Pokémon - Laço Eterno escrita por Benihime


Capítulo 13
Máscaras




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Cynthia franziu a testa enquanto lia seu diário de pesquisa, tentando reunir as anotações que fizera na noite anterior em um bloco coeso. Garchomp, que caminhava ao seu lado, estendeu um braço à sua frente a tempo de evitar que sua treinadora tropeçasse.

— Obrigada. — A loira sorriu apologeticamente. — Parece que ainda não aprendi minha lição, não é?

A pokemon tipo Dragão assentiu enfaticamente, lançando-lhe um olhar de desaprovação.

— Tudo bem, você venceu. — Cynthia declarou, bem humorada. — Já chega de pesquisa por enquanto.

Algumas gotas de chuva caíram, e Garchomp resmungou quando uma atingiu seu focinho. É claro, sendo parcialmente uma pokemon do tipo Solo, ela detestava água.

— É, eu sei, garota. — A campeã de Sinnoh suspirou, tão frustrada pelo mau tempo repentino quanto sua parceira. Cynthia tirou da bolsa uma pokebola, mas Garchomp balançou a cabeça em negativa. — Não discuta. Você sabe que vou ficar bem. Não precisa se preocupar.

Mais uma vez a pokemon tipo Dragão balançou a cabeça, lançando à sua treinadora um olhar que dizia com todas as letras que precisava, sim, se preocupar. Cynthia se conteve para não revirar os olhos. Por mais que Garchomp fosse o ás de seu time e muito mais do que sua melhor amiga, a teimosia daquela pokemon às vezes a deixava maluca.

— Que seja, então. — A loira deu de ombros. — Pode me criticar o quanto quiser, mas você claramente também não aprende nunca.

Garchomp estreitou os olhos para sua treinadora, que conteve uma gargalhada. Quem visse a dupla mortífera formada pelas duas em combate jamais adivinharia o quanto viviam discutindo e provocando uma a outra.

Como Cynthia já esperava, sua parceira super protetora enfim cedeu e permitiu que a colocasse de volta em sua pokebola. A campeã apressou o passo em direção a um centro pokemon não muito distante enquanto os pingos esparsos de chuva se transformavam em uma garoa constante. A meio caminho, um choro agudo vindo de um beco estreito lhe atraiu a atenção.

Dividida entre curiosidade e preocupação, a campeã espiou as sombras do beco, tentando encontrar a origem do som.

Algo se moveu em uma alcova entre as antigas pedras, rápido demais para que Cynthia tivesse certeza do que era. A loira avançou mais um passo cauteloso, sua mão esquerda mergulhando no bolso de seu sobretudo em busca da pokebola de Garchomp, agradecendo pelo fato de a cobertura parcial dos telhados naquele beco bloquear a garoa cada vez mais intensa.

Ela só o viu quando estavam a menos de cinco centímetros um do outro: recuado quase para fora do caminho, encolhido o máximo possível sobre si mesmo jazia um Flareon semiconsciente.

A Eeveelução do tipo Fogo ergueu a cabeça ao ouvir Cynthia se aproximar. Num gesto surpreendentemente rápido o Pokemon Chama se pôs de pé, rosnando ameaçadoramente.

— Calma, calma. — A loira disse o mais serenamente possível. — Não vou machucar você.

O pokemon rosnou mais uma vez, mostrando as presas. Seus caninos afiados estavam envoltos por pequenas labaredas, num ataque Presas de Fogo.

— Não se mexa. — Cynthia ordenou. — Você está ferido. Me deixe ajudá-lo.

Seu tom imperioso, como a loira já imaginava, fez o pokemon hesitar, deixando a cabeça pender para a direita enquanto a fitava com curiosidade. Controlando a vontade de girar nos calcanhares e sair correndo, Cynthia estendeu uma das mãos para o pokemon ferido.

O súbito ribombar de um trovão pegou ambos de surpresa, fazendo a campeã pular de susto. A Eeveelução tipo Fogo encarou o movimento súbito como uma ameaça e recuou, tomando impulso para saltar e usar Presas de Fogo mais uma vez. A luz das chamas se refletia por baixo no rosto do pokemon e em seus olhos escuros, dando-lhe um ar de loucura quase demoníaca.

