A Bela e a Fera - Livro 1 escrita por Monique Rabello, Kyrion


Capítulo 18
Capítulo Final: O Baile - parte 2




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[P.O.V. Fera]

Perdi o fôlego assim que me virei e vi Bela aproximando-se de mim, um raio de luz vindo da porta, admirando o salão com olhos brilhantes. A música elegante parecia tão adequada àquela chegada que nem me dei conta de que vinha de Cadenza a poucos passos de mim, e não de minha imaginação, ou de algum anjo vindo de onde os milagres acontecem.

Ela chegou próxima sem que eu soubesse o que fazer com aquela realidade que teimava em parecer-se com um sonho, ou com aquele sonho tão bom que nem sabia como ousara ter. Parou diante de mim, e pela primeira vez vi-a tão tímida e encabulada, o rosto compondo expressões que não conhecia e também me encantavam, as mãos querendo agitar-se como passarinhos. Cumprimentou-me, o que me obrigou um tempo extraordinariamente longo para reencontrar minha voz dentro do peito – que estava tomado por ela – e mover os lábios para responder. Só então me dei conta de que estive de boca aberta todo o tempo.

“Boa noite...” murmurei, com os cantos dos lábios compondo um sorriso. “Você está...” comecei, até dar-me conta de que nunca encontraria a palavra que faria justiça ao que estava vendo e sentindo. Em nenhuma língua. Fechei a boca, respirei fundo, antes de me expressar com a simplicidade do meu ser, corrigindo o que disse antes, em voz bem baixa, enquanto fazia uma reverência. “Você é... a coisa mais linda que já vi na vida...”

Minha frase não escapou à audição sensível do maestro, a princípio ligeiramente surpreso da minha fala, mas logo aquiescendo com gestos aprovadores, que percebi pelo canto dos olhos antes de me reerguer.

Entendi logo que meu deslumbramento não se dava apenas pelo espetáculo que via, mesmo havendo muito que ver: o vestido lindo que caía à perfeição, vistoso e suave como a natureza; os adereços bem escolhidos; a maquiagem primorosa que acendia a beleza natural sem sufocá-la nem um pouco; os cabelos cuidados e elegantes; a fineza dos passos; as formas visíveis ou dissimuladas. Além do perfume que vinha até mim, e que reconheceria para sempre, mesmo em meio àquelas milhares de flores.

Não, o brilho estava para além disso, coroando a perfeição escolhida para aquela noite.

Porque aquela perfeição estava na mulher que eu amava.

Aquela por quem nutria um sentimento mais puro e luminoso de minhas breves lembranças, como também a que movia meus sonhos e fantasias cada vez mais frequentes. Aquela por quem estava perdidamente apaixonado.

Tinha tanta certeza de que queria fazer tudo pelo resto da vida ao seu lado, que não sabia por onde começar.

“Permitam-me que eu lhes apresente a mesa desta noite!” Lumière adiantou-se para quebrar nosso embaraço, mesmo que sua expressão revelasse o quanto estava se divertindo com a situação. Foi saltitando em direção à refeição, e ofereci o braço a Bela para que o acompanhássemos.

Lumière apresentou cada coisa que havia, os diversos salgadinhos, tortinhas, massas, doces, frutas, queijos e bebidas. Cadenza começou a tocar sua primeira canção, alegre e agradável. Garderobe ainda não estava ali para acompanhá-lo cantando.

Servi uma taça a Bela daquilo que preferia, pegando para mim um suave coquetel de frutas.

“O que gostaria de... fazer primeiro?” perguntei, ficando próximo às cadeiras para puxar uma imediatamente se quisesse se sentar. Apesar das lições de Horloge, ainda não sabia muito bem o que fazer em um baile apenas para dois.

[P.O.V. Bela]

Foi a situação mais surpreendente que me aconteceu no castelo. Achei incrível por aquele meio segundo perceber que objetos falantes e um fogão raivoso causaram menos alarde ao meu coração que aquele comentário amoroso de Fera. Não sabia como reagir normalmente. Sabia o que fazer sendo um casal, mas naquele momento? Sorri, pegando o vestido, dando uma breve voltinha feliz para mostrar os detalhes, agradecendo com uma reverência e a bochecha rosada.

