Relatos do Cotidiano - Parte 3: Velhas Cicatrizes escrita por Vale dos Contos Oficial


Capítulo 12
Verdadeiras intenções




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A segunda-feira havia chegado e uma avalanche de situações ocorreriam, estava sentindo, sabe aquele frio na barriga quando está ansioso para qualquer coisa acontecer? Então, parecia um iceberg preso em minha garganta. Eu não contara para meus pais sobre o tal correio elegante, e nem contaria, eles não viram, ninguém da minha família que estava presente viu, por que eu teria que contar?

Bom, cheguei à escola tremendo de medo, Larissa disse não estaria na escola antes das sete da manhã, perdera hora, talvez nem fosse. Surtei legal logo às seis e meia da manhã obrigando-a ir, não aturaria aquele povo sozinho, além de que eu contaria sobre mim aos meus amigos. Passei o fim de semana todo colocando os pingos nos 'is', encaixando as peças do quebra-cabeça até eu me encontrar, colocava cada instante da minha vida em um papel que poderia simbolizar que eu era ou não gay, se eu já tinha indícios de quando era menor, e olha, a lista era enorme, não tinha fim.

Além do mais, Luca, Débora, Larissa e Rafael haviam me aceitado, o que tirou um peso enorme dos meus ombros, ainda mais depois do cinema, em que eu mal prestei atenção pensando em minha vida, como a dor era intensa, tinha medo do que meus pais falariam, ainda estava com aquele pesadelo maldito percorrendo meus sonhos, minhas noites, estava tudo turbulento. A aula começava às sete e dez, esperei Larissa até o último segundo, Débora viria com ela, Luca não deu às caras, Rafael simplesmente surtou na noite anterior e bateu o pé que não daria as caras no colégio.

Nisso, o sinal soou, voei para dentro da escola antes do portão fechar. Não acredito que enfrentaria tudo aquilo sozinho. Eu tinha meus outros amigos, mas sei lá, eles estavam mais para um elenco de apoio nesse momento do que personagens vividos em minha mente. Claro, saíamos de vez em quando, e tals. Nisso, Rita e Isaías apareceram, os únicos do meu grupo que apareceram.

—João, venha cá! – E puxaram meu braço. Falei que não precisava daquilo e que continuaria andando no meu tempo. – É que estão falando de você.

—Ah, para variar, falando de mim? Imagina! Esse povo nem gosta tanto assim de mim. – Na sala de aula, demorei a entrar. Pela porta de vidro, vi a coordenadora dando a maior bronca no pessoal. Muitos continham aquela cara de "tanto faz, sei que não é comigo", mas muitos também tinham "tanto faz, estou foda-se para você e sua bronca", o que me deixava muito irritado, pois mostrava o quão desrespeitoso era o comportamento deles. – E o que estão falando de mim?

—Sobre o tal correio elegante, o que te mandaram?

—Ah, mandaram duas mensagens, sabia que eram falsas. Somente uma ficou com a diretora por ter a mesma caligrafia que um outro cartãozinho, o que chegou para a professora, pedindo a morte dela.

—E o outro?

—Taquei na fogueira.

—Por que fez isso?

—Gente, vocês acham que isso mudaria alguma coisa em minha vida? Só estão dando essa bronca no povo porque uma professora foi ameaçada. Para eles, o resto é resto, estão nem aí com a gente.

—O que está acontecendo? – Larissa e Débora apareceram atrás da gente, Rafael surgia milagrosamente pelas escadas, todos nós esperamos aquele sermão terminar para entrarmos na sala. Expliquei a ela o que ocorria e contei o que se passou na festa e no sábado, contudo, quando contei sobre minha sexualidade, os dois ficaram bastante surpresos, o que eu não esperava... Mentira, esperava sim. Lógico, antes eu fiquei com um frio na barriga maior do que eu tivera, eu engoli toda a água que trouxe de casa, precisei encher minha garrafinha novamente, tudo ocorria conforme eu não esperava.

—E desde quando vocês saem e não chamam a gente?

—Vocês nasceram grudados com a gente? Saímos no sábado bem rapidinho, somente para fazer essa pessoa espairecer a cabeça lotada de informação. Para alguém bem inteligente, você é bem devagar no que raciocínio.

—Quer continuar esfregando na cara?

—E o que vocês fazem aqui? – A coordenadora saiu da sala e nos pegou ali, rindo, ao mesmo tempo que preocupados. – Não estão atrasados?

