A Fênix de Obsidiana escrita por HellFromHeaven


Capítulo 1
Recomeço




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Todos dizem que sua vida passa diante de seus olhos quando você está prestes a morrer. Creio que devo ter lido isso em algum livro ou ouvido de algum professor certa vez em minha trajetória até o fatídico momento em que um véu negro foi colocado sobre meus olhos. O momento que pensei ser o meu fim.

O engraçado é que uma vida é grande demais para ser revivida em apenas alguns segundos, então o que se passa em sua mente é um pequeno compilado de momentos importantes. Parece pouco, mas é o suficiente para você compreender quais decisões guiaram sua vida, seus erros e acertos mais significantes. No meu caso, serviu apenas para me lembrar que eu ainda estava muito longe de atingir meu maior objetivo pessoal.

Nasci em uma família de demônios de uma linhagem praticamente extinta que só vem ao mundo com uma combinação muito específica de categorias de demônios carmesim. Sendo os únicos vivos nesta condição, eu e meu irmão mais velho destoamos completamente de toda a sociedade a nossa volta. Possuímos pele negra e reluzente como se fossemos feitos de obsidiana, com chifres retos também negros que brotam de nossa testa, olhos amarelos e cabelos brancos como a neve. Os demônios carmesim, como o próprio nome já diz, possuem pele de um vermelho forte e chifres levemente enrolados que brotam das laterais de seus crânios, olhos vermelho sangue e cabelos negros como a noite. Geralmente são muito altos e musculosos, de temperamento difícil e mentalidade simples. É justo dizer que a maior parcela da sociedade é guiada cegamente pelas ordens de seus superiores e são facilmente movidos pelo instinto de destruição. 

Assim como meu irmão, eu cresci sob uma educação rígida, que incluía muitas horas de treino físico e atividades ainda mais severas com o uso de nossas capacidades mágicas. Mesmo sendo mais nova, eu acabei me destacando muito mais do que meu irmão e logo os esforços de nossa família e dos mentores se intensificaram em mim. Diziam que era meu destino comandar os exércitos e conquistar os reinos humanos. Na época eu pouco entendia da guerra e apenas segui suas ordens. Para falar a verdade, eu apenas segui as ordens que foram me dadas por toda a minha vida. 

O tempo passou e minha força se desenvolveu além do esperado, fazendo com que eu assumisse o comando das forças demoníacas aos trinta anos, sendo não apenas a primeira mulher general, como também a general mais jovem da história de nosso povo. No começo tudo era empolgante. As batalhas, as conquistas, as condecorações. Encontrei alguns livros humanos sobre heróis e acabei me vendo como a grande heroína de nosso povo. Sempre admirei muito a figura heróica retratada nestes contos e a forma como todos comemoravam nossas vitórias só fortaleciam esse sentimento. Entretanto, não demorou até que eu descobrisse um vazio em minha alma, que não parecia se preencher de forma alguma. Meu coração me dizia que havia algo errado em minha vida, como se eu estivesse sendo a figurante da minha própria história. Cheguei a levar essas questões pessoais para minha família, mas fui ignorada. Nada mais importava além da guerra. Guardei minhas fantasias para mim e trancafiei em um local profundo de minha alma, sabendo que cada vez mais me distanciava do papel que tanto almejava.

Tornei-me a primeira imperatriz assim que conquistamos completamente um dos sete reinos humanos, Nilfaheim. Meu irmão assumiu meu antigo posto como general e nossas forças aumentavam a cada dia. Entretanto, já não sentia mais prazer em nada do que fazia. Passava o tempo todo com uma expressão vazia, vestindo a armadura carmesim que foi especialmente criada para que os outros demônios me vissem como uma igual. Segundo meus mentores, o povo não estava pronto para ser governado por alguém tão diferente deles. A armadura me rendeu o nome de Morte Rubra entre os humanos. Ganhei uma espada de duas mãos feita com fragmentos de meteorito, cuja lâmina negra emitia um brilho avermelhado sob o luar. Brandia ambos os objetos com muito orgulho assim que os ganhei, mas também não tardou até que se tornassem apenas parte da obrigação de ser uma conquistadora.

