Um dilúvio cairia a qualquer momento. Rajadas de vento rugiam nas ruas e relâmpagos clareavam o céu nublado. Mas nada que pudesse abalar o bom ânimo de Micha. Ela estava um pouco melhor após a conversa que tivera com Sowon, e agora, enquanto subia para a cobertura de Yoongi, sentia-se disposta a esperar o tempo que fosse para que o amor que sentia por ele, se tornasse recíproco. Ela o queria de volta. Mesmo que para isso tivesse que dormir abraçada a um porta-retrato de Emma Nishikawa. Micha não se importaria... não se o amor de sua vida estivesse dormindo do outro lado da cama. 

— Micha.. – Yoongi abriu a porta, o olhar descendo um pouco para ela. Micha sempre fora pequena, sua cabeça chegava apenas à extremidade inferior de seu peitoral, mas parecia que ela estava diminuindo ainda mais com o passar do tempo. Talvez tivesse essa impressão pelo fato de que Micha tinha perdido cinco quilos nos últimos dois meses. — O que está fazendo aqui? Pensei que nos encontraríamos amanhã. 

Micha esboçou um sorriso suave. — Eu não consegui esperar. Podemos conversar agora? 

— Agora? – Yoongi virou a cabeça sob seu ombro e olhou para algo atrás de si. Um farfalhar soou lá de dentro e Micha soube que ele não estava sozinho. Inquieta, ela ficou nas pontas dos pés para tentar descobrir quem era. Quando Yoongi voltou-se para frente novamente, Micha disfarçou, coçando uma sobrancelha.

— Tem algum compromisso hoje? 

— Ahm.. na verdade, sim.

Yoongi percebeu o nervosismo de Micha e a forma como suas sobrancelhas se arquearam. Houve uma mudança dentro dela. A calma extrema transformando-se numa bolha de ciúmes pronta para explodir.

— Quem está aí? – quis saber ela, empurrando a porta com a palma da mão. Assim que entrou na sala de estar, Micha deparou com alguém sentado no sofá. Sorrindo amarelo, ela ajeitou o cabelo para trás da orelha e o cumprimentou com um curvar de cabeça.

— Oi, Micha. – cumprimentou Jungkook, ficando em pé. Em seguida, andou até Yoongi e, com um olhar de cumplicidade, falou; alto o suficiente para que Micha escutasse: — Podemos começar a compor a minha música amanhã. Vou deixar vocês conversarem.

Jungkook andou até a porta e saiu. Pedindo licença a Micha, Yoongi o seguiu para fora.

— "Amanhã"? 

— Sim. Hoje é quarta-feira e o clima está horrível. Não acho que Yerin voltará ao bar no meio da semana, ainda mais com este tempo. – enquanto apertava o botão do elevador, Jungkook pensou se deveria aconselhar Yoongi. Concluindo que sim, deveria, ele disse: — Hyung, aproveite que Micha veio até você e resolva as coisas de uma vez. Você não a ama, não dê falsas esperanças a ela.

Uma breve melodia sinalizou a chegada do elevador. Jungkook entrou pelas portas abertas e jogou os olhos na direção oposta, incentivando-o.

— Eu não quero magoá-la. – admitiu Yoongi.

— Então não prolongue mais.

Quando as portas de aço se fecharam, Yoongi voltou vagarosamente para o seu apartamento, arrastando as pantufas no chão. Micha estava sentada no sofá, olhando-o ansiosamente. Os cabelos que antes eram dourados e compridos, agora estavam pretos e caiam sem volume até seus ombros magros. Embora tenha percebido o novo visual de Micha desde que abrira a porta, Yoongi não disse nada a respeito.

Sentando-se ao lado dela, Yoongi fechou os olhos, criando coragem para se abrir e dizer tudo o que guardava dentro do peito por tanto tempo. Mas assim que abriu a boca para falar, foi surpreendido pelos lábios gelados de Micha contra os seus. 

Tenso, Yoongi partiu o beijo e afastou-a com cuidado.

— O-o que está fazendo?

— Eu te amo.

Yoongi ficou paralisado por um momento. Não era a primeira vez que Micha tinha dito aquelas palavras para ele, mas desta vez, Yoongi sentiu um pesar diferente no coração. Era como se ele realmente a enxergasse, como se notasse o dano que tinha causado e o quão egoísta e errado fora ao usá-la para tentar esquecer Emma.

— Micha, eu... – Yoongi começou, mas não conseguiu continuar. Ele abaixou a cabeça, apertou os olhos e começou a esfregá-los. 

— Eu sei que você não sente o mesmo por mim. – Micha falou, a voz calma, embora seu rosto expressasse o contrário — Acho que no fundo, eu sempre soube. 

— Micha. Não pense que... – ela o interrompeu. 