—Estamos. – Respondemos em uníssono, o que a pegou de surpresa, bem do tipo "O quê?! Sem desculpas?!". – Podemos entrar?

—Claro. João, você pode ficar aqui um pouco.

—Só se a Larissa ficar, advogada é para essas coisas.

—Advogada?

—A Débora e o Rafael também, para não levantar suspeitas sobre o tema do assunto, ainda mais se for sobre o tal correio elegante.

—É sobre ele. Olha... Pode ficar calmo, estamos resolvendo todos os casos de provocação.

—Teve mais?

—Muito mais, principalmente atacando os professores. Alguns sabiam da brincadeira, ainda mais devido ao conteúdo, outros sabiam que era perseguição por ódio e afins. O seu, claramente, foi zoação.

—Com uma pitada de ódio, porque é o que aquele povinho sonso sente do nosso amigo aqui. – Larissa me defendeu. – Acho ele chato em muitos momentos? Acho, ele também reconhece essa personalidade irritante dele, mas não quer dizer que vamos caçoar sem parar, e muito menos atacaremos o pai dele por ser nosso professor.

—Seu pai é atacado?

—Você acha que meu pai faz tudo o que esse povo fala? É todos os dias indo à direção para reclamar dele, principalmente fora dos dias que tem aula com ele.

—Eles reclamaram do seu pai hoje, aliás, sobre um celular tomado. Acharam um absurdo.

—E meu pai está errado? Ele até já tirou meu celular.

—Mas não nos informou sobre.

—Sim, porque ele devolve o celular no final da aula. Como teremos aula com ele hoje, as duas últimas, ele devolveria no término da segunda, porém, esse pessoal é apressado, quer reclamar e reivindicar aquilo que já possuem.

—Tudo bem, acalmemos os nervos. O professor os espera na aula. – Com autorização do professor e da coordenadora, pudemos entrar. Ao sentarmos, já escuto alguém me chamando, óbvio que ignoro, quem quer que se já, vem uma reclamação e um xingamentos depois, entretanto, nada me abalou. Com somente Rita e Isaías, que passou a andar conosco, do meu grupinho, o peso do correio elegante e do meu segredo saiu de meus ombros.

A aula prosseguiu sem parar, com interrupções para repreensão dos professores. Não tinha um que não saía daquela sala sem reclamar da turma, minha sala incomodava muito, era irritante, pareciam crianças. O intervalo foi mais calmo, ficamos em nosso canto por uns minutos, até o pessoal do cursinho nos chamar, e fomos com eles para perto da sala do extensivo, ficamos conversando por um longo tempo, nem reparamos que o sinal havia soado. A chamada dos inspetores que nos alertaram, porém, o grito foi para as turmas do nono ano.

—Vamos ter que aguentar esse pessoal por mais três aulas.

—O semestre está terminando, não falta quase nada.

—Faltam duas semanas, e amanhã começam as provas.

—Daqui a pouco termina, vocês vão ver. E ainda nem prestam vestibular, que é uma vez ao ano.

Enquanto seguíamos para nossa sala, a turma da Rubia ficou em nosso encalço, falando coisas que eu gostaria de esquecer. Sobrou para meu pai que, além de péssimo professor, era péssimo pai, não me deu educação, começaram a falar cada coisa irritante. Eu me segurava, Larissa e Débora viam o como eu estava nervoso, minhas mãos tremiam sem parar. Todavia, explodi:

—Vocês são tão superiores, não é, só porque tem um pouco amais de dinheiro no bolso que, aliás, é dos pais de vocês, acreditam que podem inventar sandices sobre os outros, vocês são ridículos, são ignorantes. – Todos me encararam com certo olhar de deboche. - Pelo menos, já sei qual será o tema do meu TCC quando estiver na faculdade.

—Vai ser difícil ser filho de professor, e com certa ajuda, entrar em uma faculdade. – Riam de mim, como sempre, contudo, não abaixaria a cabeça novamente. – E qual seria esse tema? "Como passar sem mérito próprio"?

— Como as pessoas, ditas racionais, bostejam pela boca e não, como posso dizer, pelo ânus? Em outras palavras, "Onde Deus errou para a merda sair pela boca?"! – Todos ficaram irritados. Notava que muitos riam, outros, surpresos pelo o que falava. Inspetores apareceram, porém, uma rodinha os impedia. Eu era o ofendido da turma. No entanto, suportei demais aquilo, eu estava em meu limite, anos daquelas mesmas piadas sem graça, daquelas brincadeiras de mal gosto. Errei? Sim, mas me perdoei, fui perdoado, parei com isso. Eles não, persistiam nessas asneiras.

