Um pequeno problema escrita por Celso Innocente


Capítulo 11
Tristes marcas do tempo


Notas iniciais do capítulo

Desculpe a demora em continuar esta história.
Problemas de saúde na família me fez atrasar.



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Somente quando o desenho animado deu vaga para reclames comerciais, foi que uma propaganda bonita, de um pai correndo em câmera lenta por um lindo gramado em perseguição ao filho pequeno, é que o fez lembrar de algo. Virou-se no sofá e perguntou:

            — Quando foi que o pai morreu?

            Ela fez um cálculo rápido de memória e respondeu:

            — Está fazendo dezessete anos.

            — Por que ele morreu? — Perguntou com a voz embargada.

            — Ele ficou muito doente, passou por uma cirurgia na cabeça que não resolveu nada.

            — Por quê?

            — Na verdade, a cirurgia só resolveu para descobrir o que realmente era sua grave doença.

            — O que é grave doença?

            — Do dia em que descobrimos seu câncer até a sua morte passaram-se apenas seis meses.

            — O que é câncer? — Especulou. Depois balançou os ombros. — Desculpe. De onde eu venho não sei muito.

            — Câncer é uma doença cruel que não tem cura. A maioria das pessoas que sofrem dela morre.

            — O Lucas também teve câncer?

            — Não! O problema dele foi o coração.

            — Quanto tempo faz que ele morreu?

            — Um ano antes de seu pai.

            Dona Maria fez uma pausa e continuou:

            — As coisas por aqui tem sido ruins por um bom tempo. Agora estão tudo muito bem! E com você de presente pra nós, ficarão melhores ainda.

            — Por que as coisas estiveram ruins?

            — O primeiro a morrer foi o filho de sua irmã…

            — Quem!? — Interrompeu o menino, sentando-se no sofá.

            — Michael, filho de sua irmã. Ele morreu com menos de um ano de idade.

            — Luciana não me falou dele! Só me falou de meu pai e meu irmão.

            — Só!?

            — Quem mais? Além desse menininho?

            — Luciana não lhe falou nada de Laura?

            O menino se apavorou. As lágrimas brotaram e a forte emoção tomou conta de seu ser.

            — A senhora não tá dizendo que ela…

            Sua mãe também estava deveras emocionada e com lágrimas tentou explicar:

            — O que aconteceu com ela é que, quando seu pai adoeceu ele sofreu sim, ficou o resto de seus dias de cama. Mas Laura cuidou muito bem demais dele. Ela o tirava pra dar-lhe banho, enquanto eu trocava toda a roupa da cama. Ela o trocava e o colocava de volta na cama. Às vezes não passava nem cinco minutos e ele sujava toda a cama de novo. Ela podia até ficar um pouco nervosa. Jamais perto dele. Simplesmente ia até ele, tornava o tirar da cama, dava-lhe novo banho e o trocava, enquanto eu também trocava novamente a cama. Depois ela lavava toda aquela roupa suja, pois com certeza no outro dia iria precisar delas. Seu pai pode ter sofrido com a doença, mas jamais ficou desamparado, principalmente por ela…

            — Quanto tempo faz?

            — Que ela também partiu? … Seis anos.

            — Por quê?

            — Depois que seu pai partiu, acho que pelo cansaço eu acabei adoecendo. Fiquei muito fraca. Com isso ela resolveu vir morar comigo, já que o marido dela só vinha em casa a cada quinze dias devido ao trabalho. Ela se dedicou a cuidar de mim.

            — Por que os outros não ajudavam? Eu não estava grande pra poder ajudar? Os outros irmãos…

            — Ela era a única que podia. Você adulto morava muito longe…

            — Que longe, mãe! — Protestou o pequeno. — A chácara é ali mesmo e tem dois carros na garagem!

            — Quando eu fiquei fraca devido o cansaço na partida de seu pai, vocês moravam em outra cidade, quase quinhentos quilômetros daqui.

            — Por quê? — Não conseguia compreender o menino.

            — Seu trabalho. Você trabalhava no estado de São Paulo inteiro. Tinha que morar longe.

            — E os outros?

— Seu irmão Luís também ainda mora longe. O Jonas, assim como o marido de Laura, morava aqui na cidade, mas nunca estava aqui, pois sempre viajava a trabalho. O Renato era o único que podia aparecer sempre, mas foi ela quem se dedicou de corpo e alma em me amparar. Acho que ela se dedicou tanto ao seu pai e depois a mim que acabou se esquecendo de cuidar dela mesma.