Voltei-me a ele, pegando suas mãos. “Está lindo e me causa reações que nenhum humano ou alguém de minha espécie já conseguiu.” Disse minha verdade de maneira doce, a fim de causar nele a mesma alegria que sentia ao escutá-lo.

Apenas dispersei os olhos amorosos de Fera quando ouvi a voz de Lumière, escorregando lentamente as mãos para que o contato se prolongasse antes de dar-lhe o braço e irmos até a mesa olhar bem o que havia, sorrindo ao candelabro que tentava muito ser apenas elegante dessa vez.

Mais uma reverência de agradecimento ao amigo que saiu de cena mais rápido do que o esperado. Estava feliz pela música gostosa que já começava a fazer parte daquela noite, estendendo a mão para pegar a taça que Fera me estendia e agindo como nobreza pela primeira vez, exercendo toda a finesse que me haviam ensinado em vidas marinhas.

“O jantar parece uma delícia...” comentei, já em indício, sentando-me na cadeira indicada por sua gentileza, querendo mesmo experimentar um pouco de cada perfeição escolhida com carinho.

Peguei a primeira escolha, iniciando uma conversa simples. “Os outros nunca se atrasaram... está tudo bem?” Sorri-lhe.

[P.O.V. Fera]

As palavras de Bela ainda ecoavam em minha cabeça depois que puxei a cadeira para que se sentasse à mesa e tomei meu lugar junto a ela. Meu coração batia tão forte que achei que o colete se movia diante de nossos olhos. Reações? Tinha vontade de perguntar quais, por insegurança e curiosidade. Queria saber tudo o que ela sentia! Tudo o que sentia por mim. Será que um dia...?

Quando me dei conta de que, de algum jeito, eu teria a oportunidade de tentar, de descobrir... que a “porta estava aberta”... que... ela havia dito “sim” à pergunta que nunca cheguei afazer... o mundo parou. E sorri. Sem poder me conter e como nunca fiz antes, com o rosto inteiro, com os dentes, com o focinho franzido, com o corpo e o peito aberto. Não era elegante, mas era a melhor sensação da minha vida.

Pisquei um pouco bobo de sua pergunta, mas não consegui parar de sorrir. Tentei parecer tão inocente quanto de fato era, sem dar a entender que aquilo tudo fora proposital e armado – pelo menos não por mim.

“Acho que... era esse o motivo de tantos segredos e conversas às escondidas. Prepararam essa noite... apenas para nós... e talvez não apareçam...”falei, mesmo sem ainda ter certeza do que dizia.

Olhei ao redor sem fazer muito alarde, tentando encontrar Lumière, que com certeza estaria nos espiando se os servos tivessem planejado nosso momento, mas os muitos brilhos no ambiente e o cheiro de tantas velas queimando não me permitiam localizá-lo. O novo indício veio com Madame de Garderobe, que chegou repintada e impecavelmente branca, com flores e fitas como o móvel de recém-casados ideal; sua voz era especialmente doce desde as primeiras notas, e o olhar que nos dirigia era cheio de ternura.

“Já tenho toda a companhia que poderia desejar.” Tornei a falar, pousando a mão sobre a de Bela.

Os pratos serviam-se sozinhos, bastando a nós escolher e experimentar. Havia aquela mistura de familiaridade e de novidade na refeição, o suficiente para me deixar um pouco à vontade, porém ainda prestando atenção a tudo. Tentei pôr em prática o que aprendera com Horloge para acompanhar a elegância de minha companhia enquanto comíamos e conversávamos.

Por outro lado, não quis que o excesso de cerimônia tirasse o prazer do momento. Quis falar sobre coisas simples – tinha, sobretudo, sede de saber mais dela e de seu mundo. Assim, fiz perguntas como as que trocamos naquele dia em que lhe fiz companhia enquanto estava em minha banheira, o mesmo dia em que fiz uma promessa para toda a vida, e quando os primeiros sinais de algo muito especial se deixaram ver. Ela gostava de comer e beber ao mesmo tempo (afinal, ela não bebia no mar!)? Quais eram os adereços de um baile lá? As portas dos cômodos podem ficar em qualquer lugar da parede? Sentia falta de seu antigo quarto, algo que pudéssemos providenciar? Depois das perguntas, ouvia suas respostas com atenção e fascínio. Mesmo tendo provado de tudo na mesa, não me lembraria de nada com tanta clareza quanto guardaria suas palavras.