A campeã de Sinnoh ficou paralisada. Já havia visto um olhar como aquele, muitos anos antes. Subitamente Cynthia se sentiu novamente uma garotinha, sozinha no caminho que levava para fora da cidade Celestic, correndo de uma besta que parecia saída de seus piores pesadelos ...

— Rápido, Arya, Aqua Míssil!

Um borrão azul envolto em espirais de água voou pelos ares e se chocou contra o Flareon, lançando-o contra as pedras da parede. A queda ergueu uma nuvem de poeira.

— Vento Gelado, por favor. — Uma voz feminina ordenou. — Disperse essa poeira.

Uma rajada de vento glacial soprou, transformando a poeira dos antigos tijolos em uma chuva de minúsculos cristais de gelo cor de cobre. Cynthia se virou para a mulher que havia falado. Se a voz e aquela técnica de combate singular haviam deixado qualquer dúvida, desapareceram assim que a campeã viu aqueles olhos cor de esmeralda.

— Cynthia! — Calista exclamou, apressando-se ao seu encontro. — Você está bem? Não se machucou, não é?

A campeã de Sinnoh não conseguiu reunir presença de espírito o bastante para responder, então simplesmente negou com a cabeça.

— Tem certeza? Aquele ataque Presa de Fogo foi bem forte. Aposto que esse Flareon tem a habilidade Combustão.

— Até parece, Cal. — Cynthia rebateu quase por hábito, numa voz sem expressão que mal reconheceu como sua. — Você sabe muito bem que a habilidade padrão de um Flareon é Fogo Luminoso.

— E a habilidade oculta pode ser Tenacidade, que aumenta o poder de ataque quando o pokemon é ferido. — A morena rebateu. — Explicaria por que aquele ataque Presa de Fogo foi tão poderoso.

Como sempre, a forma petulante da morena de rebater suas correções fez Cynthia relaxar. Era familiar, esperado. Aquela competição brincalhona entre elas era um dos motivos pelos quais valorizava aquela amizade.

— Talvez. — Foi a  resposta. — Mas seria preciso um ferimento e tanto para chegar a tal ponto.

— É melhor darmos uma olhada, então, não acha?

— E o que, exatamente, você acha que eu estava tentando fazer, Cal?

— "Tentando" sendo aí a palavra chave. — A jovem kantoniana zombou. — Ouvi falar que você já domou um Dragonite, mas pokemon tipo Fogo definitivamente não são o seu forte.

Cynthia nem se deu ao trabalho de responder, ainda abalada tanto pela lembrança quanto pelo fato de a afirmação brincalhona de Calista estar tão próxima da verdade.

A jovem kantoniana assumiu a situação, se aproximando do Flareon caído com passos lentos. O pokemon ergueu a cabeça e rosnou, embora obviamente fraco demais para qualquer manifestação maior de hostilidade.

— Ei, calma. — Calista disse baixinho,  sua voz absolutamente gentil. — Você está ferido. Tem que parar de lutar agora e nos deixar ajudar, está bem?

A irmã de Ash estendeu uma das mãos para o pokemon caído, mas Flareon tentou mordê-la. Cynthia rapidamente pegou a jovem pelo pulso, cobrindo-lhe a mão com a sua e puxando-a para trás antes que se ferisse.

— Obrigada. — A morena disse,  sorrindo em agradecimento ao gesto de sua amiga. — Parece que você encontrou um novo amigo bem teimoso, huh?

— Tanto quanto você. Se é que isso é possível.

— Engraçadinha. — A irmã de Ash bufou ironicamente. — Não podemos deixar o pobrezinho aqui. Essa chuva ...

— Sim, eu sei.

Subitamente um pokemon azul saltou nos braços de Calista. Era pequeno e parecia um leão marinho, porém tinha longas antenas que lembravam bolas de algodão e parecia estar usando um vestido de babados, do qual saía uma graciosa cauda com as extremidades brancas.

— Arya! — A Rainha de Kalos exclamou. — Caramba, garota, você me assustou!

A pokemon soltou uma espécie de trinado, esticando-se para esfregar a bochecha contra a de sua treinadora em um gesto afetuoso.

— Certo, certo. — A jovem suspirou, embora os cantos de seus lábios tenham se erguido em um sorriso. — Também amo você. Agora, acha que pode me ajudar aqui? Que tal esfriarmos a cabeça do nosso novo amigo?