            — O que aconteceu a ela? — As lágrimas molhavam todo seu rosto infantil. E não eram lágrimas de um menino manhoso.

            — No dia em que sentou reclamando de dor no peito, foi levada urgente ao hospital pelo próprio filho. Quando lá chegou já não podiam fazer mais nada.

            — Por que eu grande não mudei de onde morava pra vir ajudar a cuidar da senhora?

            — Não tinha como, filhinho! — Riu a mulher entre as lágrimas. — Você, casado com três filhos pequenos, tinha seu trabalho e não podia abandoná-lo.

            — Ela me adorava… sabia mãe?

            — Claro! Sua maior cúmplice.

            — A senhora se lembra do dia em que estávamos no quarto e a mãe de Regina vizinha, começou a gritar que moleques safados tinham enchido o quarto dela com cascas de cana?

            — Sei.

            — A senhora bateu bastante de cinta em Laura…

            — Bati! Foi preciso. Arte grave.

            — Por que não bateu em mim também?

            — Ora! O castigo é pra quem faz a arte!

            — Como a senhora sabia que foi ela?

            — Eu sabia!

            — Fui eu quem jogou as cascas de cana pela janela da Regina.

            — O quê!?

            — Eu fiz a arte… a Laura apanhou. — Regis dera um sorriso peralta. — Enquanto ela apanhava, fiquei muito assustado, com o coração batendo a mil. Sabia que depois dela seria eu. Tive uma surpresa. Ela apanhou muito, depois a senhora saiu do quarto…

            — É que… — ela se perdeu. — Você era tão bom… prestativo! Não era de fazer artes!

            — Eu também era criança, mãe! — O menino riu entre as lágrimas, sabendo que não apanharia agora, depois de séculos. — Ainda sou!

            — Você não era arteiro!

            — Meu capetinha pode me cutucar com seu garfo… — balançou os ombros. — A professora é quem fala assim. Lembra quando eu taquei um tijolo na cabeça do Lucas?

            — Foi arte!

            — Eu sei que foi! E machucou! A senhora e o pai correram a socorrer ele e eu fiquei apavorado no canto, sabendo e esperando que assim que ele tivesse sido socorrido, a varinha verde cantaria em minha bunda. Não apanhei.

            — Você merecia apanhar — concordou a mulher. — E precisava ter apanhado. Eu deixei para que seu pai fizesse isso, mas ele não o fez.

            — Papai nunca bateu nas crianças, mãe! A senhora sabe disso! — Pensou um pouco. — Só uma vez que ele deu um tapa em minha cara. Nós ainda morava no sítio e eu era pequeno…

— Morávamos no sítio! — Corrigiu a mulher.

— Tá! Eu nem senti no rosto aquele tapa de leve que papai me deu, mas continua doendo no peito até hoje.

            Uma vez as lágrimas se esgotando, a face tende a voltar ao normal. Ou quase isso.

            — E por que ele te bateu? — Quis saber a mãe.

            — Nem sei! Não me lembro! Só sei que ele estava no meio dos peões pesando o algodão. Acho que meu diabinho me fez falar alguma malcriação para um dos peões.

            Calaram-se por poucos segundos.

            — Onde andam os meus amigos? — Perguntou o menino. — Aqueles que brincavam comigo aqui em casa!

            — Cresceram! — Riu a mulher. — Casaram! Mudaram! Nenhum deles mora mais aqui por perto.

            — Nem a Regina?

            — Às vezes ela aparece! A casa continua sendo deles. Só que ela mora em outra cidade. Naquele tempo ela era sua principal amiga.

            — Naquele tempo não, mãe! — Protestou o menino. — Há dois dias a gente brincou junto ali no mandiocal que nem existe mais! Lembra da casinha que eu fazia por baixo das plantas?

            — O que vocês dois fazia tanto tempo sozinhos lá? — Desconfiou a mulher.

            — Nem vem, mãe! Pensa que eu não sabia que a senhora vivia nos vigiando?! — Balançou a cabeça em reprovação. — Adulto só pensa bobagens. A gente só queria brincar.

            — Você tem razão. Acho que os adultos se esquecem de que as crianças são bichinhos inocentes.

            — Inocentes sim! Bobas não!

            Calou-se por mais um tempo depois criou coragem:

            — Acho que já sei por que vim parar aqui.