— Deixe-me falar. Um dia você abrirá os olhos e irá me enxergar. Irá perceber que é tão apaixonado por mim quanto eu sou por você. E quando esse momento chegar, eu ainda vou estar aqui, como sempre estive durante todos esses anos. Você só precisa de um tempo para reorganizar seus pensamentos. E mesmo que isso não seja saudável, eu não vou julgar se você quiser sair correndo para procurar por Emma no meio da noite. Pelo contrário, eu correrei com você. Porque, assim como você ainda está preso a ela, eu estou presa a você. 

Yoongi puxou os cabelos para trás e, de perto, ele parecia estranhamente pálido, até mesmo exausto. 

— Micha, eu... nós ficamos juntos por um ano e meio, e em todo esse tempo,  por mais que eu tentasse, nunca senti nada por você. Não posso continuar te usando.

— Pode sim. Me use por quanto mais tempo precisar, eu não me importo. 

Yoongi fechou os olhos outra vez, consternado. Sentindo-se pequena, Micha abaixou a cabeça e piscou para afastar as lágrimas. Alheio a reação dela, Yoongi emendou: 

— Não acho que meus sentimentos por você irão mudar algum dia.

Micha olhou para ele com uma expressão muito magoada.

— Você acredita que seja possível que Emma tenha sobrevivido ao afogamento, mas que é impossível se apaixonar por mim?

— Não foi o que eu disse.

— Mas é o que sente. – falou ela, modulando seu tom.

Yoongi meneou a cabeça depois de um instante. — Eu sinto muito... por tudo. 

Yoongi viu quando outra expressão de dor marcou as feições de Micha. Sentindo-se humilhada e com muita raiva, ela pegou sua bolsa, ficou em pé e deu passos pesados na direção da porta. Antes de girar a maçaneta para ir embora, Micha girou nos calcanhares e o olhou. 

— Emma morreu, Yoongi. Você precisa seguir em frente.

Micha saiu e a porta bateu atrás de si, deixando Yoongi com seus próprios pensamentos. Na opinião dela - e de outros integrantes do grupo -, Yoongi precisava enfrentar o fato de que Emma nunca voltaria, mas a mente dele estava voltada em um único objetivo: Encontrá-la.

Flashback;

2016;

— Por que parou? – Yoongi ergueu a cabeça para olhar Emma, sentada em frente ao seu teclado digital. Aquela era a terceira semana que eles se encontravam para as aulas de piano; (com partituras e muita comida). 

— Meus pulsos estão doendo. – reclamou ela, chacoalhando as mãos enquanto movia-se até ele. 

Deixando seu caderno de composições de lado, Yoongi ajeitou-se no sofá para que Emma se acomodasse. Quando ela sentou, ele pegou suas mãos, macias e magras, analisando-as com zelo. Yoongi parecia não perceber, mas enquanto massageava os pulsos de Emma com os polegares, ela sorria de orelha a orelha. 

— Eu te disse que se não endireitasse a postura dos dedos, sentiria dores. – disse ele, firme. Emma engoliu o sorriso. 

— Eu endireitei. 

— Se tivesse endireitado, não estaria com os pulsos doloridos. 

Em silêncio, Emma desviou o olhar para o caderno aberto no sofá e, querendo não ser muito evasiva, apertou os olhos para tentar ler a letra.

"Até a caligrafia dele é perfeita", pensou ela.

— É a letra da música que estou praticando? – perguntou Emma, depois de um momento. 

— Sim. 

— Posso ler? 

Yoongi inclinou a cabeça, como se estivesse tentando apanhar seu olhar e, segurando um sorriso divertido nos lábios, perguntou:. 

— Você não estava lendo agora mesmo?

"Será que ele também me viu sorrindo como uma idiota?", com isso em mente, Emma corou e deu um sorriso sem graça.

—... Eu não enxergo de longe. 

Rindo baixinho, Yoongi soltou uma de suas mãos, pegou o caderno e entregou a ela. Sentiu-se muito nervoso, já que Emma fora sua maior inspiração.

“Ouça as batidas do meu coração, ele está te chamando com vontade própria. 

Porque você é a luz dentro dessa imensa escuridão 

Estenda sua mão e Me Salve, Me Salve

Eu preciso do seu amor antes que eu caia.. ”

— Uau! – foi tudo o que Emma conseguiu dizer, triste ao pensar que Yoongi escrevera aquilo pensando em outro alguém. 

"Ela é a mulher mais sortuda do mundo", pensou, o coração dolorido enquanto esboçava um sorriso brilhante por fora.

— Você deveria tentar. – sugeriu Yoongi. 

Emma demorou alguns segundos para sair de seus devaneios.

— Tentar o quê? 

— Escrever. 

Emma nunca se vira como letrista, mas, assim que pousou o lápis sobre o papel, percebeu que estava desesperada para pôr para fora tudo o que estava sentindo. 