—Você acha que é quem para dizer isso para a gente?

—A pessoa que vocês mais amam do mundo. Só sabem falar de mim e do meu pai.

—Você é estúpido e convencido. – Rubia me encarava com fúria e ódio, certamente queria me bater ali mesmo, na frente de todos – Ridículo, sem noção, um babaca, otário e infantil. Acha que é quem para falar assim com a gente?

—E você acha que é quem para falar comigo? – Eu atormentava ainda mais os nervos daquela sala, do mesmo meio que fizeram comigo por todos aqueles anos em que eu estive lá, por todos os momentos oportunos que eles tinham para descer meus dias bons ao mais fundo e quente do Inferno.

—Eu farei o inferno na sua vida!

—Pode tentar, mas não conseguirá nada. Afinal, o que é o inferno para quem vive em um inferno, lotado de demônios. – Do nada, minha face ardia o vermelho do sangue que subiu com o tabefe acertado.

—Diretoria! Agora! – Aquele foi um grito do inspetor.

Na diretoria, meu rosto começou a desavermelhar, começou a voltar ao que era antes daquele tapa, doído por sinal, dado por Rubia. O pessoal da minha turma já estava em aula, contudo, nós dois estávamos esperando o diretor terminar uma reunião com um pai, não sabíamos quem. Pelo tempo que esperávamos, estariam conversando sobre mudar o filho de escola, uma vez que demoravam muito.

—Na minha época, aluno ficava em sala de aula, e não na diretora. – Disso o mantenedor.

—Fala para essazinha aqui e a turminha dela cuidarem da vida amarga deles e pararem de me atormentar que poderemos ficar sossegados em sala de aula. – Rubia iria rebater o que falei, no entanto, voltou atrás e ficou quieta, mas com a cara fechada e irritada. A diretora abriu a porta, o pai saiu e nem reparou na gente ali, no sofá de espera. Com um movimento das mãos, pediu que entrássemos.

—Agora, poderiam me explicar o que aconteceu no pátio? – Rubia não disse nada, portanto, tomei a vez e expliquei tudo o que aconteceu, desde o instante em que subimos do pátio mais baixo, ao lado da sala do extensivo, até o momento em que levei um tapa da cara.

—Você, porém, ficou atiçando o pessoal agir dessa forma.

—Eu agi como eles tem agido comigo desde que meu pai assumiu as aulas de educação física. Reclamam sempre sobre ele passar trabalhados, sobre ele querer ensinar esse povo a fazer algum exercício diferente, criticam por eu ficar de recuperação, afirmando que ele pede a vocês para me deixarem para não aparentar um privilégio meu de não poder ficar de recuperação, criticam quando eu fico fora da recuperação, pois sou filho de professor, criticam por tantas coisas que eu nem me recordo mais.

—E, você, Rubia, nada a dizer? – Ficou muda, não proferia uma palavra. – Nada a acrescentar? Concorda com tudo o que ele fala? – Silêncio permaneceu. – Bom, pela história toda, temos um errado, que é a Rúbia. – Ela ficou em choque.

—Tem mais gente, ela não me faria perder a paciência sozinha. Tem Danilo, Viktor e o resto da turminha. – Apontei o nome de todos e ela anotava.

—Tem certeza que são esses? Não há nenhum nome amais? – Neguei, eram aqueles. O sinal para a quinta aula soou, ela me dispensou e pediu a um inspetor chamar aqueles alunos. Na sala de aula, cheguei antes do pessoal sair. Sem Rubia ao meu lado, sabiam que eu tinha falado algo, e não o meu silêncio.

—O que aconteceu? – Larissa e o pessoal se aproximara. Contei tudo, tipo, esses cinquenta minutos que ficamos ali, principalmente do silêncio de Rubia, que me deixou intrigado. – Ela não virá com gracinha, né? Faço a cara dela parecer uma torta amassada se criar histórinha.

—Vai dar em nada, presta atenção. Ainda bem, graças ao bom Deus, que eles não sabem que sou gay. – Um pessoal ouviu, mas com eles não me importava nada.

