As Fagulhas de Hugo escrita por flyawk


Capítulo 1
Capítulo 1 - O Medo Bate Na Aorta


Notas iniciais do capítulo

Olá leitoras e leitores!
Olha, esse capítulo tem algumas coisas que talvez possam ser meio assustadoras (mesmo que essa não seja minha tendência para essa história)
Boa leitura e espero que gostem ♥



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Frio. Era uma típica madrugada de inverno em Civitas Forward: temperaturas abaixo dos 5°C, uma leve fumaça cinza saindo das chaminés e, claro, ruas desertas e cobertas por um fino tapete branco formado pelos flocos de neve que rodopiavam em uma complexa dança até chegarem ao chão. Procedendo de acordo com a ocasião, já encontrava-me deitado e coberto por dois edredons felpudos. Sem sono ainda, observava a janela parcialmente fosca por causa da camada de umidade que a cobria: nenhuma luz acesa nas outras casas. Meu corpo estremeceu - ainda estava com frio. Sei que poderia facilmente resolver a minha complicada situação corriqueira pegando mais uma coberta no armário, contudo levantar é um grande desafio quando se está na posição perfeita. Decidi que logo me acostumaria e viria a adormecer. Porém, a minha mente parecia não concordar com isso...

Não por causa do frio, embora ele colaborasse. Refiro-me àqueles momentos difíceis de pegar num sono, porque o universo decide revelar uma pequena amostra dele na forma de questões existenciais. Em noites como essa, dormir parece impossível até chegar-se a uma conclusão. Porém, é quase certo você se esquecerá disso tudo ao acordar. E era essa peculiar experiência que vivia nesta exata hora. 

Todos sonham, é o que dizem. Mesmo que não se lembrem desse ato e dos acontecimentos no decorrer dele, todo mundo sonha. Mas, isso parece o tipo de afirmação comum, na qual não há um embasamento completo o suficiente para ser adotada como verdade universal. E é simples provar como cheguei a essa premissa: quando se é uma exceção, fica fácil perceber a falta de validade. Como eu sei que sou exceção? É uma longa história. Mas, que fique claro: Não há com o que se comover dado que não há como sentir falta de algo que nunca foi vivenciado. Assim, o único sentimento que reside em mim não passa de mera curiosidade pelo motivo pelo qual eu seja privado dessa experiência.

Diferente do que se espera. Minha mente teria que dormir sem chegar a uma resposta. 

 

—--

Neste instante, ouvi o som de uma grande cortina sendo aberta. Instantaneamente, abrindo os olhos. Parecia um grande teatro abandonado, com cortinas rasgadas, piso e teto com buracos, cadeiras quebradas, um grande lustre aceso e dois holofotes focados diretamente em mim. Contudo, mesmo assim, estava lotado, havia uma grande plateia e toda ela estava sentada olhando para mim. Mas esse público não era de pessoas - pelo menos não com as proporções que conheço - porque os olhos eram enormes, fundos e completamente vazios de vida, semelhantes às personagens dos quadros de Margarete Keane. Entretanto, mesmo sem vida brilhando nos globos oculares, essas criaturas ainda continuavam me encarando, não faziam mais nada, se não me olharem atentamente, inexpressivas.

Tentei fugir. Ir para trás das cortinas, sair daquele lugar, fazer qualquer coisa. Mas meus pés não se moviam, eles estavam grudados no chão. Tentei movê-los novamente. Nada. A gravidade subitamente ficou maior e minhas pernas cederam ao chão. Caí. Nunca me senti tão pesado. Minha cabeça estava a mil, pulsando em uma dor de cabeça insuportável. Todos estavam me olhando. Sentia pontadas cada vez mais fortes, como se agulhas estivessem espetando o meu cérebro.

— PAREM! – Gritei colocando as mãos na cabeça e me encolhendo.

Os bonecos de olhos grandes e profundos não pararam. Simplesmente se levantaram e avançaram na minha direção mecanicamente.

