Relatos do Cotidiano - Parte 3: Velhas Cicatrizes escrita por Vale dos Contos Oficial


Capítulo 11
Fim da dúvida




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No sábado inteiro eu fiquei pensando sobre o que ocorreu no dia anterior, na festa Junina. Não é que eu não tenha gostado do que as meninas fizeram comigo, a fim de calar o pessoal que fez aquela "brincadeira" comigo, mas é como tudo caminhou. Por que eu não me senti à vontade com tudo aquilo? Por que, para mim, aparentar que beijei uma garota não me dava uma sensação boa? Claro, ainda mantinha a minha promessa de namorar apenas quando estiver na faculdade. Nem sei o que se passou na minha mente quando fiz essa promessa.

O pessoal havia ligado a mim para irmos ao shopping naquela tarde. Eu teria que ver com meus pais, pois precisava de dinheiro. Porém, eu nunca pedia diretamente dinheiro para eles, não gostava de pedir dinheiro a ninguém, por fim, eu usava a seguinte técnica:

—O pessoal está combinando de ir ao shopping. – Agora, indiretamente, era o instante em que eles participavam com uma pergunta "Você tem dinheiro?", então eles me davam dinheiro, ou "Você não vai" e me explicavam o motivo.

—Se precisar de dinheiro, tem em cima da mesa da minha salinha. Deve ter uma nota de cinquenta reais ali por cima. É suficiente?

—Claro que é, creio que sobra aliás. – Sou bem econômico com minhas coisas... Bom, em alguns momentos, na verdade. Tem sempre aquele dia louco em que sentimos uma vontade enorme de gastar. – Vocês podem me levar por volta das quatro?

—Depois da missa. – E o sábado eu fiquei o dia inteiro me perguntando aquilo que há anos eu me perguntava "Eu era gay ou não?". Para mim, o dia anterior foi um pouco mais turbulento para essas coisas. Primeiro, tive os dois correios elegantes, o que já colocava em xeque se foi mandado por um homem ou por uma mulher; segundo, o fato de a amiga delas querer me beijar foi surpresa, era lésbica e se dispôs a me beijar para enganar os demais.

Durante todo o momento da missa, eu fazia tais pensamentos ficarem sossegados em um canto do meu consciente, porém eles ficavam em minha visão, não consegui prestar atenção em nada, nem na homilia, nas leituras, eu rezava de forma tão mecânica que parecia mesmo que minha alma e reflexões estavam naquele lugar. Meu coração apertava a todo momento em que encarava meus pais e pensava "Eles vão ficar felizes comigo depois de eu contar? Eles vão me expulsar de casa? Eu serei culpado por tudo o que aconteceu de errado? Eles se culparão por algo que não tivemos escolha?"

Quando me deixaram no shopping, foi um alívio tão grande, tão imenso que quase pulei em cima de Larissa, ela esperava o resto do pessoal do lado de fora.

—Que bom que você veio, achei que seus pais não deixariam por causa de ontem.

—Eles nem sabem o que aconteceu, talvez meu pai descubra segunda-feira assim que contarem para ele.

—O que você acha ocorrerá com os culpados?

—Primeiro, terão que descobrir o culpado, pois duvido que essa pessoa deixou algum rastro, além que alguém mesmo do nono ano pode ter escrito no papel a pedido.

—Ou seja, não terá culpado.

—Basicamente não, mas teremos que esperar para ver. – Entrei e a deixei lá fora, esperava o namorado. Do lado de dentro, Luca, Rafael – praticamente sumido das histórias – e Débora estavam olhando para capinhas de celular em uma lojinha pequena. – Hello, people! (Olá, pessoas!)

—Oi, João! – Rafael estava indeciso entre três capinhas. Uma vermelha e com glitter, a outra preta com um desenho de unicórnio e a terceira era amarela com desenhos de sorvete. – Qual delas você acha a menos pior?

—Por que "menos pior"?

—São todos desenhos feios, eu queria essa aqui. – E mostrou a imagem de uma que dizia um bordão de um casal da internet "É aquele ditado: Pau no **!" Por motivos óbvios, eu censurei uma certa palavrinha. – Meu pai surtaria, claro, mas estou pouco ligando.

—Então, a menos pior é a de unicórnio, e olha que não sou muito fã deles. – Eu fui olhar uma capinha para meu celular também, mas só por ver, pois a minha estava em bom estado. – Vocês vão querer ir ao cinema?

—Não tem nada de interessante em cartaz.

—Vocês acham?

—Sim, está passando uns desenhos tão podres que não vou gastar meu dinheiro com aquilo. Prefiro ficar passeando dentro do supermercado ou daquela loja xoxando as roupas do que ver "A Tragédia dos Anjos". Mereço um filme desses?

