcance.

— Cara, você gosta mesmo de uvas!

Gil piscou surpreso, e torceu para não estar vermelho enquanto sorria para Jay.

— Já acabou o treino? Não percebi que tava tarde.

— Pedi para a Lonnie me liberar mais cedo. Só tive que pagar cinquenta flexões a mais, mas, olha pra mim! Isso é moleza.

—… Por que pediu para ela te liberar mais cedo?

Jay piscou surpreso e abaixou o rosto, antes de passar a língua pelos lábios devagar, daquele jeito sedutor que fazia Gil querer subir pelas paredes.

— Tinha alguém que eu queria ver o quanto antes.

— Quem?

O moreno revirou os olhos como se dissesse "é sério que não tá óbvio?"

— Você, é claro. - falou enquanto empurrava seu ombro de brincadeira. — Digo, as aulas tão acabando e a gente ainda não decidiu para onde vamos primeiro.

— Nós?

— A viagem, Gil. - novamente ele apenas revirou os olhos pegando o celular e abrindo o bloco de notas.

O filho de Jafar tinha uma lista de cinco páginas no celular de lugares para ir e começou a explicar onde ficavam e o que mais queria ver em cada um. Gil tentou prestar atenção, mas, não conseguia ouvir.

Os olhos de Jay brilhavam e ele tinha um sorriso enorme enquanto falava. Parecia tão feliz, tão animado… Tão sincero. Ele parecia verdadeiramente ansioso por aquela viagem, tão ansioso que Gil não tinha coragem de contar que talvez não pudesse participar por causa de suas notas verdadeiramente dignas de um filho de Gaston.

Aquilo era vergonhoso, ele pensou que seria humilhante contar ao Jay que era afim dele e não ser retribuído, mas, mais humilhante ainda seria deixá-lo se empolgar com essa viagem, planejá-la com ele… E no final, nada acontecer… Ou pior, se não acontecesse com ele…

Talvez, no final, se repetisse, ele levasse Lonnie, Audrey, Jordan ou mesmo Hanna, ou alguma outra garota sortuda em vez de Gil, só para não desperdiçar o tempo que gastou planejando.

Aquele pensamento doía ainda mais.

— Jay… - Gil interrompeu o monólogo animado do garoto.

Mas, quando os olhos do garoto se cravaram nele, com aquele sorriso de covinhas, Gil amarelou. Não podia contar que talvez fosse repetir e decididamente não tinha coragem para falar que estava a fim dele.

Então, o que disse foi:

— Terra do Nunca.

Jay piscou, confuso.

— Como é?

— Terra do Nunca. - falou, sorrindo forçadamente enquanto mexia nas luvas que usava. — Quando criança eu fugia muitas vezes pro navio dos Gancho e passava a noite por lá. O Capitão contava pra gente sobre como era a Terra do Nunca. Harry, Uma e eu prometemos que se algum dia conseguíssemos sair da Ilha, seria o primeiro lugar para onde iríamos.

— Tá bom, vamos lá… Pode ser a nossa segunda ou terceira parada… - o moreno suspirou revirando os olhos, sem conseguir disfarçar certo desanimo na voz, como se algo naquela explicação o desagradasse.

— Primeira. - insistiu. — Por favor, a promessa é que seria o primeiro lugar...

— Pelo que entendi, também prometeu que você ia com o Harry e ele decididamente não vai nessa viagem, então não faz mal não ser o primeiro lugar.

Gil uniu as sobrancelhas, aquele tom na voz de Jay… Desde que saiu da ilha, tinha certeza de nunca o tê-lo ouvido falando assim, com tanta… Acidez.

— O que é isso, Jay? Ciúmes? - Gil fez bico, tentando segurar um sorriso.

Jay virou a cara, abriu e fechou a boca, antes de voltar a lamber os lábios.

— Achei que essa viagem era para ser nossa, só isso. Mas….

— Vai ser.  garantiu e por mais que temesse uma possível rejeição, colocou a mão sobre a dele.

Para seu delírio, Jay não o afastou.

— É, com você querendo viver planos que planejou com o Gancho, até parece. - Jay revirou os olhos, bloqueando o celular.

— Terra do Nunca, Agrabah, Arendelle e País das Maravilhas. Os próximos quatro, você escolhe.

— Quer ir pro reino de gelo logo depois do deserto? - Jay arqueou a sobrancelha.

— Choque térmico! Me parece legal!

Mais uma revirada de olhos.

— Jay… - Gil hesitou, o olhar caindo para a mesa. — Eu comecei a fugir pro navio dos Gancho porque quando minha mãe morreu, meu pai começou a beber muito e... Ele ficava um pouco assustador bêbado e... Quero ir pra Terra do Nunca porque quando eu não conseguia fugir de casa, ficava nervoso demais pra dormir, ele ficava atirando a esmo pela casa, então...  Tentava pensar em como devia ser legal poder voar por aí, até cair no sono. Não é por causa do Harry, é só porque pra mim parece certo. Mas, se você não quiser…

— Tá bom. - Jay suspirou, se dando por rendido.