Nunca aceitei sair da linha de frente de combate e passei a colecionar livros e objetos criados para crianças humanas. Ninguém sabia deste meu hábito e eu me esforçava para mantê-lo em segredo. Passei a invejar os personagens das histórias infantis, sempre com sorrisos estampados em seus rostos, sempre confiantes com seus destinos. Invejava as crianças humanas que via em alguns livros com ilustrações, sempre felizes, sempre parecendo livres. Minha coleção me deu um motivo a mais para retornar à batalha, mas ao mesmo tempo alimentava o vazio que apenas crescia dentro de mim. No fundo, eu sabia que minha realidade era completamente diferente e sempre que me pegava pensando nisso, sentia como se o mundo ao meu redor me esmagasse lentamente.

Com isso chegamos ao dia em que meus olhos se fecharam e minha respiração cessou. Aparentemente, mais um dia de trabalho. Estava à frente do exército contra a última cidade do segundo reino humano em nosso caminho. Enfrentava uma forte resistência por parte dos humanos, liderados por três grandes heróis de seu povo. Gilean, um homem alto e nobre munido de uma armadura encantada, um machado de duas mãos e um grande escudo de cristal. Shivana, uma feiticeira do deserto, mestre das artes obscuras e portadora de um amuleto feito com um rubi amaldiçoado. Musashi, um espadachim extremamente habilidoso que empunha a espada encantada de seu irmão Kojirou com orgulho, irmão este que foi derrotado por mim após uma batalha intensa. Seus poderes combinados eram realmente louváveis, porém não era o suficiente para me vencer. Horas de luta se seguiram e os heróis resistiram bravamente, tentando um ataque em conjunto como uma última medida desesperada. Estava confiante de que minhas magias defensivas suportariam o impacto, mas meu irmão me traiu. Ele cravou sua espada em minhas costas, atravessando a armadura e saindo pelo meu peito. Pela primeira vez em décadas, senti o gosto do meu próprio sangue. Incapaz de me concentrar, ergui uma barreira mal feita, que apenas serviu para retardar um pouco o avanço da magia de meus inimigos, que me atingiu em cheio e arremessou meu corpo violentamente, despedaçando minha armadura. Enquanto cruzava os ares, mantive meus olhos focados no céu com poucas nuvens, próximo ao pôr do Sol. Não sentia meus braços nem minhas pernas e a dor em meu peito era intensa. Entretanto, por algum motivo que eu era incapaz de explicar, estava em paz. Nunca em minha vida havia me sentido tão livre.

Reviver minhas lembranças foi como um sonho desagradável, que terminou abruptamente assim que encontrei o solo. Acordei em um pulo, muito ofegante. Meu corpo todo estava dolorido e meus músculos pareciam preguiçosos. Estava sobre uma cama, coberta com lençóis floridos, em um quarto de madeira com paredes brancas. Havia um armário de madeira escura e uma pequena mesa de cabeceira de madeira clara. Instintivamente, levei minhas mãos até o ferimento em meu peito. Ainda doía, mas ele e boa parte da minha pele estavam cobertos de bandagens. Vestia uma espécie de camisola levemente esverdeada e minha espada não podia ser vista em lugar algum do quarto.

Não parecia meu reino, então apenas levantei, confusa e assustada. A dor era esmagadora e me envolvia por completo, mas não me intimidei. Em passos lentos e apoiando nas paredes, saí do quarto e percorri um pequeno corredor até um novo cômodo. Era maior que o quarto em que estava, com um grande armário de madeira escura envernizada com outros pequenos armários acoplados ao seu lado. Um fogão à lenha em um dos cantos, uma pia de pedra e uma grande mesa retangular de madeira ao centro. Nela, estavam quatro humanos, sendo dois adultos e dois jovens. Um homem robusto de pele clara com sardas no rosto, cabelo ralo e ruivo com uma longa e volumosa barba, complementada por um belo bigode e olhos verdes. Uma mulher de corpo atlético, pele morena, longos cabelos cacheados castanhos assim como seus olhos amendoados. Um jovem alto de cabelos cacheados e castanhos, olhos verdes, pele morena e corpo franzino. Uma garota baixinha de pele clara, cabelos castanhos curtos e cacheados, olhos castanhos e um largo sorriso no rosto. Todos pareciam felizes com a minha presença, o que me deixou ainda mais confusa.

