Cassis (Série Alestia I) escrita por Jane Viesseli


Capítulo 7
Felizes para Sempre?




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Escurece! A noite mais almejada pelos alestianos finalmente chega. Assim que sua alteza real se entregasse ao marido, o casamento estaria consumado e eles estariam inteiramente sob a proteção da aliança e do príncipe não-vivo. É claro que a donzela em questão achava tudo aquilo bastante desagradável. Ter todo o reino pensando em sua noite de núpcias era, no mínimo, tenebroso, e se imaginar entregando-se carnalmente a um vampiro, era ainda pior.

Em contrapartida, Cassis vagava pelos corredores do castelo desde que fora deixado para trás, admirando o interior daquela construção e tentando não pensar em sua recém-iniciada vida conjugal. O clã havia partido no início da noite, sob a segurança do manto noturno, deixando-o para trás, no reino que agora teria que aprender a chamar de lar.

O não-vivo pôde considerar seu passeio solitário bastante produtivo, no fim das contas, pois, além de conhecer a localização dos quartos da realeza e dos hóspedes, ainda encontrou o caminho para uma instrutiva biblioteca, o escritório usado por Arthur para tratar de assuntos reais e confidenciais, a sala de recordações da família real, as escadarias para as diferentes torres de vigia e o trajeto para o impressionante calabouço.

Já era tarde da noite quando o vampiro resolveu conhecer seus próprios aposentos e finalmente encarar a esposa humana. Ele adentra seu novo quarto devagar, parando a um metro da porta para que sua presença fosse notada. Sara escovava seus cabelos frente a uma penteadeira cuidadosamente polida, vestida com suas roupas de dormir que não eram nem transparentes e nem sensuais, mas que moldavam com respeito as curvas de seu corpo, fazendo-a parecer a menina puritana que o vampiro sempre achou que fosse.

A princesa termina de ajeitar seus cabelos e logo se levanta, caminhando em direção ao marido como se já o esperasse.

― Quero deixar uma coisa bem clara por aqui!

― Prossiga – incentiva ele, percebendo sua pausa.

― Esse casamento foi realizado para proteger o meu povo, entretanto, não sou e nunca vou ser o cordeirinho que é enviado para o sacrifício. A família real é conhecida como os leões de Alestia, o estandarte carrega o nosso símbolo, e leões não são presas, são predadores!

― Reconheço a glória da família real, mas não entendo o que estás querendo me expor com esta história de presas e predadores.

― Quero dizer que não serei subjugada às vontades de ninguém – retoma, num tom alto de ordenança –, as coisas acontecerão à minha maneira e de acordo com a minha vontade, este casamento não será consumado nem hoje, nem amanhã e nem nunca!

― Milady! Entendo impecavelmente que estás…

― Pare de falar assim – interrompe bruscamente, batendo o pé direito no chão –, não faço parte de “sei lá que época” que possui esse linguajar. Fale direito comigo, de forma clara e objetiva, sem ladys, miladys, altezas ou qualquer outra frivolidade da etiqueta! – Caminha em direção à cama, disposta a se recolher sem ao menos desejar-lhe uma boa noite.

― Ficarei louco desta forma – retruca o vampiro consigo mesmo –, obedeça às normas da etiqueta filho, fale direito comigo marido… Que inferno!

Enquanto Sara se aconchegava em seu imenso leito, repleto de tecidos finos, travesseiros de penas e uma coberta de pele vinda da Terra dos Portos, Cassis limitou-se a sentar na poltrona de mogno ali perto, com uma carranca tão grande quanto a dela, tornando nítido o descontentamento de ambos.

― Vai dormir aí? – critica Sara de forma desdenhosa.

― Não quero lhe causar mais infortúnio – resmunga mal-humorado.

― Ótimo! E não ouse deitar-se em minha cama durante a noite.

― Não se preocupe com isso, não faz parte de meus planos furtar sua castidade – rosna irritado –, até porque, não estou tão desesperado a ponto de desejar alguém como você!

Sara sente-se constrangida ao ouvi-lo falar de sua pureza, afinal, aquele assunto era um grande tabu na sociedade em que vivia e detestava falar de sua intimidade tanto quanto odiava estar casada com um vampiro. Contudo, ao processar as palavras finais de Cassis, sua vergonha logo dá lugar à raiva. Como ele ousava dizer que ela não era desejável?

― Vampiro idiota, frívolo, grosseiro e desprezível – xinga em pensamento, bufando logo em seguida, antes de finalmente se aconchegar no travesseiro.

Devido à agitação da festa e toda a tensão que a cerimônia lhe proporcionara, Sara entregou-se rapidamente ao sono, um caminho totalmente oposto ao que o vampiro se encontrava, já que não dormia há anos. Sozinho e num local totalmente novo, Cassis não encontrou alternativa a não ser assistir ao sono de Sara e observar o quarto que agora também lhe pertencia, desejando poder esquecer o passado e realmente cumprir a tarefa que lhe foi confiada pelo clã.