[P.O.V. Bela]

Estava alegre com tudo aquilo, o corpo quase querendo reagir com pulinhos. Adorava até mesmo como ele falava... sempre pausado. Seria insegurança? Se fosse... eu achava fofo algo tão poderoso estar encolhido. Especialmente quando riu de uma maneira que eu nunca havia visto.

“Mesmo?” perguntei referente à noite ter sido feita para nós. “Não esperava...” comecei a me dar ainda mais conta de tudo, tentando não deixar claro demais a minha falta de jeito com aquilo. Seria ainda mais importante do que eu imaginava? Do que eu esperava? No fundo, realmente, era algo que eu desejava... e não sabia se aconteceria. Um momento realmente a sós para poder falar certas coisas para ele.

Sorri à Madame quando entrou combinando em aparência e voz com o novo companheiro, voltando as atenções a Fera após dizer, entrelinhas, que estava também feliz com a situação. Permiti-me sorrir amorosa a ele, virando a mão para segurar a dele da melhor maneira que conseguiria.

“Sempre desejei que pudéssemos ter um momento assim.” Falei baixinho, apertando afetuosa sua mão, mas soltando no momento de comer quando os pratos começaram a dançar.

Ri com a natureza de sua curiosidade. Sim, eu adorava beber enquanto comia, coisa que nunca deixava de ser uma novidade, afinal, tudo o que havia para comer nas profundezas já era suficientemente hidratado, além de termos um contato bem mais próximo com a água passando pelas guelras. Comentei desconhecer tantas possibilidades de gostos para bebidas, já que tudo tinha mais ou menos o mesmo gosto para nosso povo.

Achei interessante perguntar sobre os bailes. Comentei nosso empenho em caprichar em coroas e acessórios... ou quando tudo que era bonito era requerido... fazíamos em uma ilha secreta na superfície. Mas geralmente muitos brincos, coroas e belezas espalhadas pela cauda.

Sim, portas poderiam estar em qualquer lugar... o que consistia mais em buracos em corais ou rochas, não havendo, de fato, as chamadas “portas”. Podíamos até mesmo entrar no castelo por qualquer uma dessas aberturas se fôssemos de casa. Queria um dia poder mostrar tudo aquilo a ele... Se fosse um dia possível. Pensaria no assunto.

Não tinha como sentir falta de algo antigo, não havia muita coisa que não se deteriorasse rápido e não poluísse. Comentei preferir o quarto do castelo, sinceramente... afinal, eu tinha um espaço apenas para mim que não recebia mais opiniões todo o tempo de soberanos. Antes, era o quarto das princesas... não o meu.

Estava feliz com todo o seu interesse, com também bastante curiosidade sobre ele, mas deixaria as perguntas para quando possuísse sua memória de volta.

As músicas começaram a ficar um pouco mais em estilo dançante, ainda elegantes, e levantei-me um tanto animada após limpar os lábios, chamando-o para dançar com um braço erguido.

[P.O.V. Fera]

Lamentava um pouco cada vez que uma resposta acabava, encantado com sua voz, por isso sempre fazia outra pergunta. Fiquei sinceramente feliz que gostasse de seu quarto no Castelo, entendendo perfeitamente a importância de um espaço só seu.

Não foi difícil notar seu entusiasmo para dançar e levantei-me tentando deixar parte do nervosismo junto à mesa. Fomos de braços dados até o centro do salão. Fiz a reverência adequada e esperei que correspondesse antes de começarmos a dançar.