— NÃO! VÃO EMBORA! – Eu continuei gritando. As palavras pareciam lixas que passavam pela minha garganta. Continuei tentando fazer força para levantar e sair correndo.

Mas era inútil.

Eu não conseguia. Era como se estivesse colado ao piso do palco enquanto aquelas criaturas me assistiam, como crianças que dissecavam um sapo na aula de ciências. E pior, agora estavam mais próximas, todas em várias posições: sentadas, em pé, de lado, encurvadas... Todas ali, me olhando. Queria fechar os olhos. Só não vê-las. Mas não podia, eles não me obedeciam, como se pregadores segurassem as minhas pálpebras. Não tinha como desviar o meu olhar, por onde quer que eu olhasse, fosse para cima, para baixo, ou para os lados sempre tinham grandes pares de olhos me observando. Pânico, medo, raiva, frustração, dor eram poucos para traduzir... Sentia-me sufocado, sentia-me pressionado, sentia-me envergonhado, sentia um grande desespero correr por todo o meu corpo, como se me queimasse por dentro.

E eu? Eu não podia fazer nada. E eles? Eles apenas me olhavam. Senti o meu rosto ficar molhado, algo gelado escorrida pelas minhas bochechas, chegava ao meu queixo e caía sobre as minhas mãos: lágrimas.

Elas não paravam de sair dos meus olhos. “Parem” eu ordenei com o meu cérebro as minhas glândulas. Mas elas simplesmente não paravam. Estava soluçando, não conseguia cessar o choro e aos poucos minha cabeça, de tão pesada, foi cedendo também ao chão.

De repente, tudo se apagou: os holofotes, a plateia e até eu mesmo. 

—--

— Hugo! Café!

Abri os olhos lentamente e observei através da janela: era de manhã. Um fraco raio de sol passava através dela iluminando uma parte do piso de madeira do meu quarto. Mesmo assim, ainda estava um pouco frio... Olhei o relógio: ainda não era a oitava hora da manhã. 

Respirei fundo.

— O que foi aquilo? - Perguntei baixo para mim mesmo ao olhar para o meu corpo e ver que conseguia mover naturalmente meus membros e ainda estava de pijama. 

Aquele teatro, aquelas coisas com olhos… Parecia tudo tão real. Eu estava com medo, eu senti medo diante daquela situação, não só ele, todas as outras sensações, eu as senti tão vívidas quantos as respirações que realizava agora. Não tinha como ser uma coisa inventada. 

Só podia haver uma explicação lógica para isso: ou estava tendo alucinações ou estava sonhando. Eu sei, antes de dormir, afirmei veementemente que nunca havia passado por essa prática onírica que, com base nos relatos da minha tia, se encaixava também na descrição da minha experiência. Mas algo talvez pudesse ter desencadeado esse sonho - ou alucinação - e eu tinha uma hipótese muito plausível: o remédio que tomara ontem.

Mas, de todo modo, não os tomaria hoje, então, se fosse mesmo a medicação, hoje já não vivenciaria mais essa perturbação. No mais, era só viver hoje como se nunca tivesse pisado num palco diante de estranhos espectadores.

Dei um suspiro. De volta à vida normal, pensei comigo. 

Não queria levantar, se dependesse só de mim, continuaria ali deitado naquela zona de conforto de molas, espuma e cobertas. Entretanto, quando se é estudante isso não depende de você. É preciso se adequar a cultura do meio e, para um garoto da classe média do meio ocidental, isso significava: ir à escola para estudar para conseguir passar no vestibular e, então, entrar numa universidade para cursar algo que você nem sabe exatamente se é isso que deseja fazer pelo resto da vida. Joguei os edredons para o lado, permitindo-me ser atingido pelo ar frio do ambiente, fazendo o meu corpo se arrepiar. Não era a hora para desistir pensei e, contra a minha própria vontade, sentei-me. Suspiro. Levanto. Banheiro. Uniforme. Cachecol. Arrumo a cama. Enrolo o fio do vídeo game. Mochila. Celular. Porta. Enquanto descia as escadas, um leve aroma de café tomava conta do espaço.