A pokemon assentiu e começou a cantar. Cynthia não pôde deixar de se surpreender com aquela voz. Era límpida, evocativa, contagiante. Fez com que se lembrasse da região de Unova, de quando tivera o prazer de ouvir Meloetta cantar.

A música surtiu efeito quase imediatamente, fazendo o Flareon relaxar até se tornar nada mais que uma bola de pelos sonolenta. Disfarçando o nervosismo, Cynthia o tomou nos braços. As duas mulheres começaram a andar rápido na direção do Centro Pokemon, com o pokemon azul ainda aninhado no colo de Calista, cantarolando baixinho para si mesmo.

— Arya, huh? — Cynthia comentou. — Posso ver por que você escolheu esse nome.

— Na verdade, foi ideia do Ash. — A morena confessou. — Eu mesma fiquei surpresa na primeira vez que a ouvi cantar. Minha garota tem uma voz e tanto.

Arya sorriu, satisfeita com o elogio. As duas mulheres atingiram o ponto onde o beco se alargava novamente em uma rua asfaltada e Calista estendeu uma das mãos, impedindo Cynthia antes que a loira deixasse a cobertura parcial dos telhados. Surpresa, a campeã viu que, enquanto lidavam com o Flareon, a garoa aumentara para uma legítima tempestade sem que sequer percebesse.

— Não podemos simplesmente esperar que isso passe.

— E não precisamos. — A jovem kantoniana concordou com um sorriso malicioso. — Tenho uma ideia. Angel?

A Meloetta, empoleirada no ombro direito de Calista, se tornou visível. Cynthia não pôde deixar de sorrir, cativada pela beleza daquela pokemon. Angel se aproximou e tocou-lhe o rosto. Uma brisa morna soprou ao redor das duas mulheres, com força suficiente para soprar-lhes os cabelos para trás.

— Venha. — A irmã de Ash disse. — Vamos levar esse Flareon para o Centro Pokemon antes que ele piore. Angel pode manipular as correntes de ar e manter a maior parte da chuva longe de nós.

Angel riu, satisfeita, erguendo o queixo em um gesto cheio de si. As duas treinadoras trocaram um olhar divertido ante aquele gesto enquanto seguiam a passos rápidos para o centro pokemon no final da rua.

Assim que viu o Flareon inconsciente nos braços da campeã de Sinnoh, a Enfermeira Joy soltou uma exclamação ao mesmo tempo furiosa e indignada enquanto se apressava ao encontro de Calista.

— O que aconteceu dessa vez? — A enfermeira inquiriu.

— Muitos machucados, pelo que vi. — Calista respondeu, seu tom surpreendentemente eficiente e profissional. — Provavelmente veneno. E uma reação à agua da chuva.

Joy avançou e Cynthia passou o pokemon ainda inconsciente para os braços da enfermeira.

— Nunca para, não é? — A mulher de cabelos cor de rosa inquiriu baixinho, fitando Calista com tristeza. — Isso não vai parar.

— Ainda é cedo para desistir, Joy. — Calista disse suavemente. — Uma coisa de cada vez, certo? Por enquanto, acha que pode ajudar esse Flareon?

— Darei o meu melhor. — Foi a resposta. — E obrigada, Calista.

— Agradeça à minha amiga aqui. — A morena disse. — Foi ela quem o encontrou.

— Obrigada ... — Os olhos azuis da enfermeira se arregalaram em surpresa e admiração ao darem uma boa olhada em Cynthia. — Oh, mas você é...!

— Apenas Cynthia, por favor. — A loira respondeu simpaticamente. — No fim das contas, sou só uma treinadora.

A enfermeira de cabelos cor de rosa assentiu, lançando-lhes um breve sorriso antes de desaparecer a passos rápidos por um corredor lateral.

— Ainda bem que chegamos a tempo! — Calista exclamou, aliviada. — Flareon com certeza vai ficar bem, a Enfermeira Joy desse centro pokemon faz milagres.

— O que ela quis dizer com "nunca para"? — A loira inquiriu. — Pareceu quase uma acusação.

— Bem ... — A irmã de Ash se interrompeu subitamente ao notar o estado em que sua amiga se encontrava, seus olhos se arregalando de preocupação. — Caramba, Cynthia, você está tremendo!

— Huh?! Oh, isso? É culpa do vento. Já vai passar. — A campeã respondeu casualmente. — Não tente mudar de assunto, Cal.