As horas seguem noite adentro e os humanos de todo o reino já podiam sentir o frio que acompanhava o sereno da madrugada. Cassis, já enjoado da tapeçaria, da pintura e dos móveis nobres que o cercavam, após da terceira olhadela, finalmente se levanta depois de horas na mesma posição. Suas pernas longas traçam um caminho silencioso em direção ao leito e seus olhos aguçados puderam ver, mesmo em meio à escuridão, Sara contrair-se levemente de frio devido à coberta mal alinhada sobre seu tórax.

Em prol da boa educação e da cordialidade, o vampiro decide cobri-la apropriadamente, a fim de preservar sua boa saúde. No entanto, não pôde deixar de notar o sono turbulento de sua recém-desposada mulher. Estaria ela sonhando com a morte do irmão? Com o enterro do menino? Ou ele, o marido vampiro, seria o motivo de seu pesadelo? Decerto, não ficaria surpreso se fosse ele a assombrar seus sonhos.

O imortal sacode a cabeça para espantar tais pensamentos, ajeita a coberta de pele sobre o corpo feminino e, por fim, se concentra no objetivo que o levou para tão perto de humana.

Sara pareceu não perceber a gravidade do que lhe pedira naquela noite, porque se o casamento não fosse consumado a aliança não se manteria, e, assim que as criadas adentrassem o quarto pela manhã, procurariam as marcas de sua castidade rompida. Cassis podia não ter nascido na realeza ou numa casa cheia de mulheres, mas já tinha sobrevivido e visto o suficiente para saber como àquelas coisas funcionavam. Levando a mão direita até a boca, ele projetou os caninos e rasgou a pele alva de sua própria palma, ferindo-a o suficiente para criar uma pequena poça de sangue e fechando-a em seguida, para que não sujasse mais do que o necessário.

Cautelosamente, o vampiro içou os mantos que cobriam o corpo de Sara, infiltrando sua mão fechada sob eles até que tocassem a coxa feminina, e ali, relaxou o punho para que um pouco de sangue escorresse de sua palma e manchasse os imaculados lençóis brancos.

Com o objetivo concluído, o não-vivo retira a mão suja e bagunça os tecidos com a limpa, simulando algo que verdadeiramente não acontecera. Ele se afasta, analisando o que fizera e sorri em aprovação, finalmente podendo dar atenção à mão ferida, que não necessitava mais do que alguns segundos de concentração para que se curasse e nada além de uma mancha rubra sobrasse no lugar.

Cassis retorna para sua poltrona, limpando a palma num lenço que obviamente teria de esconder, e passa a observar de forma entediante a madrugada que se encerrava, planejando sair para se desfazer do pedaço de pano antes que a luz cintilasse no interior do quarto e despertasse a realeza adormecida.

Os raios solares refletiam de uma forma bonita sobre os móveis e a tapeçaria da decoração, fazendo a princesa sorrir instantaneamente todas as manhãs, privilégio que só lhe era possível porque suas janelas estavam posicionadas para o leste. Mas, naquele dia em especial, Sara ignorou a luminosidade brilhante do Sol sobre o seu quarto, tendo como seu primeiro ato de lucidez a aferição da poltrona, que já se encontrava vazia, dando-lhe a matreira satisfação de estar sozinha ali, pois Cassis despertara antes de si.

A princesa desliza de sob os lençóis sem se dar conta da mancha vermelha, tratando apenas de esconder seus trajes de dormir, como se este fosse o único detalhe comprometedor de sua falsa noite de núpcias. Quatro criadas adentraram o aposento quase meia hora depois – bastante atrasadas na opinião de Sara, que teve de apertar o corselete sozinha –, duas para arrumar-lhe os cabelos e duas para ajeitarem a cama, buscando discretamente àquilo que Cassis previu que procurariam.

Quando enfim estava aprumada em seu vestido vermelho preferido e com os cachos devidamente penteados e arrumados, Sara deixa seus aposentos em direção ao salão de banquetes, onde, para sua surpresa, pôde encontrar Cassis sentado à direita de seu pai, no assento que antes pertencia a Richard.

― O que faz aqui? – Torce a boca.

― Apreciando meu café da manhã. – Balança a taça de vitae que segurava, para que o objeto fosse percebido.

― Não é incrível, querida? – indaga o rei. – Cassis nos dará o prazer de sua companhia em todas as refeições, mesmo que não compartilhe da mesma comida que nós.

O salão de banquetes era o lugar preferido de Arthur, pois ali poderia reunir sua família para adoráveis momentos de confraternização e comunhão. O local era espaçoso e a mesa enorme, mas para Sara, tantas cadeiras vazias lhe trazia um terrível sentimento de solidão.

A princesa se assenta ao lado esquerdo do pai, com a postura mais perfeita que seu corselete lhe permitia ter, estranhando grandemente toda aquela situação de familiaridade e bom grado que o rei transmitia, e encarando o vampiro com desconfiança. Cassis, porém, não lhe oferece nada além de um semblante inexpressivo, deixando-a ainda mais desconfiada sobre o que estavam falando.

