Altivez Criativa escrita por Juarez Weiss
Notas iniciais do capítulo
Como disse anteriormente, essa história tá saindo num ritmo beeeem diferente... mas tá fluindo.
Obrigado por ler!
Talvez sua solidão justificasse sua arrogância.
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Verde.
Preparou a mão esquerda em acorde de Sol e posicionou a mão direita praticamente no fim do piano. Ficou assim durante alguns segundos, saboreando a euforia e a vontade avassaladoras que precediam qualquer peça... Sentiu os pêlos da nuca arrepiarem, e o arrepio foi lentamente descendo pelas costas, braços até chegar nos dedos. Então, não se conteve e começou a dedilhar.
Azul.
O som ia e vinha, suave e sublime, contendo apenas harmonia e calma em suas notas, um amontoado de sons dispersos que eram colocados em marcha, formando uma música leve e agradável. Seus dedos se movimentavam com propriedade e certeza pelas teclas, como graciosa aranha que caminha com cuidado por sua teia, conhecedora do seu território, ameaçadora...
Vermelho.
Afundou então sua mão esquerda nas teclas, e o piano urrou de dor. Um Lá menor surgiu grosseiro e imponente, prontamente substituído por um Fá e logo após por um Si gritante. A mão direita esmurrava as teclas a cada novo tom, fazendo o instrumento uivar de agonia a cada nota, sofredor. A música então se tornava agressiva, inquieta, e o pianista acompanhava o ritmo, movimentando seu corpo para frente e para trás, como que em transe pela força do som, onipresente. Deixava-se levar pela sensação, aquele sentimento de plenitude agoniante, que fazia seu coração querer saltar do peito e formar uma terceira mão para ajudar a tocar...
Preto.
Segurou então uma tecla com o dedo anelar, fazendo-a soar sozinha e solitária, esquecida, deixando a grande sala reverberar o som.
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Ficou algum tempo analisando sua situação, acalmando seu corpo da recente luta com o piano, fazendo-o aquietar-se e adequar-se à realidade mundana novamente.
Pela janela da sala viam-se alguns curiosos olhando para dentro da casa, alguns asoberbados, outros incrédulos, outros apenas procurando assunto para fofoca. Era comum nesta hora do dia... o começo da manhã enchia as ruas de transeuntes a caminho do trabalho ou apenas na caminhada matinal. Era uma cidade pacata e pacífica, onde nada de interessante acontecia, e quando ocorria algo era como fogo em palha: todos ficavam sabendo em menos de 24 horas, como uma doença contagiosa. A fofoca era o principal combustível das velhas senhoras, dos frentistas e dos cabeleireiros do município, que sempre tinham na ponta da língua todos os recentes acontecimentos das redondezas, falando com propriedade e exatidão cada mínimo detalhe, preenchendo as lacunas dos fatos com hipóteses pessoais que encaixavam perfeitamente para tornar a fofoca ainda melhor.
Foi desta maneira que o pianista ficou conhecido na sua cidade como alguém talentoso porém antipático. A fama devia-se a um episódio antigo que acontecera naquela mesma sala, há 3 anos atrás. Ele estava tocando, concentrado, um Nocturne de Chopin, como nunca havia tocado antes. Sentia claramente a presença do compositor ali, movimentando sua mão no ritmo certo, fazendo cada nota soar perfeita, quando de repente o prefeito da cidade, em pessoa, irrompeu pela porta com aquele seu sorriso carimbado no rosto, digno de atores internacionais, mencionando algo sobre um recital para o aniversário de 100 anos da cidade...
Interrompido, o artista viu-se furiosamente empurrando o prefeito para fora da casa, com o rosto vermelho de raiva, gritando. O governante assustou-se, mas não perdeu a compostura. Com frieza, disse-lhe que nunca seria famoso e que estava fadado a morrer naquele local, esquecido com seu talento. Virou as costas para o pianista, e naquele mesmo dia, a história de que tinha expulsado o prefeito a pontapés e safanões espalhou-se pelas ruas e lares, as famílias tomando profundo desprezo e antipatia por aquele artista louco que morava no começo da Rua das Lamentações.
Dois dias depois do incidente, o músico estava em casa, lendo um livro sobre animais de estimação. Já estava há algum tempo desejando um pequenino companheiro para se afeiçoar e cuidar, sentindo-se cada dia mais pronto a receber uma miúda vida para tomar cuidado e crescer junto, amar, dar-se e receber em troca... quando ouviu algo caindo na cozinha. Estava sozinho e estranhou a movimentação, mas não teve medo. Chegou no recinto, acendeu a luz e deparou-se com um rapaz alto, de cabelos loiros cacheados que usava uma máscara preta cobrindo todo o rosto, deixando apenas dois olhos castanho-claros à mostra. Ficaram parados durante alguns segundos, então o desconhecido fez um movimento repentino e avançou na direção do pianista.
O anfitrião nem teve tempo de reagir, apenas viu uma faca brilhante aproximar-se do seu rosto, uma dor alucinante nos olhos e tudo ficar preto.
Uma semana após, sentiu que acordava assustado. Ergueu a cabeça, levantou as pálpebras e nada viu. E nunca mais veria.
Foi com a cegueira que tornou-se fechado, frio e arrogante.
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