— Que bom que acordou dorminhoco. – Disse a mulher de cabelos castanhos amarrados em um lenço vermelho usando um avental marrom com letras bordadas em amarelo enquanto coava o café atrás do balcão da pequena cafeteria. - Nada como uma boa xícara de café para começar o dia, não é mesmo cucciolo?

Eu, definitivamente, não contaria nada para a tia Nicole sobre a minha alucinação - ou pesadelo. 

— Bom dia tia Ni. – Disse enquanto passava manteiga em duas torradas que estavam lá na bancada, ignorando o fato de que ontem enquanto eu estava no quarto tentando dormir, ela ainda estava assistindo TV. - Sua energia às vezes me assusta.

— Você ainda precisa ver quando eu a utilizo cem por cento… – Diz ela me dando uma xícara com café junto com uma piscadela e se sentando ao meu lado.- Mas e você, está melhor?

Dou um gole antes de responder. Meio amargo. Como sempre delicioso.

— Provavelmente. – Respondo e ela me olha não muito contente com a resposta. – Tenho que ir.

Assim que me dirigi a porta, ela me acompanhou. 

— Hugo, você não precisa ir se não estiver se sentindo bem. O que aconteceu ontem foi… preocupante. Eu sei que os exames não deram nada, a médica disse que deveria ser só indisposição, cansaço e você também já foi medicado, mas…

E eu também sofri efeitos colaterais do remédio, acrescentei mentalmente. Minha tia sabia me persuadir como ninguém a fazer algo que eu já queria. Coloquei minha mão no ombro dela, para chamar-lhe a atenção.

— Eu estou bem tia Ni. - Ela parou de falar. - Fora que tenho prova hoje, não posso faltar.

Ainda mais, porque o professor Watson já tinha me marcado por dormir na aula dele. Se eu não fizesse a prova dele, a segunda chamada viria preparada para eu me sair mal o suficiente para que ele me apresentasse para toda a turma como: “resultado de quem não assiste aula”. Já bastava ter desmaiado no dia anterior, não precisava de mais holofotes. 

— Tenha cuidado cucciolo. – Despede-se ela, mesmo visivelmente sem concordar com a minha decisão. Procedendo rapidamente para evitar um próximo contra-argumento dela, eu já estava saindo pela porta da Davoglio’s livraria e café.

Uma brisa gélida voava pelo ar congelando meu nariz e uma leve camada de neve ocupava partes da calçada. O Sol já havia sido coberto novamente pelas nuvens, o tempo estava cinzento. Esse era o meu tempo preferido. Seria ainda melhor se tivesse ficado em casa dormindo. 

— Suba logo garoto. – Disse o motorista do ônibus escolar que acabara de parar de frente para mim. 

Como de costume, sentei-me próximo a janela, com a outra cadeira desocupada e coloquei os meus fones. Gorillaz parecia uma boa pedida. Nada como uma música para te distrair de pensamentos incomodantes sobre uma noite mal dormida. 

É verdade que o banco ao meu lado permaneceu vazio durante todo o percurso. Seja como for, isso não era novidade. Felizmente, estava preparado para essa ocasião com um jogo que havia baixado. E foi isso que fiz ao som de Feels Good até chegar ao destino final do ônibus: o colégio.

 

Entrando na escola, nada de diferente. Um grande corredor de paredes brancas, com inúmeros armários azuis e vários alunos e alunas circulando ou fazendo rodinhas de conversa. Para ser sincero, esses poucos metros quadrados conseguiam ser mais barulhentos que muitas feiras movimentadas. Passar por aquele corredor é algo normal, afinal, faço isso todos os dias.

Contudo, por algum motivo, andar por ali é sempre difícil. As conversas altas pareciam consumir todo o ar do ambiente e as risadas me deixavam desconfortável “estariam rindo de mim?” perguntava-me constantemente. Todas aquelas pessoas… Pensamentos como “Quantas estariam me observando?” ou “O que estariam pensando de mim?” afogavam a minha cabeça. Tantas incertezas me faziam sentir falta de ar, como se estivesse sendo estrangulado por uma corda invisível. 