— Se esse é o problema ... — Calista disse com um sorriso maroto. — Venha comigo, vamos nos aquecer antes que peguemos um resfriado.

Cinco minutos depois as duas amigas estavam na cafeteria do centro pokemon, ambas com canecas gigantes de chocolate quente nas mãos.

— E então, se sentindo melhor? — A morena inquiriu.

— Muito. — Cynthia assentiu, tomando um pequeno gole de chocolate quente. — Isso era exatamente do que eu precisava.

— Que ótimo.

Alguma coisa naquele olhar e no tom frio daquelas duas palavras não soou certo. Foi o que alertou Cynthia.

— Cal ... — A loira suspirou, balançando a cabeça em um gesto de repreensão. — Se ainda está zangada pelo que eu disse da última vez ...

— Não estou. — Calista interrompeu gentilmente. — Na verdade, precisamos mesmo conversar sobre isso. Eu estava fora de mim naquela noite. Você perguntou o que a enfermeira Joy quis dizer ... Bem ... Não é a primeira vez que resgato um pokemon ferido. Tem esses garotos, Troy e Dylan ... Uma dupla de criadores pokemon. Eles não valem nada. Já foram denunciados algumas vezes, mas a família dos dois é bem poderosa e conseguem se livrar das acusações. Na semana passada encontrei um Azurill. Era só um bebê e ... E não sobreviveu. Ele morreu nos meus braços. Nem consegui trazê-lo para cá.

— Espere ... Então naquela noite, quando brigamos por eu tê-la chamado de intratável ...?

— Sim, foi quando aconteceu.

— Caramba, Cal! — Cynthia exclamou, horrorizada. — Podia ter me contado, sabia?

— Para que? — Calista desafiou. — O que você faria, Cynthia?

— Eu não sei. — A campeã admitiu. — Mas eu teria pensado em um jeito de ajudar você. Qualquer que fosse.

— Obrigada. — A irmã de Ash relaxou um pouco, tomando um longo gole de seu chocolate quente. — E me desculpe por ter descontado em você naquela noite.

— Não se desculpe, Cal. Eu entendo.

— Por que mesmo eu odiava você? — Apesar das palavras ácidas, o tom de Calista foi afetuoso. — Você é uma amiga muito melhor do que eu mereço, sabia?

— Idem, sua cabeça de pedra.

— E por falar nisso ... O que aconteceu lá no beco? Quando o Flareon atacou, você ficou paralisada. Nunca a vi reagir assim, nem mesmo contra Darkrai.

Cynthia hesitou. Sabia que Calista esperava que risse e negasse aquela declaração. Também sabia que, se o fizesse, seria uma grande mentira, mas não tinha certeza se conseguiria confiar em alguém - nem mesmo naquela cabeça de pedra maluca - o bastante para contar toda a verdade. No fim, a campeã engoliu uma onda de ódio por si mesma e decidiu ir em frente com a mentira.

— Fui pega de surpresa, só isso. — Declarou, se esforçando para manter um tom casual. — Tudo aconteceu muito rápido, não tive tempo de reagir.

Aqueles olhos verdes a encararam com uma expressão penetrante, e por um breve momento Cynthia teve a sensação de que podiam enxergar sua alma.

— Tem certeza? — Calista inquiriu por fim, após alguns segundos de silêncio.

— É claro que tenho. — A loira forçou um sorriso. — Vamos, Cal, por acaso já menti para você?

— Snowpoint.

— Já discutimos esse assunto, Calista. Aquilo não foi uma mentira, foi uma omissão temporária. Eu sempre planejei lhe contar.

— Pode até ser, mas você está mentindo agora. — A morena afirmou rispidamente. — Eu vi sua expressão, Cynthia. Você paralisou de pavor, não de surpresa. Não tente me enganar, campeã, porque não vai conseguir. Eu já a conheço bem demais.

Cynthia cerrou os punhos sobre seu colo, tentando se obrigar a manter a boca fechada. Era fácil conversar com Calista sem medir as próprias palavras. A espontaneidade vinha sem esforço quando estavam juntas, assim como a confiança. Era como se conhecesse aquela mulher desde sempre, como se ela fosse uma parte de si mesma.

— Todos tem segredos, Cal. — A campeã declarou baixinho. — Só isso.

— Então diga que não quer falar sobre isso. — Calista rebateu. — Prefiro que seja honesta. Se somos amigas ...