O maestro e Madame de Garderobe deixaram o ritmo da canção bem marcado, quase imperceptivelmente mais lento para me ajudar a coordenar os passos. Explorei a paciência de minha companhia enquanto encontrava o que fazer com o corpo inteiro, acertando os movimentos. Logo fiquei satisfeito de descobrir o quanto era mais fácil ter um par com medidas mais adequadas do que um cabideiro! Os movimentos fluíam melhor, o alcance era mais fácil e as aulas intensas que tive fizeram a diferença. Encontramos nossa harmonia e não deixei mais de lhe sorrir.

Ousei girá-la guiada por minha mão, apoiei sua cintura em meu braço, ergui seu corpo junto ao meu. Os músicos notaram a evolução e mantiveram um repertório animado, vibrante e desafiador. Lembrando-se do sucesso do espetáculo na última festa, inseriram algo de “Notre-Dame de Paris” entre as músicas, para nós.

Nem senti o tempo passar ou quantas músicas tivemos juntos. Uma mudança de estilo no fundo musical me deu a dica de dar uma pausa, conversar um pouco mais, continuar o jantar. Notei que Bela estava ruborizada. Exceto por estar com o coração acelerado e a respiração superficial, sentia-me bem enquanto voltávamos à mesa, sempre de braços dados.

“Isso foi ótimo!” disse-lhe, puxando novamente a cadeira que se sentasse.

[P.O.V. Bela]

Correspondi à reverência com o vestido bem esticado, gostando da ideia de ele fazer tudo direitinho... já sabia e era muito inibido para me contar ou estava aprendendo? Tratei de não me esquecer de perguntar sobre isso quando voltássemos a sentar à mesa.

Estava satisfeita com as danças mais certinhas mesmo que com uma ou outra surpresa. Divertia-me naquelas mais agitadas e deixei um pouco mais de sentimento me tomar nas mais lentas... deitando o rosto nele quando a melodia permitia. O coração até palpitava mais forte quando era levantada. Sorri à escolha musical, me permitindo alguns movimentos livres, girando, mexendo as saias como as ciganas.

Sentia o calor do exercício no corpo com alegria... habitualmente, quase não sentia a quentura dentro de mim. Aquilo me permitiu até um tanto de suor. Sentei-me com ele outra vez.

“Devíamos fazer mais festinhas... dançar muda o dia.” Sorri, amorosa, levando um pouco de chá aos lábios, deixando o corpo relaxar um pouco. Perguntei sobre seus modos de baile, e depois comentei o evento. “Está tão melhor do que imaginei...”

[P.O.V. Fera]

“Sim, devíamos.” Concordei à referência a fazer mais festas, já procurando pretextos para as próximas celebrações. “Não temos muita precisão para definir um calendário... mas podíamos adotar alguns eventos e... escolher os dias que nos convêm.” Pensei alto, enquanto as bebidas se adiantavam a nossas taças e eu me servia mais uma vez. “Nem acredito que um dia pudesse ter qualquer interesse no Carnaval.”

Concordei também sobre o quanto uma dança podia transformar o dia e baixei os olhos quando perguntou se eu vinha aprendendo.

“Sim. Quis que tivesse a sensação mais real possível em seu baile e pedi conselhos a Horloge e Lumière. Acabei gostando de várias coisas que aprendi...” as outras deixei de fora. “Foi Chevet quem mais me ajudou com a dança. É a melhor parte! Descobri que nem sou tão ruim e que meu corpo pode fazer coisas que nem imaginava!” talvez estivesse indo um pouco além em meu entusiasmo e pigarreei antes de prosseguir. “Talvez... você possa me ensinar também algumas coisas. Eu ficaria bastante feliz.”

Suspirei quando deu sua opinião sobre como estava sendo o baile, com alívio e contentamento. “Para mim também...”

Comemos menos, repetindo o que mais gostamos, conversando entre pontos de silêncio que sabíamos ser a expectativa do que ainda não dissemos. Mas uma certeza crescia dentro de mim ainda mais para aquela noite.

Uma música promissora me fez levantar a orelha, e daquela vez fui eu que a convidei para dançar. O entrosamento foi mais rápido, os movimentos mais certeiros, os olhares mais significativos. As canções ficavam mais sensíveis e românticas. Nossos corpos se aproximavam mais e mais...