Felizmente, logo cheguei ao armário e peguei os livros, já indo em direção à sala de aula. Ao menos, era o que eu pensava.

— Parece que alguém precisa de óculos para andar por aqui. – Satiriza um dos alunos ao tropeçar no meu pé, voltando a culpa par mim.

Os colegas próximos a ele percebem e começam a me observar. Incomodante. Será que sabiam sobre o incidente de ontem? Bem possível, fofocas eram outra coisa que se espalhavam rapidamente por aqui. Mas voltando à situação em si, tecnicamente, a culpa não foi minha, ele quem estava distraído jogando conversa fora com os companheiros, mas dizer isso não seria uma boa ideia, então apenas o ignorei e continuei caminhando para o meu destino.

— Esquisito. – O ouço murmurar de longe enquanto se afasta com o seu grupinho.

Enfim na sala de aula, sento-me na fileira da parede, mais ao fundo. Como de costume, cada região de cadeiras pertence a um grupinho de “amigos”. Mesmo que não deva existir lugar marcado, há esse acordo involuntário no qual todos os alunos não podem discordar em nome da paz.

— Como sabem, hoje tem teste. Virem a folha que está em cima de suas carteiras e comecem a resolver. O tempo limite será de uma hora e meia. Não preciso lembrar que colas não são permitidas. – Diz o professor Watson assim que entra na sala, calando todos aqueles que ainda conversavam. Ele tinha um ar de autoridade, era capaz de fazer chorar qualquer criança a quem ele dirigisse o olhar e creio que nunca o ouvi dizer “bom dia”.

A matéria era probabilidade e os exercícios não pareciam difíceis - uma raridade no histórico do professor - basicamente você tinha que fazer a mesma coisa em todos e a única coisa que mudava eram as bolas: “qual a probabilidade de você tirar uma bola vermelha?” ou, para parecer bem criativo “qual a probabilidade de você tirar uma bola com as listras da bandeira americana?”. Sinceramente, se não fosse pela atenção que receberia quando o professor Watson fosse entregar a minha prova de segunda chamada, faltar a escola hoje seria a melhor decisão que tomaria. 

— Senhor Davoglio, por favor, levante-se. – Manda o professor Watson de repente.

Podia sentir todos os olhares dos outros alunos se voltando para mim. O que eu havia feito? Só estava quieto na minha calculando a probabilidade de uma bola azul, em meio a 29 bolas brancas, ser pega pela terceira pessoa que colocar a mão na urna onde elas se encontram, sem reposição. Eu sabia que não daria para fingir que não havia ouvido, pois, com exceção de pequenos cochichos, a sala estava em completo silêncio.

Assim, sem escolha, movi minhas pernas, obedecendo a ordem. Geralmente não faço contato visual com as pessoas. Eles sempre parecem dizer alguma coisa que nem sempre é fácil de decifrar. Todavia, o pior é quando esses olhos te olham de volta, porque você está vulnerável a também ter seus olhos avaliados por aqueles os observam.

Como se eles extraíssem um pedaço da sua alma para fazer uma biópsia.

Isso me trouxe a desagradável lembrança da minha noite de sono e do teatro abandonado. Estremeci só de lembrar. 

Porém, algo estranho aconteceu quando fitei os olhos do professor Watson. Eles estavam literalmente vazios, puro preto, sem íris nem nada, como dois buracos negros. Isso é possível? Porque as únicas vezes que vi algo parecido foram em jogos, e, geralmente, as criaturas que têm olhos assim não são nada boas. Droga, pensei. Estava tendo alucinações de novo. Valeu Dra. Valery por me passar aquele remédio, ironizei, descontente. Oficialmente, eu estava ficando louco. Eu realmente deveria ter ficado em casa. 

— Ande logo, dirija-se até mim. – Apressou ele, como se tudo estivesse no melhor grau de normalidade. E, provavelmente, estava, com exceção de mim. 