É claro que somos amigas. — Cynthia declarou, com um pouco mais de veemência do que pretendia. — Não acredito que esteja questionando isso, Calista!

— Tem razão, não estou. — A irmã de Ash cedeu, seu tom agora novamente gentil. — Você se lembra quando torci meu tornozelo, na noite antes do torneio em Snowpoint?

— É claro. Você mal conseguia andar, e mesmo assim insistia em dizer que estava tudo bem.

— Sim, e você me disse "Pare de ser teimosa e me deixe ajudar". — Calista abriu um leve sorriso ante aquela lembrança. — O mesmo vale agora. Não posso ajudar se você não falar comigo, Cynth.

Cynthia sorriu, mesmo a contragosto. Calista chamando-a pelo apelido a aquecera muito mais do o chocolate quente jamais seria capaz. De uma forma estranha, apesar de toda a implicância e discussões, aquela mulher maluca havia se tornado uma grande amiga. Talvez a melhor que jamais tivera.

— Acha que consegue guardar um segredo, Cal? — A campeã inquiriu por fim, encarando sua xícara de chocolate quente, sem coragem de olhar para a irmã de Ash.

— É claro. — Calista garantiu. — Não confia em mim, campeã?

— Confio. É claro que sim. — Cynthia respondeu de imediato. — Talvez mais do que deveria.

— Então qual é o problema? Tem medo de me contar?

— De certa forma. É ... Complicado, Cal. — Cynthia soltou um longo suspiro, um gesto de rendição, e finalmente ergueu o rosto para olhar Calista nos olhos. — Sim, eu fiquei com medo. Sempre tive medo de fogo, desde que consigo me lembrar. É ridículo, na verdade. Humilhante.

— Eu não acho. — Calista respondeu de imediato, uma de suas mãos descansando no braço da campeã de Sinnoh em um gesto de apoio. — Ter medo não é motivo de vergonha, Cynthia. O medo só a diminui quando você não o enfrenta. Sucumbir a ele é humilhante, conviver com o medo só mostra o quanto você é forte.

— Obrigada. — Por mais sutil que fosse, Calista notou a forma como a expressão de Cynthia se iluminou de pura gratidão. — Isso ... Era exatamente o que eu precisava ouvir.

— É para isso que servem as amigas, sua bobona.

— Tem razão. — Foi a resposta. — Mas somente as melhores.

— Chega desse assunto. — Calista declarou, sorrindo. — Se quiser me contar a história toda, ficarei feliz em ouvir. Se não quiser ... Por mim tudo bem, também. A escolha é toda sua.

Cynthia considerou encerrar o assunto por ali, mas decidiu que Calista merecia mais do que uma meia verdade.

— Não, eu quero contar. Você merece saber, ainda mais porque isso envolve uma promessa quebrada.

— Que promessa?

— Antes de você deixar o hospital, prometemos nunca mais mentir uma para a outra. Você se lembra disso?

— Sim, eu me lembro. Fizemos essa promessa porque concordamos que mentir foi o que nos afastou, para começo de conversa.

— Exatamente. E, depois, quando falamos sobre nossas famílias, eu quebrei essa promessa.

— Espere um pouco. — Calista interrompeu, seu tom muito mais gentil do que Cynthia esperava. — Sinto que essa vai ser uma conversa bem complicada. É melhor subirmos para o meu quarto.

A campeã meramente assentiu e permitiu que a jovem a guiasse. As duas acabaram sozinhas no quarto de Calista, sentadas na cama de frente uma para a outra.

— E então? — A irmã de Ash inquiriu gentilmente — O que pode ser assim tão ruim a ponto de você achar que não pode me contar?

Cynthia respirou fundo para tomar coragem. Aquele assunto era algo sobre o qual jamais falava, um tabu até mesmo entre a campeã e sua família. Mas Calista fizera por merecer a verdade, e Cynthia sabia que era o mínimo que devia àquela mulher. 