—Que filme é esse?

—Ah, é um cara que é assombrado pelo espírito da sogra, porque acredita que ele está enrolado a noiva, filha dela, por causa de um crime, quando na verdade ele não quer ir jogar na copa do mundo. É meio que uma paródia para jogar o nome do Pelé no meio da história.

—Ah, parece ser legal.

—Acertou no adjetivo. Legal, pois "bom" passou longe.

—Gente, o que esse menino tem hoje? – Larissa apareceu com seu namorado, um garoto com a sua mesma altura, cabelos cortados certinho, com polo branco, jeans e tênis preto. Eles tinham uma aliança prata bem pequena. – Faz quinze minutos que eu fui esperar o Nathan e não parou de reclamar.

—Quero dar uma boa impressão para seu amor, prazer, Rafael. Esse é o Luca e João Pedro. A embuste da Débora você já conhece.

—Cala a boca, Rafael! – Eu tinha certeza de que Débora jogaria o sapato nele caso não estivéssemos naquele cubículo. – Já que não comprarei nada, vou esperar lá fora.

—Perdoe o Rafael, ele é meio elétrico. Prazer, João Pedro.

—Ah, então você é o tão famoso João Pedro.

—Ué, me conhece de onde?

—Larissa fala muito de você.

—Não ficou com ciúmes, não né?

—Como eu poderia ficar com ciúmes de você? – Fiquei incógnito com aquilo, talvez fosse paranoia minha.

—Amor, preciso ver um sapato para minha mãe, vamos comigo? – Nathan afirmou e os dois saíram. – Luca, você vem também?

—Ah, vou sim, não tem o que quero. – Ficamos somente Rafael e eu, que saí logo em seguida.

—João, espera. – Ele saiu com sua capinha preta de unicórnio já posta no celular. – Posso te fazer uma pergunta? – Meu coração acelerou desesperadamente, senti minha espinha gelando na hora, praticamente meu chão desapareceu. Ele perguntaria isso mesmo que estou pensando? É lorota de minha cabeça, não foque tanto nisso, são pesadelos, você está muito bem... Muito bem suado, eu deveria dizer, pois não conseguia segurar meu nervosismo, minha mão tremia em meu bolso.

—Claro que pode.

—Ah, tem certeza? Vou perguntar não, melhor – Pergunta logo, inferno, está me matando.

—Pode fazer.

—Não vai ficar nervoso? Eu te conheci esse ano.

—Pergunta, não vou surtar.

—Você é gay? – Pronto, a pergunta que eu mais temia. O que eu responderia? O que eu faria? Era meu fim, não tinha palavras que descreviam o meu temor. Responde qualquer coisa! Mas se eu mentir e falar que não? E como saberei que é mentira? Posso estar enganado todo mundo? Posso estar me enganando? Quando tempo já passou, preciso responder. Esse meu fluxo de consciência me matava, eu sentia minha mão tremer ainda mais.

—Eu... – Meu chão desapareceu, senti minha barriga gelando, sentia meu corpo todo frio. Parei de andar, assim como ele. – Não sei... – Esperava uma risada, uma zoação, até mesmo um soco em meu ombro para me fazer sair de cima do muro.

—Por que não sabe? – Era um detetive esse garoto?

—Eu já pensei, ainda mais que... Sei lá... Para mim é tudo tão...

—Estranho? Novo? – Afirmei com a cabeça. Saímos da loja e seguimos para a praça de alimentação. Passamos diante de uma enorme loja de sapatos, Larissa e Débora faziam de Nathan e Luca como suportes. Sentamos em uma mesinha e ele foi pegar um milk-shake, estava sem fome quando ele me ofereceu um pouco, ainda estava digerindo o que acontecia comigo. – Eu sei o que você está passando, pelo menos tem a mim para perguntar. – Não fiquei surpreso com o que me falou, sabia há tempos de sua sexualidade, ele não a escondia aliás, para raiva de alguns meninos da escola que o consideravam vulgar. – Eu sei que sou escandaloso, que dou altas risadas, que falo alto e tals, mas não quer dizer que ser gay é ser como eu. Na verdade, sou assim antes mesmo de eu me aceitar como gay.

—Mas... Seus pais são sossegados com isso, você já comentou.

—São assim depois que meu tio me ameaçou de morte.

—Eu não sabia disso... – Fiquei assustado, ele percebeu.

—Não é uma coisa que eu me vanglorio muito, não é simples, nem usual iniciar uma conversa com "Ah, meu tio quase me matou com uma estátua da Sagrada Família, mas estou bem". Tenho até medo na hora em que ele chegar no purgatório e Nossa Senhora conversar com ele sobre como tratar a imagem da Sagrada Família.