E, de repente, meus passos lentos e discretos - que me dariam tempo de tentar voltar a ver as coisas de forma normal - foram acelerados contra a minha vontade, comecei a me aproximar do professor cada vez mais rápido, como um ímã. Fechei os olhos, respirei fundo e repeti mentalmente para mim mesmo várias vezes “volte ao normal”, como um mantra. Assim que parei de me mover, abri os olhos. Esperava que os buracos negros do meu educador nada amigável já tivessem voltado a ser olhos normais e a alucinação tivesse acabado. Contudo, assim que me dei conta, estava frente a frente com o Watson olhos vazios me encarando enquanto a pele dele começava a descamar: primeiro a epiderme, depois os filamentos que formam os músculos, tecido por tecido, parte por parte - rosto, pescoço, braços, mãos, pernas, pés…-  tudo ia se desfazendo e caindo ao chão até restar apenas um esqueleto macabro, com alguns resquícios de órgãos e tecidos, com olhos negros e com o penteado de mal gosto do professor. Literalmente, um defunto. Vestígios de terra e tripas estavam esparramados pelo chão, o cheiro de putrefação pairava pelo ar, encurtando ainda mais a minha respiração. Não sabia que isso era possível, mas ele pareceu sorrir para mim, dando uma risada abafada, grave e lenta. 

E, em poucos segundos, ela cessou, cedendo espaço a um som que parecia de milhares de teclados sendo tocados ao mesmo tempo e, logo em seguida, centenas de besouros negros começaram a sair da boca cadavérica dos resquícios de quem um dia foi o meu professor de matemática. Eles espalharam-se pela sala: andando pelo chão, escalando as paredes e voando próximos ao teto. Eram vários pontos pretos com asas tintilando e patas que sabe-se lá onde estiveram. 

Claramente, qualquer um nesse instante já teria saído correndo. Mas meu corpo, mesmo com a minha grande força de vontade - que não era pouca, disso eu tenho certeza - para sair dali, permanecia fixo, como se eu estivesse acorrentado àquele pedaço de chão. O máximo que consegui foi me virar de costas e perceber que não havia mais nenhum aluno nas cadeiras, apenas suas silhuetas cobertas de insetos.

E não eram apenas os meus colegas. Os besouros negros também começaram a percorrer o meu corpo: subindo pelas minhas pernas, atravessando as minhas costas, passando pelos meus lábios e se emaranhando pelo meu cabelo. Apressei-me para expulsá-los assim que notei sua presença, mas meus braços e mãos também estavam imóveis. Desespero. O sangue correu mais rápido e mais quente pelos meus vasos assim que percebeu que eu não poderia fazer nada para conter essa ameaça que me cercava.

Podia sentir o meu coração se acelerar cada vez mais - tanto que poderia tocar as minhas costelas. O ar estava pesado e impregnado com cheiro de enxofre. Meus pulmões e diafragma pareciam ter perdido a elasticidade, condenando-me a curtas respirações de alta frequência. Tudo o que me vinha à cabeça era gritar. Os besouros ainda rodeavam o meu corpo e pude sentir um roendo o meu pescoço. 

Assim, com toda a força que pude, segurei o pouco de ar que residia nos meus alvéolos antes de expirar e formulei o pedido de ajuda que colocaria para fora. Era a hora. Pude sentir as letras sendo formadas nas minhas cordas vocais.

Silêncio. Estava mudo.

Droga, pensei mordendo a própria língua, na esperança de que isso me tiraria do estado de choque e paralisia em que encontrava-me. Mas era inútil. Tudo o que conseguia era tremer as pernas, ranger os dentes e eriçar os pelos diante da ameaça iminente de um bando de insetos, de silhuetas grotescas e de um ser cadavérico que bem poderia ser o monstro principal de um filme de terror de sucesso. 