— Bom dia, flor do dia! - Exclamou a mulher, enquanto comia um pedaço de pão. - É ótimo ver que já pode andar.

— É realmente impressionante… - Disse o homem, alisando sua barba. - Com ferimentos tão feios, achei que ficaria de cama por mais uma semana.

— Que isso, pai! - Exclamou a garota, visivelmente empolgada. - Olha só pra ela! Tá na cara que ela é boladona.

— Gente… - disse o jovem, depois de simular uma tosse. - Ela parece confusa, será que sabe a nossa língua?

— Eu sei sim. - Disse, por impulso.

As palavras saíram de mim por vontade própria e eu rapidamente levei minhas até a boca, como se tivesse dito algo errado. Infelizmente, não estava forte o suficiente para permanecer de pé sem apoio e meu corpo perdeu o equilíbrio. Apenas aceitei toda a dor que minha queda resultaria e fechei meus olhos, mas fui amparada pelo jovem, que acabou derrubando sua cadeira.

— Calma, calma. - Disse ele. - Você ainda está muito machucada. Acho que seria melhor voltar para a cama.

— Eu… Estou bem. - Disse, enquanto procurava novamente um apoio para meus braços. 

O jovem me auxiliou e eu sentei à mesa. Ele sentou-se novamente logo em seguida. Todos me olhavam preocupados, com exceção da garotinha, que colocou um prato de porcelana com um pão à minha frente. 

— Desculpem-me, mas… Quem são vocês?

— Ah, mil perdões! - Exclamou o homem. - Meu nome é Owen, essa é minha esposa Orna e meus filhos Ryan e Leena e nós somos os Torin. Meu filho e eu a encontramos nas margens do riacho praticamente morta e a trouxemos aqui para que pudesse se recuperar.

— Vocês… São humanos, certo?

— Achei que desse para notar. - Brincou Orna.

— Por que me salvaram? Sabem o que eu sou, certo?

— Bem… - Disse Owen. - Sabemos que é um demônio, mas não parece nada com os carmesim.

— Então… Por que me salvaram? Não deveriam ter me deixado para morrer?

— Então… - Disse Owen, coçando a cabeça. - Creio que a maioria das pessoas do vilarejo faria isso. Mas não achei que seria o certo a fazer.

— Saiba que nenhum demônio faria o mesmo.

— Eu imagino que esteja certa. Porém eu quis ensinar o meu filho que não devemos retribuir o ódio com mais ódio. 

Não podia compreender aquelas palavras. Nada fazia sentido para mim. Seria isso a tal "compaixão" que os personagens daqueles livros tanto diziam? Jamais pensei conhecer alguém que pensasse dessa forma. Pude ouvir claramente as vozes dos meus mentores em minha mente dizendo que deveria ser algum tipo de armadilha. Estava muito ferida, mas tinha certeza e que era capaz de matar todos ali e fugir. Entretanto, uma sensação diferente de tudo o que já senti brotou em meu peito. Um calor incomum que relaxou meus músculos e acalmou meus nervos. Senti um calor molhado descendo pelo meu rosto e levei minha mão por impulso à minha face. Lágrimas escorriam de meus olhos incessantemente. Orna se levantou e veio até mim, me abraçando logo em seguida. Tentei afastá-la, mas não encontrei forças para tal. O fluxo de lágrimas aumentou e me vi em um choro desesperado. Ela apertou minha cabeça contra seu peito e acariciou meu cabelo gentilmente. Não sei dizer quanto tempo ficamos assim, mas algo em mim queria que aquele momento durasse para sempre. 

As lágrimas lentamente expulsaram todas as angústias de minha alma. A confusão e o medo tomaram conta do meu ser, mas o calor dos braços daquela humana pareciam me confortar e paralisar estes sentimentos. Nunca me ensinaram a lidar com meus sentimentos, jamais fui capaz de amar ou odiar alguém. Logo, senti um enorme peso sobre meu corpo, me lembrando de todos os humanos que matei, de todas as vilas que incendiei e de todas as cidades que levei ao chão. Não parecia justo que eu estivesse recebendo aquele gesto de bondade. Percebi o quão distante estava de ser uma heroína, naquele momento só podia me sentir como uma espécie de monstro. 

