Altivez Criativa escrita por Juarez Weiss


Capítulo 2
Interioridade


Notas iniciais do capítulo

Como disse anteriormente, essa história tá saindo num ritmo beeeem diferente... mas tá fluindo.

Obrigado por ler!



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Talvez sua solidão justificasse sua arrogância.

 

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Verde.

 

      Preparou a mão esquerda em acorde de Sol e posicionou a mão direita praticamente no fim do piano. Ficou assim durante alguns segundos, saboreando a euforia e a vontade avassaladoras que precediam qualquer peça... Sentiu os pêlos da nuca arrepiarem, e o arrepio foi lentamente descendo pelas costas, braços até chegar nos dedos. Então, não se conteve e começou a dedilhar.

 

Azul.

 

      O som ia e vinha, suave e sublime, contendo apenas harmonia e calma em suas notas, um amontoado de sons dispersos que eram colocados em marcha, formando uma música leve e agradável. Seus dedos se movimentavam com propriedade e certeza pelas teclas, como graciosa aranha que caminha com cuidado por sua teia, conhecedora do seu território, ameaçadora...

 

Vermelho.

 

      Afundou então sua mão esquerda nas teclas, e o piano urrou de dor. Um Lá menor surgiu grosseiro e imponente, prontamente substituído por um Fá e logo após por um Si gritante. A mão direita esmurrava as teclas a cada novo tom, fazendo o instrumento uivar de agonia a cada nota, sofredor. A música então se tornava agressiva, inquieta, e o pianista acompanhava o ritmo, movimentando seu corpo para frente e para trás, como que em transe pela força do som, onipresente. Deixava-se levar pela sensação, aquele sentimento de plenitude agoniante, que fazia seu coração querer saltar do peito e formar uma terceira mão para ajudar a tocar...

 

Preto.

 

Segurou então uma tecla com o dedo anelar, fazendo-a soar sozinha e solitária, esquecida, deixando a grande sala reverberar o som.

 

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Ficou algum tempo analisando sua situação, acalmando seu corpo da recente luta com o piano, fazendo-o aquietar-se e adequar-se à realidade mundana novamente.

 

Pela janela da sala viam-se alguns curiosos olhando para dentro da casa, alguns asoberbados, outros incrédulos, outros apenas procurando assunto para fofoca. Era comum nesta hora do dia... o começo da manhã enchia as ruas de transeuntes a caminho do trabalho ou apenas na caminhada matinal. Era uma cidade pacata e pacífica, onde nada de interessante acontecia, e quando ocorria algo era como fogo em palha: todos ficavam sabendo em menos de 24 horas, como uma doença contagiosa. A fofoca era o principal combustível das velhas senhoras, dos frentistas e dos cabeleireiros do município, que sempre tinham na ponta da língua todos os recentes acontecimentos das redondezas, falando com propriedade e exatidão cada mínimo detalhe, preenchendo as lacunas dos fatos com hipóteses pessoais que encaixavam perfeitamente para tornar a fofoca ainda melhor.

 

Foi desta maneira que o pianista ficou conhecido na sua cidade como alguém talentoso porém antipático. A fama devia-se a um episódio antigo que acontecera naquela mesma sala, há 3 anos atrás. Ele estava tocando, concentrado, um Nocturne de Chopin, como nunca havia tocado antes. Sentia claramente a presença do compositor ali, movimentando sua mão no ritmo certo, fazendo cada nota soar perfeita, quando de repente o prefeito da cidade, em pessoa, irrompeu pela porta com aquele seu sorriso carimbado no rosto, digno de atores internacionais, mencionando algo sobre um recital para o aniversário de 100 anos da cidade...

 

Interrompido, o artista viu-se furiosamente empurrando o prefeito para fora da casa, com o rosto vermelho de raiva, gritando. O governante assustou-se, mas não perdeu a compostura. Com frieza, disse-lhe que nunca seria famoso e que estava fadado a morrer naquele local, esquecido com seu talento. Virou as costas para o pianista, e naquele mesmo dia, a história de que tinha expulsado o prefeito a pontapés e safanões espalhou-se pelas ruas e lares, as famílias tomando profundo desprezo e antipatia por aquele artista louco que morava no começo da Rua das Lamentações.

 

Dois dias depois do incidente, o músico estava em casa, lendo um livro sobre animais de estimação. Já estava há algum tempo desejando um pequenino companheiro para se afeiçoar e cuidar, sentindo-se cada dia mais pronto a receber uma miúda vida para tomar cuidado e crescer junto, amar, dar-se e receber em troca... quando ouviu algo caindo na cozinha. Estava sozinho e estranhou a movimentação, mas não teve medo. Chegou no recinto, acendeu a luz e deparou-se com um rapaz alto, de cabelos loiros cacheados que usava uma máscara preta cobrindo todo o rosto, deixando apenas dois olhos castanho-claros à mostra. Ficaram parados durante alguns segundos, então o desconhecido fez um movimento repentino e avançou na direção do pianista.

 

O anfitrião nem teve tempo de reagir, apenas viu uma faca brilhante aproximar-se do seu rosto, uma dor alucinante nos olhos e tudo ficar preto.

 

Uma semana após, sentiu que acordava assustado. Ergueu a cabeça, levantou as pálpebras e nada viu. E nunca mais veria.

 

Foi com a cegueira que tornou-se fechado, frio e arrogante.

 


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