— Ora, ora está com medo? – Pergunta o morto levitando próximo a mim, sem qualquer expressão no rosto, com uma boca aberta e apática, tocando em meu rosto com sua mão ossuda, gélida e com alguns pedaços de carne podre, cheirando a decomposição. Os percevejos não subiram nele, ainda preferiam ficar andando em mim e me mordendo cada vez com mais força. 

— Droga! É claro que estou! - Respondi em um ímpeto de coragem (Se é que confessar estar com medo para um defunto é sinal de bravura) e os artrópodes me devolveram o meu corpo, talvez assustados pela quebra da minha mudez. Mas essa determinação logo se esvaiu quando os as silhuetas começaram a rir como se fossem hienas estridentes com as cabeças cheias de insetos, girando em ângulos estranhos. - O… O que… O que você quer de mim?! Seu… Seu ESQUISITO!

Sinceramente, havia palavras melhores para se gritar. Mas foi isso que saiu na hora do pânico. No mesmo segundo em que fechei a boca, o morto segurou os meus lábios com dois dedos, como uma pinça, as unhas permaneceram inteiras, porém cheias de vestígios de terra e desgastadas. 

— Não Hugo. - Ele repreendeu com uma voz ainda mais grave, sussurrante e sibilante.  E, aos poucos, encaminhou sua boca para o meu ouvido. Pude senti-lo abrindo lentamente os lábios. - Você é o verdadeiro esquisito aqui. 

E, assim que sua cabeça voltou a ficar frente a frente com a minha, a carne começou a voltar para o crânio do Watson de pouco a pouco, numa visão que nem os melhores estômagos aguentariam sem ameaçar vomitar. Restituído o rosto, haviam muitas falhas e pedaços de pele faltando: metade da língua, contorno de um dos olhos, epiderme da bochecha, carne de uma parte do maxilar… Senti o café da manhã fazer o caminho inverso pelo esôfago. Segurei a mandíbula para não colocar para fora o bolo alimentar seguido de um grito de puro pavor. 

— O que ele é meus caros alunos? - Perguntou o professor semi-morto em sua nova voz indiferente e mórbida que eriçava meus pelos. 

— Esquisito! Esquisito! Esquisito! – Começam a repetir um coro de vozes que percebo serem as silhuetas cheias de besouros.

Instantaneamente, olhos de faróis brotaram em suas faces e nelas, também, começaram a se desenvolver bocas parecidas com as de ursos, porém com dentes maiores e mais disformes, de onde parecia escorrer um muco preto - semelhante a piche - misturado com saliva.

— Isso mesmo. – Concorda o defunto dando uma risada grossa de interlocutor. Mesmo que, desta vez, sua boca não se movesse e rosto continuasse sem expressão alguma, somente com os buracos dos olhos e a boca aberta em “O” expostos. – Veja só, quem está com o coração palpitando… Talvez devêssemos retirá-lo para poder analisar melhor...

Suava frio enquanto aquela mão fria saia do meu peito e passava pelo meu pescoço, com o rosto se aproximando cada vez mais. E, em poucos instantes, as silhuetas começaram a rastejar pelo chão, locomovendo-se como híbridos de aranhas com jacarés, contorcendo mais e mais as faces disformes enquanto os artrópodes lhes percorriam todo o corpo em um estranho padrão grotesco. Cada vez mais próximas de mim elas estavam. Elas não cessaram o coro disforme enquanto isso e cada vez mais rápido sibilavam a palavra “esquisito”. A repetiram até chegar ao ponto em que todas gritaram essa mesma palavra em uníssono com um tom uniforme tão grave que pareceu fazer o meu coração parar de bater por poucos instantes.

Quando isso aconteceu, eu senti minha respiração interrompida.