"Estou agradecido por você ter feito isso por mim, por ter me dado asas

Por ter dado asas para uma pessoa como eu

Por ter acordado um eu sufocado

Por ter me acordado de um pesadelo, no qual era tudo que eu estava vivendo

Quando penso em você, o sol aparece, por isso jogo fora toda a minha tristeza

Obrigado por ter formado um "nós"...

Foi assim que, juntos, eles trabalharam em “Save Me”. Naquela noite, Yoongi completou a melodia enquanto Emma arrematava a letra que ele tinha escrito, sentados no sofá. Eles ficaram acordados praticamente a noite inteira; trabalhando enquanto conversavam e comiam lamen. 

Aquela foi a primeira de muitas, muitas vezes que Emma dormira ali, no estúdio de Yoongi. 

Atualmente; 

Sem se importar com temporal lá fora, Yoongi calçou seus coturnos pretos, uma touca azul, seu casaco quente e atravessou a sala até uma mesinha de vidro. Pegou as chaves do carro e, determinado a encontrar Emma, guiou sua mercedez até a Globe 81.

(...)

Quando chegou em frente ao estabelecimento, chovia muito. Yoongi pisou numa poça de água assim que pulou para fora do carro e murmurou um palavrão. Travando as portas, correu para o outro lado da rua, e quando passou pela porta dupla, lembrou das palavras de Jungkook. Ele estava certo. Ninguém frequentava bares com um clima tão horrível. As únicas almas que estavam ali eram as dos três funcionários.

— O que vai querer? – o barman perguntou, olhando Yoongi acomodar-se no banquinho.

— Água. – respondeu, seco. 

Mark, o barman, franziu o rosto — "Água"?

— Sim, água.

Mark balançou a cabeça como se a palavra "água" significasse alguma coisa para ele. E sim, significava: Existia clientes de todos os tipos, até mesmo aqueles que saiam de seu conforto em pleno diluvio para matar a sede em um bar.

— Alguém mais apareceu aqui hoje? – Yoongi perguntou assim que Mark empurrou o copo sob o balcão. 

Mark fez que não com a cabeça.

— Já não temos muito movimento no meio da semana, imagina com essa tempestade? Apenas dois policiais apareceram. – o funcionário deu uma pausa, olhando desconfiado para Yoongi — Você é um fugitivo? 

— Não. Você estava trabalhando no domingo passado? 

— Sim, só folgo ás quintas-feiras. Por que? – Mark deu outra pausa, arrastando seu olhar para as roupas caras de Yoongi — Você é um policial? 

— Não. Viu uma mulher de cabelos ondulados e pretos naquela noite? 

— Muitas mulheres vieram para cá no domingo, você precisa ser mais especifico.

— Não tem como não notá-la, ela é muito bonita. Tem um sorriso marcante, olhos castanhos claros, é alta, magra e mestiça. Estava acompanhada de uma amiga ruiva. 

Mark não precisou pensar muito para descobrir de quem se tratava. Lembrou-se de ter comentado com Kai, o outro barman, sobre a beleza da tal mestiça. Naquela noite, Kai concordou com Mark, mas preferiu a ruiva. 

— Sim, eu vi. Foi a primeira vez que elas apareceram por aqui. – Mark notou que as veias do pescoço de Yoongi começaram a pulsar com um ritmo cardíaco acelerado. Estranhando aquela reação, ele perguntou: — Ela é realmente muito bonita, mas ela fez algo de errado? Ou vocês estão apostando para ver quem consegue conquistá-la primeiro? 

Yoongi lançou-lhe um olhar interrogativo.

— "Vocês"?

— Sim. Outro homem apareceu aqui perguntando sobre ela.

— Hoje?

— Não, ontem. 

Yoongi franziu o rosto. — Como ele era? 

— Não consegui ver bem. Estava muito frio, então ele usava roupas quentes, touca e uma máscara. Mas era alto.

Com as mãos trêmulas, Yoongi se inclinou sob o balcão, pegou uma caneta azul que viu ao lado de algumas moedas e anotou seu contato num guardanapo de papel. 

— Se ela aparecer outra vez, me ligue, por favor. 

Mark não disse nada, mas acenou com a cabeça.  

No seu trajeto para o carro, Yoongi puxou o celular do bolso e ligou para Jungkook. 

— "Alô?"

— "Você veio ao bar ontem?" — quis saber Yoongi, batendo a porta do carro. 

— "Hm?"

— "Atrás da Emma. No Globe 81."

— "Não. Por quê?"

— "Estou aqui agora e o barman disse que outro cara veio procurá-la."

Surpreso, Jungkook fez que não com a cabeça em seu quarto. 

— "Eu passei o dia todo ensaiando ontem." 

— "Não está mentindo para mim, está?"

— "Hyung, por que eu mentiria para você? Estamos nessa juntos. Mas se não acredita em mim, pergunte ao Jimin, ele estava comigo."

Yoongi deu uma pausa e, perguntando mais para si mesmo do que para Jungkook, murmurou: 

— Se não foi você, então quem foi?