― O que está se passando nessa sua cabecinha sinistra? – questiona Sara em pensamento. – Será que contou sobre a noite de ontem?

― E então? O que me conta de novo, Cassis? – pergunta o rei já o chamando com intimidade, sem os pronomes de tratamento. – Como foi sua primeira noite no castelo?

― Bastante agradável. – Esboça um leve sorriso, como se confirmasse alguma coisa.

― Que ótimo! Esplêndido – empolga-se de repente, deixando Sara ainda mais arredia com aquela conversa em códigos.

― Do que estão falando? – pergunta, franzindo o cenho.

― Seu pai, sua majestade real, quer saber se a aliança foi concluída.

― Fale mais claramente, querido marido – pede sarcástica, apanhando um pedaço do pão à sua frente ao se dar conta que Margarida, a chefe das copeiras, não estava ali para servi-la –, de forma clara e objetiva.

― Ele quer saber se o casamento foi consumado – responde no mesmo tom –, se dormimos juntos, se a tornei minha mulher da maneira mais impura e carnal que possa imaginar – esbraveja –, fui claro o suficiente?

Sara engasga com aquelas palavras, sentindo a bolota de pão travar sua garganta e sua respiração. Se falar sobre sua pureza já lhe era um tabu, falar sobre sexo utilizando àqueles termos e, ainda por cima, diante de seu pai, poderia ser igualado ao fim do mundo e dos pudores.

― Não se preocupe – continua o vampiro, tentando retomar o controle de suas emoções –, já disse ao rei que tudo correu bem.

O rosto de Sara adquire uma tonalidade avermelhada, porém, apesar de bater freneticamente no peito tentando desengasgar, Cassis não fazia menção de ajudá-la. Seus olhos começam a lacrimejar e, no auge de seu desespero, a princesa toma a taça do pai, mas ao perceber que já estava vazia, atira-se sobre a mesa atrás da única taça cheia daquele passadio.

Antes que o vampiro pudesse dizer algo, Sara rouba a taça de sua mão e entorna seu conteúdo goela abaixo. O engasgo passa imediatamente, entretanto, ao se dar conta do gosto de ferro que preenchia sua boca, a humana cospe o restante do líquido no rosto do não-vivo, enojada com o que havia tomado.

― É sangue! – grita histérica, com o gosto férreo marcado em sua língua e sentindo uma gota escorrer por seu lábio inferior.

― O que você fez? Desperdiçou meu vitae – grita de volta, limpando o rosto com as mãos ao mesmo tempo em que se colocava de pé.

― Não acredito. – Continua a gritar, retirando-se de cima da mesa e sentindo os olhos arderem de desgosto. – Como pôde me deixar beber essa coisa asquerosa?

― O que mais eu beberia, sua maluca?

Sara se retira rapidamente, enojada, histérica, sem se alimentar e sabendo que parte do líquido viscoso ainda estava em seu estômago. Cassis fecha os punhos com força, possesso com o talento que aquela humana tinha de irritá-lo. Como poderia manter seu autocontrole perto de um ser vivo como ela? Mais dia ou menos dia, acabaria a estrangulando.

Quando finalmente cai em si, o vampiro abre os punhos tentando demonstrar relaxamento e se desculpa com o rei, que não parecia surpreso com a cena que acabara de assistir. Arthur sabia que um casamento por negócios poderia render certas brigas até que o afeto finalmente começasse a ser construído entre o casal, mas questionava-se se o amor poderia ser capaz de brotar numa união bizarra como aquela.

― Cassis – chama, depois de um longo silêncio, evitando olhá-lo nos olhos enquanto as mãos esfarelavam o restante de seu pão –, promete que cuidará de Sara e a fará feliz, apesar de tudo?

― Apesar de tudo? – questiona, também observando o trabalho que as mãos reais faziam para destruir o alimento.

― Apesar de sua irreverência, de seu lado mimado e, às vezes, infantil. Sara tem muitas coisas com que lidar e acaba não sabendo como extravasar seus sentimentos, passando aos outros uma impressão bastante ruim. Promete que cuidará dela, apesar de tudo? – insiste, parando de mover as mãos e finalmente o olhando nos olhos.

― Sim, majestade, eu prometo! – diz o vampiro, cruzando os punhos em frente ao peito e curvando-se levemente para enfatizar sua promessa, pois era como um membro do clã vampiro que ele se prenunciava.

― Obrigado, fico mais tranquilo assim.

O vampiro sentia que o rei escondia algo e, por um mísero segundo, se arrependeu de tal promessa. Ele nem sequer sabia como se aproximar da mulher, como poderia cuidar dela e fazê-la feliz? Todavia, agora era tarde para qualquer lamento, vampiros possuíam memórias privilegiadas e, quando se tratava de sua própria palavra, a honravam até sua última noite de não-vida.

Despedindo-se com os devidos cumprimentos e reverências, Cassis se retira a fim de equipar-se para sua primeira patrulha de reconhecimento, onde faria seu primeiro contato com as três fortalezas do reino, uma importante tarefa para quem agora era o príncipe herdeiro de Alestia.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado. :)



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