Estava sendo sufocado pela mão do morto, que me agarrou com força pelo pescoço, me elevando enquanto a roda de silhuetas em volta de mim se desfez de forma quase simultânea. Os besouros todos, então, correram para a minha direção, mas dessa vez eles não queriam só passear e mordiscar. Podia sentir aquelas patas geladas e sujas andando pela minha pele, entrando pelos meus ouvidos, passando pelos meus olhos e devorando a minha boca e toda a minha pele. Não eram beliscões, eram como ferroadas que cortavam carne e furavam cada vez mais profundamente. Não podia respirar, parecia não ter mais oxigênio no ar e nem mais traqueia por onde ele poderia passar, e antes da minha visão ser totalmente coberta pelos insetos, pude ver o rosto do cadáver se contorcendo cada vez mais até explodir em mais insetos negros. Tudo ficou negro. 

 

Eu não sentia mais nada, nem os besouros, nem suas mordidas, nem os gélidos ossos do professor - Nem meu próprio corpo - era tudo escuridão. Era tudo vazio. E ao mesmo tempo, era um vazio bem pequeno, como uma caixa preta.

Será que morrer é assim? Pensei. Assustei-me quando parei para refletir bem. Não, eu não sentia dor, não sentia nada físico. Porém, não podia dizer o mesmo da minha psique. Tinha medo da morte e já perdi para ela. Então deveria estar preparado. Todavia, agora que ela chegou para mim, eu tinha certeza que não estava pronto, não tinha tantos momentos para relembrar daquilo que vivi. Na verdade tinha. Mas a maioria não eram bons. Eram saudades doloridas, tristezas, mágoas e arrependimentos. E sinceramente, não sentia-me satisfeito de partir assim. Tinha vontade de socar uma parede, gritar de raiva, qualquer coisa para expressar essa justa injustiça que tanto me incomodava - mais do que ser picado por percevejos. Mas tudo era escuro e eu não tinha consistência física. 

De repente, o cubo do último suspiro no qual eu pertencia no presente momento começou a encolher. Qual perigo havia nisso, já que não tinha corpo? Mas, por mais reconfortante que essa lógica deveria soar, eu ainda entrei em pânico. Era sufocante, sentia a escuridão cada vez mais se aproximando de me envolver, de me estrangular. Ela estava se contraindo mais e mais, me apertando, me espremendo, me pressionando, eu estava ficando cada vez menor, acompanhando sua diminuição. Erro meu. Ela estava mais acelerada. Me engoliria antes de eu me encolher até deixar de existir. O que aconteceria quando ela me afogasse? perguntava-me, eu seria apagado sem deixar vestígios de para onde fui descartado? Provavelmente, mas não havia certeza, não quando se tratava da morte. 

— Eu devia… - Tentei falar com o pouco de fôlego que me restava, tentei deixar um rastro da minha existência, nem que fosse um mero eco de um arrependimento. Mas não havia mais um segundo sequer sobrando.  

E, como uma grande onda, essa caixa escura me envolveu por completo.

 

 

Foi difícil perceber a ordem precisa dos acontecimentos dada a rapidez que ambos aconteceram: abrir os olhos e levantar-me. Contudo, nada complicado foi concluir o que aconteceu logo em seguida: a mudança brusca de posição com a cabeça e a claridade que invadiu subitamente minha visão geraram uma dor de cabeça latejante. O mundo parecia ser um bando de bolinhas coloridas piscando. Entretanto, mesmo com a vista embaçada, conseguia ver o que parecia ser o contorno de uma pessoa.

— Não faça esforço, s'il vous plait. Pode acalmar-se mon cher. Sem mais insetos, defuntos, escuro, plateia com olhos grandes… Ao menos por enquanto. - A voz que provavelmente vinha dessa pessoa proferiu enquanto me colocava de volta ao que insinuava ser uma cama. - Aquilo tudo que você passou foi um teste. E Você passou. Omedetou gozaimasu!


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Notas finais do capítulo

Estou muito curiosa para saber o que acharam. Muito mesmo.
Vou adorar ler seu comentário ^-^
Quanto ao título do capítulo, estou pensando em sempre escrevê-lo fazendo referência a alguma outra coisa, seja filme, livro, poema ou qualquer outra coisa que passar pela minha cabeça.
O título desse capítulo é uma paródia do título de um dos poemas de Carlos Drummond de Andrade: O amor bate na aorta.



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