Notas desconhecidas. A voz de Madame Samovar soou no lugar da voz possante de Garderobe, entoando de maneira mais sutil, mais afetuosa e íntima. Foi uma surpresa agradável, que nos fez sorrir. Tentei, com Bela, improvisar os passos suaves desse novo cantar e foi surpreendentemente fácil.

O que nos emocionou, porém, foi perceber, ainda nos primeiros versos, que aquela composição era inteiramente para nós...

Histoire éternelle... qu’on ne croit jamais...

De deux inconnus, qu’un geste imprévu

Rapproche en secret...~

***

[P.O.V. Bela]

Sorri quando ele falou sobre também querer mais festinhas. “O que é Carnaval?” perguntei, tranquila, ainda desfrutando do meu chá. “Ouvi falar sobre isso na vila... mas todos comentavam como se fosse algo demoníaco. Sendo aquele tipo de gente...” meio que revirei os olhos, interessada na explicação sincera que poderia vir.

Ergui as sobrancelhas com um sorriso surpreso sobre realmente ter feito aulas e meu coração amornou mais uma vez. Claro que eu poderia ensinar-lhe um pouco mais. Seria uma forma bem gostosa de passar o tempo e curtir sua presença.

O silêncio foi um pouco menos constrangedor daquela vez, já que estava mais felizinha, esperando muito mais do que poderia esperar anteriormente. Até uma ansiedade me tomava.

Aceitei seu convite para a nova dança, sentindo mais uma mudança sutil nos passos e na maneira com que nos olhávamos. Estava aliviada... agora era apenas esperar o momento perfeito. Ele gostava de mim!

A voz de Madame Samovar fez diferença no recinto. Voz amorosa que mudava tudo. Sorri a ela, logo percebendo, com Fera, que era para nós. Dancei até mesmo com mais emoção, colando o corpo no dele.

[P.O.V. Fera]

Sentir seu calor junto a mim, com clara felicidade, era indescritível. Dançar nunca foi tão simples e nenhum prazer foi tão grande. Ouvi “nossa história” ser contada e cantada por Madame, acreditando em cada palavra que me pousava no coração.

Uma parte minha queria que aquele momento durasse para sempre... até a ideia de que ele poderia, ao menos, se repetir quando quiséssemos tomar meu espírito e encher-me novamente de felicidade. Assim, recebi a última nota da canção com infinita gratidão, porque sabia o que fazer.

Fiz outra reverência em reconhecimento à minha dama por me ter concedido a honra daquela dança, e então a conduzi à varanda, enquanto as luzes do salão, atrás de nós, tornavam-se mais suaves, fazendo as estrelas ainda mais charmosas. Convidei Bela a se sentar junto ao parapeito. Sentei ao seu lado, chegando um pouco mais perto.

“Bela... sei que gosta de morar aqui no Castelo...” comecei, lidando com meus sentimentos. “Fico feliz com isso. Tudo o que puder fazê-la sempre mais realizada será feito. Mas... você seria também feliz... comigo? Alguém como eu poderia realmente acreditar... na maravilha de ter seu amor... assim como eu a amo... com tudo o que há no meu ser?”

Eu falei-lhe em tom baixo, mas dizer tão abertamente o que me passava pela mente e pelo coração tinha o mesmo efeito de um brado. Comecei olhando baixo, para suas mãos, até pegá-las e erguer meu rosto para olhá-la nos olhos, para que visse a verdade nos meus, nestes pequenos pontos luminosos em meio a tudo escuro que fazia minha figura. Olhos que só brilhavam para ela, e seriam dela, como tudo em mim, se apenas dissesse “sim”.

***

[P.O.V. Bela]

Dei-me conta de ser a primeira vez que eu encostava com tanta liberdade no corpo de Fera após as sessões de curativos e senti algo no peito ao imaginar que as coisas estavam tão perto de apenas mudar para melhor. Atrevi-me a fechar os olhos e sentir um pouco do seu calor mesmo através dos panos até o fim da música cantada por Samovar.