—Pê, posso falar com você, lá fora enquanto o professor não chega? – Isaías foi comigo lá fora, as meninas ficaram para trás, esperando algum assunto novo saltitar pela porta. – Eu queria pedir desculpas. – Não entendi nada. – Fui eu quem escrevi um dos correios elegantes, provavelmente o que você queimou. Eu, juro, que não sabia que era para você. Assim que me contaram, briguei com eles, o pouco da paciência com aquela manada terminou ali, naquela discussão. Não quis mais saber deles, falsos, ardilosos, peçonhentos, nunca me deram apoio, não era nada para eles, somente uma marionete para contar a eles o que acontecia em nosso grupinho.

Aceitei as suas desculpas e o perdoei, vi a lamentação em seu olhar, ele não conseguiria mentir e fingir tão bem assim. Nisso, o professor apareceu pelas escadas, subindo do cursinho. O pessoal começou a brotar da diretoria.

—Vamos entrar, quero mudar de lugar e ficar o mais distante deles até o final do mês.

—Eu troco com você, estou bem no meio da nossa rodinha, ninguém entra e ninguém sai sem o pessoal de fora permitir.

A sala virou um inferno, literalmente, só faltava fogo se lá tivessem gasolina e isqueiro. Eram indiretas a todo o momento, principalmente para mim. Quando o sinal da última aula indicou o fim de tudo, que eu poderia ir embora e deixar aquele povo para trás pelo menos por um dia, só não corri porque esperei o pessoal ficar pronto e sairmos juntos. Os pais de todos já estavam à espera, ficaria sozinho. Por sorte, minha mãe surgiu com o carro.

—Seu pai não vai almoçar hoje, ele tem que resolver uns assuntos pendentes aqui. Só o veremos no jantar. – Esse mesmo não demorou nada para acontecer, ainda mais que não estudei nada naquela tarde, deitei e dormi até às seis, instante em que fui à academia. O grupo da sala estava mudo, somente uns que ficavam irritantes.

Repentinamente, uma mensagem de Pietra, aquela com quem tive a briga maluca devido a um grupo no celular. Eu a respondi com todo o respeito que tinha, não cutuquei pelo fato de Rubia ser bem amiga dela, ou de ela estar ficando com Viktor, nada. Conversamos como dois adultos, ou melhor, dois adolescentes. O diálogo demorou muito até chegar na seguinte mensagem:

"João, ouvi uma história de você. Queria saber se é ou não verdade?" – Minha espinha gelou na hora (Já poderia brincar de boneco de neve, porque vai sentir frio na espinha a todo instante lá longe, viu?). – "Você é mesmo gay?" – O que eu responderia sem causar uma briga maior. E como ela sabia?

"Ué, sempre fui".

"Por que não me contou então?".

"Porque eu me aceitei somente esse fim de semana, quando me esclareceram muitas duvidas e medos".

"E por que a Rubia sabia disso e eu não?".

"Porque não faço ideia de como ela descobriu".

"Um pessoal contou para ela e..."

"Ela fez questão de espalhar para o resto da sala?" – Ela confirmou com um joinha. – "Legal, minha vida já era um inferno, agora terei os demônios me assolando".

"Calma, estamos aqui para te ajudar, ela não fará nada. Eles não farão nada".

"E se meu pai descobrir? O que farei?" – A mensagem foi, mas não chegou para ela. Sim, a internet de casa caiu e não voltava mais. – Essa conversa continuará depois. Eu falava do jantar, certo? Momento em que conversaria com meu pai.

—Filhos, eu e sua mãe conversamos há muito tempo sobre isso e sobre o tempo que ficaram no colégio. Mas, chegou a um ponto que eu não suportava mais trabalhar naquele lugar. – Eu já esperava isso. – Eu pedi demissão há um mês, e só esperei passar a festa junina, a qual seria o tempo necessário para o meu aviso prévio dar os trinta dias e eles encontrarem outro professor.

Por fim, minha irmã não sofreria com a saída da escola, pois ela já fora matriculada onde meu pai também trabalhava. Somente eu perderia amigos, e preciosos, por sinal, que me ajudaram tanto em tão pouco tempo, que me abraçaram tão lindamente sem ao menos saber quem eu era de verdade, o que eu tinha por baixo dos panos, eles foram magníficos, não tinha como agradecer. Todavia, a notícia tinha que ser dada. Felizmente, meu pai não saberia de mim, ainda mais que aquele foi seu último dia naquele colégio.

 


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