— A verdade é que ... Meus pais foram assassinados quando eu tinha sete anos. Só me lembro de ... Fragmentos. Pedaços borrados e indistintos de memória. — A loira suspirou pesadamente, reunindo coragem para continuar falando. — Fomos atacados por um pokemon do tipo Fogo naquela noite. Papai o atrasou e de nos deu tempo de voltar para casa. Minha mãe ... Ela me mandou fugir, correr o máximo que eu pudesse. Mamãe era uma treinadora forte, mas não foi páreo para a fera. Toshi, Liz e eu não teríamos conseguido fugir se não fosse por Garchomp. Mesmo ainda sendo uma Gible na época, ela usou Tumba de Areia para afastar o inimigo e nos manteve em segurança. Graças a ela conseguimos chegar até as ruínas. Mas a besta nos seguiu ... — A campeã hesitou por mais um longo segundo, então afastou a franja que sempre cobria o lado esquerdo de seu rosto, prendendo as mechas atrás da orelha. Calista não pôde deixar de notar o quanto as mãos de sua amiga tremiam. — Tentei proteger meus irmãos e ele fez isso comigo. A dor e a perda de sangue me fizeram desmaiar. Acordei uma semana depois, no hospital em Veilstone. Minha avó ... Só sobrevivemos graças a ela. Se vovó não tivesse nos encontrado a tempo ... Não quero nem pensar no que teria acontecido.

O "isso" a que Cynthia se referia era uma cicatriz. Era a mesma da qual Calista vira um relance na noite dos fogos de artifício, mas a irmã de Ash jamais poderia ter imaginado que fosse algo tão sério. Longa e delgada, a cicatriz errava o olho da campeã por pouco menos de um centímetro e se estendia, vermelha e denteada, até o maxilar.

— Então foi isso que aconteceu com você. — A jovem kantoniana declarou suavemente, dividida entre horror e admiração. — Eu vinha me perguntando desde a noite dos fogos, mas nunca imaginei ...

— Espere. — A campeã interrompeu, lívida de surpresa. — Você sabia e não me perguntou nada a respeito?

— Claro que não. Imaginei que você tinha um bom motivo para não querer falar sobre isso e que me contaria na hora certa, se achasse necessário. Que tipo de amiga eu seria se tentasse forçá-la?

— Obrigada, Cal. — A loira lhe dirigiu um sorriso afetuoso. — Isso significa muito mais para mim do que você imagina.

Calista hesitou por um longo momento, sentindo a mudança no ar. Lentamente, mas com certeza, Cynthia estava despindo a máscara de "campeã", revelando camadas e mais camadas de segredos atrás dos quais se escondia. Era mais do que justo que fizesse o mesmo.

— Logo que saí na minha jornada ... — A  jovem confessou baixinho. — Saí sozinha para  explorar e encontrei uma cabana abandonada. Um Mr. Mime morava lá. Fui atacada. Levei uma tremenda surra e quase morri. Provavelmente teria morrido se  IceFire não tivesse aparecido de última hora para me salvar. Desde então, morro de medo de Mr. Mime. Mesmo Mimey, o pokemon da minha mãe, que é provavelmente um dos caras mais legais que já existiu, me deixa paralisada de pavor. — A irmã de Ash esboçou um pequeno sorriso, estendendo uma das mãos e entrelaçando seus dedos aos da mulher à sua frente. — Como pode ver, temos mais em comum do que você imaginava.

— Com certeza. — Cynthia concordou — Por falar nisso ... Tem uma coisa que quero lhe perguntar já faz algum tempo.

— Claro. Pode me perguntar qualquer coisa.

— O que o S no seu nome significa? — A campeã inquiriu. — Sem querer ser intrometida, mas ... Vi por acaso nos registros quando me inscrevi como sua parceira naquela exibição: Calista S. Ketchum. 

— Ah, não. Nem pensar. — Calista declarou rispidamente, suas bochechas assumindo um tom vermelho vivo enquanto a jovem pulava de pé. — Vai ter que descobrir isso por si mesma, loira.

— Sarah. — Cynthia rebateu prontamente. — Suzanne? Samara?

A irmã de Ash a encarou por um longo momento, depois soltou um pesado suspiro, cheio de quantidades iguais de rendição e impaciência.

— Você não vai desistir, não é?

— Só se você quiser.

— Está bem, está bem. É justo. — A morena cedeu, voltando a sentar ao lado de Cynthia. — O S é de Selina. Meu nome completo é Calista Selina Ketchum. Satisfeita agora? E não faça essa cara!

— Que cara?

Apesar do tom inocente, os olhos da campeã brilhavam de pura malícia. Era óbvio, pela forma como o azul-acinzentado daquelas íris praticamente dançava, que Cynthia estava contendo o riso.