Correspondi à reverência que ele me proporcionou após a dança, pegando em seu braço para irmos até o lugar que queria na varanda. Sentei-me onde indicado, sorrindo e mexendo no vestido com o pequeno silêncio que decorreu. Olhei-o carinhosa quando chegou bem perto, agradecendo por ter começado a fala por não saber muito bem como agir. Assentia doce e com alegria sobre gostar de morar ali.

Segurei a emoção por um momento, deixando-o falar. Sua primeira pergunta já fazia alguma coisa em mim pular... e respirei fundo para continuar conseguindo ouvir apenas sorridente. Fora tão contido e real em seu modo de se expressar que senti necessidade de também assim proceder.

Mas não deu.

Quando me dei conta, já estava apertando sua cabeça contra meu corpo, aproveitando que estava senta e eu de salto, quase nos jogando da varanda no jardim, pelo impulso.

“Achei que nunca fosse dizer!!” estava toda jogada nele, o sorriso já machucando as bochechas e os olhos lacrimejando com a emoção que me tomava, uma adrenalina percorrendo o meu corpo que me fazia pular à sua frente esmagando o vestido... não estava acreditando no que havia acabado de ouvir.

“Ai, não acredito!!” girava ainda em pulinhos, rindo sozinha, até que fiz aquilo que queria já há incontável tempo. Pulei novamente nele tocando como conseguia meus lábios na ponta de seu focinho, ficando ali até um pouco além de ele se dar conta e me abraçar, retribuindo um pouco.

Finalmente me acalmei, sentando ao seu lado e pegando suas mãos, pousando-as em meu colo e depositando ali as minhas para me expressar com mais clareza.

“Sabe...” os olhos continuavam marejados. “Eu sempre escutei histórias de amor no meu reino. Amigas e irmãs que conheciam alguém que fugiu por amor, ou que um casamento arranjado era um medo forte dos dois lados e estes acabavam aprendendo a ser um bom casal. Então, desde menina eu sonho com alguém que vá além da realeza e seus atributos... alguém que me fizesse bem todos os dias, independente de reinar ou não. Nunca considerei estar sozinha por saber que não seria possível... sendo a primeira na linha de sucessão. Queria descobrir o que eu poderia ser além de ‘casada’... porque obviamente quem governaria seria meu marido. Então eu conheço alguém...” apertei suas mãos e finalmente o olhei nos olhos. “...que me ensina a ler, que quer conhecer meu mundo e apresentar o seu, me dá um propósito, mesmo sem querer...” Ri baixo. “...de quebrar uma maldição. Com isso me fazendo ver quão rico o mundo pode ser, me dando vontade de desbravá-lo, já que tanta coisa pode vir apenas de quatro paredes – mesmo que imensas. O que pode vir do mundo?”

“Entende?” perguntei de novo. “Você me fazer querer tanto além do que sou, que a minha vida com pernas é bem mais feliz que a minha natureza. Uma coisa que sempre aprendi que eu seria por alguém... a base... você é para mim... e eu faço de tudo para retribuir. Além de...” mais uma pausa, acariciando os dedos e as unhas com delicadeza. “...você ser lindo e me atrair em todos os sentidos. Tem um olhar que nunca vi em ninguém de seu sexo, uma forma de me tratar que é surreal... Você me encanta, Fera, e quero estar aqui, com você... independente do que aconteça. Independente daquilo que eu venha a conhecer com o fim dessa história. Quero estar sempre...”

***

[P.O.V. Fera]

Não soube como reagir à sua alegria, a princípio, quando já me vi apertado contra seu corpo, o rosto roçando no tecido e sentindo intensamente seu perfume e sua adrenalina. Percebi que, mesmo acreditando na chance do ‘sim’, não contava que ficasse tão feliz. Feliz e empolgada por estar comigo. Essa compreensão me invadiu aos poucos, crescendo em mim.

Arregalei os olhos, surpreendido quando seus lábios procuraram os meus, ficando ainda alguns segundos imóvel, até sentir algo em meu interior ceder. Uma última barreira, descrença ou insegurança, que desmoronou. Um braço passou por sua cintura e o outro ficou em suas costas, meus dedos segurando delicadamente sua nuca.