            — Verdade!? — Animou-se a mulher. — E por que foi?

            — Lembra-se da minha briga com o Fabinho?

            — Qual briga? Vocês só viviam brigando! Eram dois amigos e dois brigões! Pareciam como num filme que passa na televisão, dois inimigos inseparáveis.

            — Nossos capetinhas eram safados — riu o pequeno.

            — Acho que não eram os capetinhas que eram safados.

            — Eu estava em frente de casa sem camisa, brincando sozinho, ele veio lá da sua casa me ofendendo, dizendo que sou mariquinha porque gosto de brincar com meninas. E daí que eu gosto de brincar com a Regina?! Gosto de brincar com os meninos também! A gente brinca todas as noites, não é mesmo mãe?

            — Todas as noites! Que saudade de seus gritos!

            A recordação pode trazer lembranças alegres, mas o menino estava triste.

            — Ele chegou me provocando e claro que avancei contra ele! Eu tinha que me defender! Ele acertou um murro em meu nariz que o sangue escorreu quente em meu peito… — as lágrimas voltaram sentidas. — Naquela hora, acho que criei força de um leão, avancei forte sobre ele, caindo nós dois no chão e eu por cima dele segurei firme em sua garganta e fechei o punho esfregando em seu nariz, ameaçando lhe dar o maior murro da vida dele, que o deixaria santo pro resto dos tempos. Ameacei, mas não fiz nada! O máximo que ele levou de eu, foi o sangue de meu nariz pingando na cara dele.

            — Já sei o que você vai falar, filho — emocionara-se a mulher, levantando-se de onde estava e sentando-se ao lado dele. — Não precisa…

            — Eu quero falar! Eu preciso! Tá aqui, mãe! — Apontou soluçando para o próprio peito. — A senhora apareceu lá no portão com a varinha de guanxuma nas mãos…

            — Já sei filho! Eu lhe bati bastante.

            — Quantas vezes eu merecia apanhar e não apanhei? Aquele dia eu não merecia, mãe!

            — Sei disso. Fica por conta das outras vezes que, como disse, você merecia.

            — Eu não aguentei aquela surra. Meu sangue já estava fervendo de raiva. Por isso que eu tomei a vara da senhora e ameacei bater na sua cara com ela.

            A mulher abraçou o menino, sentindo as lágrimas dele molhando suas vestes.

            — Está tudo bem, filho. Você não bateu em mim.

            — Acho que meu anjinho conseguiu derrotar meu diabinho…

            — Foi! — Ela tentava limpar as lágrimas do filho com ambas as mãos.

            — Devolvi a vara pra senhora. Lembra? Foi aí que eu apanhei bastante — ele ria junto com as lágrimas. E era um sorriso triste. — Apanhei nas pernas, na bunda, nas costas, no peito… até na cara, mamãe! Nunca tinha apanhado tanto. Por isso que não aguentei e meu xixi vazou pelas pernas.

            — Filho, esqueça isso. Faz tanto tempo!

            — Não faz tanto tempo — negou ele chorando inconsolável. — Foi esta semana. Ainda tenho as marcas.

            — Perdoe a mãe, tá! — Pediu ela se arrependida.

            — Eu só queria que a senhora soubesse que não foi culpa minha. Eu estava quieto brincando sozinho.

            — Eu sei!

            — As marcas da surra em meu corpo vão sair devagar. Mas as marcas em meu coração nunca vão sair. Se eu não pedisse perdão por esse pecado, que o Lucas disse que vou parar no inferno com o garfão do capeta…

            — Você nunca vai parar no inferno, por que você é e sempre foi um menino muito bom. Sempre me ajudou muito em casa… Sempre foi meu fiel companheiro… por isso que a gente, nem eu e nem seu pai, quisemos deixar você ser padre. Pra não ir embora pra sempre!

            — Padre, eu!? — Estranhou o pequeno.

            — É! — A confirmou. — Acho que aos nove anos de idade você ainda não teria dito que seria padre. Acho que isto veio depois. Posso lhe contar coisas que você ainda não vivenciou. Mas creio que não seja uma boa ideia.

            — Não posso ter me tornado padre, mãe! Eu me casei e tenho três filhos! Lembra?!

            — Nós não deixamos você ser padre! Dois redentoristas do seminário Santo Afonso, lá da Aparecida do Norte, vieram aqui pessoalmente buscar você.

            — Quando?

            — Você tinha doze anos de idade.   


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