— A cara de quem está morrendo de vontade de rir de mim. — A irmã de Ash soltou um bufo de frustração. — Admita, Cynthia. Você está rindo por dentro.

A loira se limitou a um sorriso, o que naquela situação era o mesmo que admitir que Calista estava certa.

— Você é impossível, Cal. — Ela declarou. — Mas, se serve de consolo, meu nome do meio é Hellene.

— Hellene? Então, em Snowpoint ... ?

— Isso mesmo, usei meu segundo nome como disfarce. — A campeã confirmou. — Eu disse que não tinha mentido para você, mas você nunca me deixou explicar.

— Quer saber? Eu diria que esse nome combina muito bem com você, Hell ... Ene.

A brincadeira teve o efeito desejado: desanuviar o ambiente e levantar a pesada nuvem de melancolia trazida pelas confissões das duas treinadoras.

— Ah, qual é! — Cynthia exclamou, soltando uma sonora gargalhada ante aquele trocadilho horrível. — Pare com isso. Não tem graça, Cal.

— Então você não deveria estar rindo, sua boba. — A irmã de Ash rebateu.

— Não estou rindo do trocadilho, bobinha, e sim de você. — A loira rebateu. — Sua palhaça.

— Caramba, Cynthia, você é terrível!

As duas riram juntas mais uma vez, porém o intervalo de frivolidades foi breve.

— Que tal irmos ver como o Flareon está? — Calista sugeriu depois de alguns momentos de silêncio.

Cynthia mordeu leve o lábio inferior, hesitante. Calista viu uma expressão de medo passar por aqueles olhos cinzentos, sendo rapidamente suprimida enquanto a loira aceitava sua mão estendida e permitia que a jovem kantoniana a ajudasse a se pôr de pé.

— Obrigada, Cal.

O súbito agradecimento, assim como o tom caloroso de Cynthia, pegaram Calista de surpresa. A jovem mal soube o que dizer por um instante.

— Pelo que, exatamente? — Ela inquiriu enfim.

— Por não me julgar. — Foi a resposta, enquanto as duas deixavam o quarto juntas. — Todos me veem como a "campeã de Sinnoh", com tudo o que esse título representa. Você é a única que sempre me viu como realmente sou, mesmo que nem sempre isso seja algo bom.

— Como eu disse ... — Calista sorriu afetuosamente. — É para isso que servem as amigas.

Mal chegaram ao saguão principal, encontraram a enfermeira Joy, que abriu um sorriso caloroso ao ver as duas treinadoras.

— Ele está bem? — Calista inquiriu prontamente, seu tom quase ríspido de ansiedade.

— Ela. — A enfermeira corrigiu gentilmente. — E sim, ela está ótima. O bebê também não foi afetado.

— Bebê?! — Cynthia exclamou, horrorizada. — Aquela Flareon está grávida?

— Sim. De aproximadamente duas semanas, de acordo com o exame.

Calista ficou absolutamente pálida, sentindo todo o sangue lhe fugir do rosto por um momento para retornar logo em seguida, deixando-a vermelha de fúria. Cynthia a segurou pelo pulso, um gesto tanto de contenção quanto de apoio. Quando seus olhos se encontraram, a jovem viu naquelas íris azul-acinzentadas um reflexo do horror e da revolta que sentia, mas a única reação da campeã foi um discreto aceno negativo de cabeça.

Não. Aquele gesto dizia claramente. Não vale a pena.

A jovem kantoniana respirou fundo uma vez para controlar sua indignação e por fim assentiu. Só então Cynthia se voltou novamente para a enfermeira Joy.

— Podemos vê-la? — A campeã inquiriu.

— É claro. — Foi a resposta. — Venham comigo, por favor.

As duas seguiram a enfermeira por um corredor lateral. Calista notou que Cynthia ainda não a havia soltado e deslizou a mão de modo a que seus dedos se entrelaçassem aos da amiga mais uma vez. A mão da campeã tremia, o que era a única indicação do quão furiosa a loira estava, uma fúria que refletia a sua própria. Por mais estranho que fosse, a morena achou aquilo reconfortante. Era bom saber que alguém se sentia da mesma maneira.

O corredor levava a uma sala de recuperação nos fundos. Camas para todos os tipos de pokemon se alinhavam contra as paredes e aparelhos bipavam. A enfermeira Joy as guiou até uma cama perto da janela no outro extremo do cômodo, onde Flareon as recepcionou com um gritinho de felicidade.