A alegria finalmente desabrochou por inteiro, e peguei-a pela cintura, suspendendo-a num giro, depois a erguendo nas patas e fazendo seu vestido esvoaçar, o tempo todo rindo, fixando seu rosto iluminado. Finalmente senti o entusiasmo que via apenas nos outros, livre de qualquer preocupação, melancolia ou censura. Nunca havia me sentido tão vivo e tão preenchido.

Pousei-a de novo no chão, respirando fundo, ainda sorrindo. Notei que ainda tinha coisas a dizer e nos acomodamos novamente. Meus dedos ficaram acariciando seu colo enquanto ouvia, sem interromper e fitava seus olhos sempre úmidos de emoção mesmo quando não me fitavam de volta. Ouvi sobre seus receios e expectativas, depois sobre minha participação em sua nova vida, algo que me encheu de orgulho e satisfação; ser considerado atraente estava bem fora do que poderia desejar para minha vida atual... e só naquele momento notei que já acariciava seu colo com mais firmeza.

Com sua declaração final, dei-lhe outro sorriso que meu rosto não estava acostumado a dar, sentindo algumas tensões eternas relaxarem por um momento, suavizando a expressão.

“Eu não poderia pedir mais nada, com tanto fervor e gratidão, do que sua companhia enquanto viver. Nada pode me ser mais valioso ou transformador. Somos, então, a base um do outro... e só por você reconheço que tenho, também, algum propósito. Fazê-la sempre feliz, e que sua vida seja sempre melhor do que aquilo que você esperava dela, como fez com a minha. E se ainda quero quebrar a maldição... é para podermos explorar mais desse mundo que te encanta tanto. Podermos explorá-lo juntos e ver o que resta nele do Paraíso. E, bem... acho que ficaremos felizes de compartilhar essa liberdade que tem feito tanto por nós.” Acrescentei, fazendo referência a todos no Castelo.

“Sei que é óbvio dizer que... você também me encanta e me... atrai. Já há muito tempo...” fiquei um pouco tenso novamente. A mais leve menção ao assunto já parecia deixar minha respiração mais quente, meu faro mais aguçado, a cauda querendo se agitar. “Saber que é recíproco... nos permite fazer algumas... novas explorações e descobertas, não é?”

Antes que pudesse me arrepender de minha tentativa desajeitada de flerte, algo no salão chamou minha atenção. Em meio ao silêncio que nos encontrávamos, consegui ouvir vozes indistintas em comemoração. Ao longe, pontinhos se agitavam. Conseguia imaginar os membros daquele grupo e os motivos dos festejos, já não tão discretos quanto estavam antes. A interrupção não me aborreceu, mas, sim, me fez novamente sorrir. Era um grande sinal de carinho que torcessem por nós... e que acreditassem em nossas chances a ponto de tramarem aquele singelo plano.

“A hora ainda não está tão tardia. Se quiser... ainda podemos voltar ao baile, comer mais alguma coisa e dançar... ou continuarmos um pouco mais a sós...” dirigi-me novamente a ela. “Mas antes de sairmos daqui... obrigado, Bela... Artemísia... por me fazer o ser mais feliz do mundo essa noite. Porque agora eu posso dizer...” abracei seu corpo novamente contra o meu. “Eu te amo.”

Ficamos assim mais um pouco, até eu relaxar o abraço. “Posso chamá-la de ‘Arte’? Porque a Arte é Bela... é o que há de mais precioso feito por alguém.” Perguntei-lhe, com vontade de termos um nome especial.

***

[P.O.V. Bela]

Era uma sensação ímpar ser erguida e amada daquela forma tão verdadeira e gostosa. Nem mesmo conhecia esse tipo de carinho e curti a primeira alegria intensa que via Fera manifestar. Sentei-me ao seu lado com ainda mais expectativa. Do que poderia vir, tocando as patas que acariciavam meu colo com um pouco mais de vontade do que o esperado, do que eu havia gostado bastante, deixando-o livre. Apertei um pouco seus dedos com o entusiasmo me tomando... suas palavras tão honestas e amáveis me derretiam... e demonstrei isso com os ombros um tanto encolhidos, um sorriso sem jeito e olhos cheios d’água.