Minhas lágrimas finalmente cessaram e Orna me largou, ainda segurando minha mão direita gentilmente. Suas mãos eram ásperas e fortes, mas estranhamente gentis. Todos sorriam para mim, com exceção do jovem, que parecia muito preocupado. Ele me estendeu um lenço, que usei para secar meu rosto. Meu coração estava inquieto, imerso em centenas de sentimentos diferentes. Reuni o que restava das minhas forças e fiz o que acreditava ser justo:

— Eu.... Sou a imperatriz dos demônios carmesim, Maeleth Zelpha. Sou aquela que vocês chamam de Morte Rubra, a responsável pela conquista de Nilfaheim. 

Todos se espantaram com minhas palavras firmes. Algo em mim dizia que eles precisavam saber quem eu realmente era. Não me sentia digna da gentileza deles e estava convicta de que tentariam me matar, fugiriam ou algo do tipo. Entretanto, Owen pegou uma moeda de bronze de seu bolso e arremessou para a garotinha, que a pegou exibindo um grande sorriso em seu rosto.

— Eu sabia! - exclamou ela - Sabia que ela não era diferente à toa!

— Já falei para não fazerem apostas. - disse Orna, visivelmente irritada.

— Desculpa, amorzinho. - disse Owen coçando a cabeça. - É que… Aconteceu.

Confusa com o cenário surreal diante de mim, fiquei levemente irritada e bati na mesa com meu punho cerrado. Mesmo muito ferida, fui capaz de quebrar a madeira, fazendo com que um pedaço da borda da mesa caísse ao chão. 

— Vocês realmente estão me levando a sério? - indaguei.

Todos se entreolharam e começaram a rir. Fiquei mais puta ainda, mas logo voltei meus olhos para a mesa e me encolhi, envergonhada. O jovem se levantou e pegou uma vassoura, varrendo a minha bagunça.

— Desculpem-me… - disse, cabisbaixa.

— Pode ficar tranquila. - disse Owen. - Nós que pedimos desculpas. Essa situação deve ser muito confusa para você. Seu corpo ainda continha pequenos fragmentos de uma armadura vermelha, então chegamos a cogitar a hipótese de você ser a imperatriz.

— E ainda assim quiseram me salvar?

— Bem… Houve um tempo em que eu teria a matado ali mesmo. Mas foi antes de que conhecer Orna e ver que o ódio não leva a lugar algum. Você aparentava estar tão frágil e, ainda assim, parecia estar em paz. Fomos incapazes de lhe ferir mais do que já estava. Pensamos até que não fosse durar muito, mas já faz um mês e olha só para você, inteirinha.

— Eu… Dormi por um mês?

— Sim. - disse Orna. - Ficamos muito preocupados. Fui eu quem limpou seus ferimentos e a lâmina não parecia ser humana. Estou certa?

— Sim… Fui traída pelo meu irmão.

— É muito satisfatório saber que acertei. Minha alma de ferreira está toda feliz. E eu sinto muito pelo seu irmão.

— Não se preocupe, admito que foi um choque, mas não chega a ser uma surpresa. Eu só… Ainda não consigo entender vocês.

— Não se preocupe, querida. - disse Orna, beijando minha testa. - Eu e meu marido apenas estamos cansados de tanto ódio espalhado por este mundo. Fique aqui quanto tempo quiser.

Era difícil aceitar aquele cenário. Havia situações parecidas em alguns dos livros infantis da minha coleção, mas nunca imaginei que poderia ser real. Instintivamente pensei em recorrer aos meus mentores, mas me dei conta de que estava longe de tudo. Minha armadura foi obliterada, minha espada se perdeu em algum lugar do campo de batalha e meu exército provavelmente acreditava que eu estava morta. Nenhuma patrulha iria me procurar, não haveria novas ordens e eu já não precisava mais lutar. 

Meus instintos não confiavam completamente naquela família, mas pela primeira vez na minha vida me vi em um cenário onde poderia fazer minhas próprias escolhas. Estava tão imersa em minha nova descoberta que deixei escapar um sorriso e logo senti meu rosto molhado por minhas lágrimas novamente. Eu não fazia a menor ideia do que ia fazer, mas tinha certeza de que finalmente seria capaz de descobrir o motivo da existência do vazio em minha alma. 

 


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