— Oi, garota. — Calista sorriu, se aproximando para acariciar as longas orelhas laranjas da pokemon tipo Fogo, que suspirou alto de satisfação. — Se sentindo melhor?

A Flareon assentiu, então se pôs de pé e apoiou as patas dianteiras nos ombros de Calista, esticando-se para lamber-lhe carinhosamente a bochecha no que só podia ser considerado um gesto de desculpas.

— Está tudo bem, Flareon. — A morena garantiu suavemente, aninhando o rosto da pokemon nas mãos. — Você estava assustada e ferida, só isso. Sabemos que você não queria nos machucar.

Os olhos negros da pokemon se voltaram para Cynthia. Aquelas criaturas incríveis não conseguiam se expressar com palavras, mas a pergunta em sua expressão era mais do que clara.

— Isso é algo raro ... Mas dessa vez minha amiga aqui está certa. — A campeã declarou, trocando um breve sorriso jocoso com a jovem ao seu lado. — Nenhuma de nós está zangada com você.

Flareon sorriu e sua enorme cauda peluda, num tom suave de amarelo que contrastava com sua pelagem laranja, varreu os cobertores da cama como um espanador. Calista puxou a pokemon para mais perto, soltando uma risadinha ao vê-la se aninhar de boa vontade em seus braços.

A loira hesitou, mas se aproximou e estendeu uma das mãos para a Flareon. A pokemon, como se sentisse seu medo, ficou completamente parada, apenas encarando-a com aqueles enormes olhos amendoados. Cynthia correu os dedos por entre o pelo espesso no pescoço da pokemon, sentindo a leve vibração enquanto Flareon ronronava de felicidade.

— Parece que ela gosta de você. — Calista comentou.

— Parece que ela gosta de todo mundo. — Cynthia rebateu jocosamente.

O pelo da pokemon era espesso, quente e macio como veludo sob seus dedos. Surpreendendo a todos, Flareon pulou nos braços da campeã. Calista percebeu a tensão em cada músculo do corpo da loira e estendeu uma das mãos para apoia-la no ombro da amiga. Cynthia esboçou um sorriso para mostrar que estava bem, aninhando a Flareon em seus braços.

— Enfermeira Joy, em quanto tempo acha que Flareon poderá deixar o centro pokemon? — A loira inquiriu.

— É difícil dizer ... — Foi a resposta. — Algumas semanas, talvez ...

— Faria diferença se ela tivesse uma treinadora?

— É claro. Com uma treinadora que lhe desse os cuidados necessários, Flareon poderia deixar o centro pokemon amanhã mesmo. Hoje, até, dependendo de como reagir ao tratamento nas próximas horas.

— Ótimo. — A campeã sorriu. — O que me diz, Flareon, quer vir comigo?

A eeveelução tipo Fogo assentiu entusiasticamente, abrindo um enorme sorriso. Seu rabo peludo sacudia como um pêndulo.

— Parece que está decidido, então. — A enfermeira Joy declarou com uma risadinha. — Cuide bem dela.

— Pode deixar. Eu vou.

Flareon se recusou a sair dos braços de Cynthia depois disso, enterrando o rosto no ombro da loira, que acabou simplesmente cedendo à nova amiga e fazendo-lhe companhia até que a exaustão derrubou novamente a pokemon tipo Fogo, fazendo-a cair em um sono profundo.

— Tem certeza disso? — Calista inquiriu assim que se viram sozinhas, fora do centro pokemon.

— É claro. — Foi a resposta. — Não posso simplesmente deixá-la, posso?

— Concordo. Eu só pensei ... Bem ...

— Pensou que eu não conseguiria? — A loira rebateu. — Meu medo não me controla, Cal.

— Sei disso. Só pensei que não vai ser fácil para você. Talvez não seja o melhor para nenhuma das duas.

— Ficaremos bem. Eu prometo. — Cynthia declarou, sorrindo. — E, por falar nisso ... Destiny.

— Destiny?

— É como decidi chamar aquela Flareon. — A campeã explicou.

— Eu gostei. — Calista sorriu aprovadoramente. — Combina com ela. Ou talvez pudesse chama-la de Choice, já que ela escolheu você.

A piada idiota teve o efeito desejado: Cynthia riu. Calista se permitiu um sorriso satisfeito, admirando o modo como o rosto da campeã se iluminava quando ela ria.


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