—Não sabia que você é católico também.

—Tu não sabes nada também, hein? – Eu dei uma risadinha, praticamente uma nova porta se abriu em minha frente. – É brincadeira, não sou aquela pessoa que me expõe demais nas redes.

—E ainda posta uma foto por dia, imagina se quisesse se mostrar.

—'Tá' legal, talvez eu seja um pouco mais saidinho do que eu realmente fale. Mas essa conversa não é sobre mim, é sobre você. Conversávamos sobre você, eu e Larissa.

—Falando de mim pelas costas?

—Uai, só estávamos notando o quão inseguro você parece ser e queremos te ajudar. Você é inteligente, tem uma beleza própria, não tem motivos para se manter trancado em uma jaula de inferioridade. Tem muito mais do que aparenta ser, você merece mais que isso.

—Na verdade, eu não sei o que eu sou, gay, bi, hétero, nunca me coloquei para pensar... Bom, já me questionei às vezes.

—Como era a sua infância?

—Ah, eu via desenhos, gostava dos filmes daquela boneca loira, rosa para mim sempre foi mais uma cor, e não cor de menina, sempre gostei de ler, gostava de natação, detestava fazer judô, mas hoje peguei apreço, detestava estudar, mas hoje gosto. Nunca fui uma criança arteira, sempre respeitei meu pais, apesar de eu ter raiva por alguns momentos.

—Bom, desenho e cor não definem ninguém, minha irmã era a maior briguenta para querer meus carrinhos azuis da família, parecia um trator, e hoje é a pessoa mais hétera que já vi na vida, diferente do que todos achavam. Então, você teve uma infância como todos nós tivemos. Agora, você já secou alguns garotos quando era menor?

—Ah, sempre olhei, era mais curiosidade, para ser franco.

—Só que já sentiu algo amais? – Eu não me recordava, apenas de algumas mais fantasias aqui e acolá que qualquer adolescente tem. Quando parei para pensar, somente afirmei, pois era a mais pura realidade, nada que ultrapassasse a verdade. – Você foi repreendido, para dizer a verdade, como sempre fomos.

—E eu sou o quê, afinal?

—Realmente? Somos seres humanos. Colocamos rótulos apenas para nos unir e ficar mais fácil lutarmos para um bem melhor e mais justo, nada de privilégios. Seja o que você for, estaremos do seu lado, somos seus amigos.

—Mesmo que eu mude de escola?

—Mesmo que você mude de escola... Ei, por que mudar de escola?

—Então, ouvi uma conversa do meu pai, parece que ele sairá do colégio, perderei a bolsa por não ser mais filho de funcionário.

—Aff, só porque criamos coragem para te fazer melhor. – Larissa, como boa língua solta, resmungou atrás de mim, cujo susto foi certeiro.

—Vocês ouviram tudo?

—Bom, quase tudo. Essa anta bípede decidiu não gravar a conversa de vocês.

—Como futuro psicólogo, tenho uma ética a respeitar. Agora, não tem como você ficar conosco? Nem se prestar a prova de bolsa?

—Eu já prestei, mas não vale de nada. Ainda não tenho certeza, sei lá, vai que ouvi errado.

—Por fim, depois dessa longa conversa, será que você ficará mais seguro de si por ter amigos que te aceitam como você é?

—Eu sou seguro de mim, mas tem o resto... O pessoal que não veio hoje.

—Ué, quando se sentir melhor, converse com eles, certeza que te aceitarão, ou não são seus amigos.

—Você tem razão.

—Gente, correm aqui! Vamos ver "A Comédia dos Anjos"?

—O que eu falei, Dé, sobre esse filme pão com ovo? – Nós nos aproximamos de um cartaz azulado com uma mulher irritada em cima de uma nuvem enquanto um casal no chão estava deitado.

—Mas, Rafa, você falou sobre "Tragédia".

—Filho de Deus, com esse nome, só pode ser uma tragédia, das gregas ainda.

—Eu comprei o meu ingresso, quem mais vai?

—Todos iremos, mesmo que seja necessário arrastar Rafael para a sala.

—Já que é para o bem de toda a nação, eu verei esse filminho água com açúcar.

—Ele falou a mesma coisa do "História de Brinquedos" e ele saiu chorando do terceiro filme.

—Mas quem disse aos roteiristas tentarem matar os personagens?

—Vamos entrar? A sessão começa daqui a pouco. – Todos concordaram. Eu estava mais leve, era um peso que saía de meus ombros. Eu tinha apoio, mas até quando? Felizmente, ainda havia alguns dias para eu conviver com eles.


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