Como não se render por aquilo?

Ele lembrava vagamente de que quando Laurette Bimbette morreu, era comum encontrar o Gaston caído bêbado por algum beco... Era tão fácil roubar dele naquela época! Isso foi antes do cara abrir a academia na Ilha, claro. Depois disso, Gaston largou as bebidas e voltou ao modo arrogante, nojento e difícil de roubar de sempre.

Na verdade, Jay tinha a vaga lembrança de quase ter levado um tiro de espingarda da ultima vez que tentou roubar do caçador... Ou foi um tomate que quase o acertou? Era difícil ter certeza, ele já tinha sido pego tentando roubar tanta gente... As lembranças simplesmente começaram a se embaralhar na sua mente.

Mas, mais que isso, ele lembrou de Laurette. Ele nunca entendeu como ela e as irmãs acabaram na Ilha, mas lembrava que mesmo que Claudette e Paulette tivessem se tornado rapidamente amargas, Laurette conseguia manter o bom humor e sempre andava sorridente pela Ilha dos Perdidos, sendo simpática até com os piores dos vilões.

Olhando agora, ele percebeu o quão Gil se parecia com a mãe.

— Então, Terra do Nunca, Agrabah, Corona e então Arendelle. Podemos ir para o País das Maravilhas logo depois.

— Legal, pode ser. - Gil sorriu, feliz por terem chegado num acordo.

— Você vai correndo contar pro Harry agora, não vai?

Gil sentiu Jay apertar sua mão, e quando olhou, viu que o moreno havia entrelaçado os dedos com os seus, o que fez seu rosto ficar quente. Talvez… Podia estar interpretando mal, mas, talvez ele não quisesse que ele fosse…

— É, você vai. - o aperto de Jay na sua mão afrouxou.

Rapidamente, Gil apertou a mão dele. Não estava pronto para soltar ainda.

— Não.

— Não?

— Harry ia encher o saco se soubesse. Ele pode… Descobrir só quando a gente já estiver indo.

Jay riu. — Isso seria legal. Eu ia adorar ver a cara dele.

Gil queria dizer mais alguma coisa, mas, a cantina estava se enchendo com os membros da equipe de esgrima (ok, não era exatamente esgrima, era mais uma mistura disso com parkour, mas, para Gil isso era apenas um detalhe) e as líderes de torcida. Ambos grupos já haviam encerrado os treinos e ele não se sentia bem com o excesso de atenção repentina.

Bem, com o repentino excesso de garotas passando por eles e falando “Oi, Jay”, em tom de paquera. Por que sempre era tom de paquera? Claro, era porque Jay era lindo, atraente, popular e... Argh, ele era gentil com todas elas!

Por que elas não o paquerariam? Por que se importariam com ele estar de mãos dadas com algum loiro de cabelo bagunçado quando já tinha flertado com todas elas? Elas que andavam por aí, para cima e para baixo, com vestidos cor-de-rosa e azul-bebê com pedrinhas preciosas, lábios delicados e cabelos brilhantes? Ai! Eca!

Nervoso, Gil soltou a mão de Jay e se levantou, pegando de volta a vasilha de uvas. Não aguentaria ouvi-las por muito mais tempo. Não porque lhe deixasse com raiva. Apenas o fazia se sentir... Triste e... Talvez, inseguro?

Seu pai com certeza o repreenderia por isso. Era filho de Gaston!

"Se não há igual ou melhor que Gaston, também não há igual ou melhor que o filho dele!" Era o que ele diria. 

Mas, aquelas garotas eram tão perfeitas que o faziam se sentir como um grão de poeira em um chão perfeitamente encerado. Que chances teria contra elas? Jay era perfeito demais. Elas eram perfeitas demais. E Gil não era...

— Eu tenho… - ele gaguejou, desfocando de seus pensamentos e voltando para o momento. — Lição de casa. Melhor eu já ir…

— Posso te ajudar se quiser! - Jay deu de ombros se levantando.

— Na verdade… Eu e Harry vamos furtar os cadernos da Uma e copiar dela. Ela é boa em muitas matérias e... É, a gente cola dela.

— Você e Harry, hein? - o moreno cruzou os braços e revirou os olhos. — Tá bem.

Ele guardou o celular no bolso e deu as costas, indo se juntar aos colegas de esgrimas. Mas, antes de ir, ainda sem se virar, acrescentou:

— Nem imagino o quanto deva ser legal pra você poder dividir o quarto com seu namorado. - e foi embora.

Gil piscou, confuso. — Ele não é meu namorado. A gente terminou faz tempo...

Mas falou muito baixo para Jay escutar.