Prestei bastante atenção no “ainda querer quebrar”, mesmo sem expressar qualquer coisa. Isso queria dizer ser feliz comigo desta forma também ou eu havia entendido errado? De qualquer jeito... havia sido bastante significativo um “você me basta”, mesmo que eu pudesse estar errada. Apertei sua mão também em resposta, concordando com o quão bom deve ser partilhar a liberdade com quem amamos.

Corei também com a pergunta, mas de maneira um pouco mais risonha que tímida. “Sim... nos permite. Eu... já tento seduzir você há algum tempo. Há algumas curiosidades que quero sanar sobre... como deve funcionar com alguém tão maior. Eu que não sei nem como funciona com alguém do meu tamanho... Mas já me imaginei te atraindo de várias maneiras. Pode ser que... sanemos esta vontade em breve.” Mexia no cabelo com um sorriso, fitando o chão.

Já estava pronta para responder quando ele foi meigo novamente e segurei um pouco meus instintos. Sorri meiga.

“Podemos levar alguma coisinha para beliscar... mas eu prefiro, sim, continuar a noite... de outra forma.” Já senti vontades que, se não fosse o lugar, me teriam empurrado para cima dele.

Sorri-lhe sentindo mais uma vez ternura. Se fosse sempre daquela forma, minha vida seria mesmo a melhor possível. Tinha os olhos fechados, um pouco esmagada por ele, lacrimejando e rindo por não mais saber direito o que sentir.

“Eu te amo, Fera.”

Mesmo com o relaxar do abraço não saí dele, ainda aproveitando o gostoso contato daquele que fazia eu me sentir viva.

“Claro que pode me chamar de ‘Arte’. Chame como quiser... pois a partir de hoje o chamarei de ‘amor’.” Sorri dando um beijinho em seu peito antes de realmente soltá-lo.

“Vamos subir?”

***

[P.O.V. Fera]

Sentindo aquela mistura de sensações e emoções, bem como uma sensibilidade no faro bem insinuante, respondi baixo, mais falando comigo mesmo do que com ela. “O que falta subir?”
entramos no salão de braços dados e sorridentes. Fiz todo o possível para disfarçar bem o restante. Também os servos mal continham sua animação, alguns se precipitando porta afora para não parecerem bisbilhoteiros. Ficaram Madame Samovar, Horloge, a um canto, Lumière e Garderobe, com diferentes sorrisos. Cadenza começou imediatamente uma canção romântica e alegre.

“Viemos buscar algumas coisas para... continuarmos apreciando a noite.” Expliquei, enquanto preparávamos uma bandeja com diversas guloseimas e bebidas ainda fechadas. Ninguém perguntou ou pareceu estranhar, nem mesmo quando pegamos vários dos grandes guardanapos de festa, antes de nos direcionarmos outra vez para a varanda.

Sem que soubéssemos, em um silencioso e vazio ponto do Castelo, belas portas decoradas, fechadas há muitos anos, destrancaram-se sob um belo dossel de flores reais e pintadas.

Outra vez a sós, acomodamos nossa comida nos guardanapos, fazendo várias trouxinhas. Aquilo tinha um divertido ar de travessura, especialmente quando trocávamos alguns rápidos – mas frequentes – olhares. Bela passou várias delas nos braços; eu, então, me abaixei para que subisse, segurando-se em meu pescoço – um toque que considerei bem vindo.

Quando senti que estava firme, passei as últimas trouxas para a boca para liberar as patas e comecei a escalada, agarrando uma coluna rente à varanda, atravessando parapeitos, beiradas, esculturas, pequenos telhados, sempre subindo e seguindo a oeste. Eram caminhos que já tinha feito antes, mas nunca acompanhado.

Divertia-me com suas pequenas exclamações, gritinhos e risadas. Apesar do cuidado, permiti-me proporcionar um pouco de emoção no trajeto. Saltei o parapeito final, na sacada de nosso destino; a luz vinha do luar e do suave brilho da Rosa ali perto. O quarto estava tão arrumado e limpo quanto possível, como se esperasse por nós.

Estávamos os dois de coração acelerado, um tanto ofegantes. Encaramo-nos outra vez, com aquela expectativa e cumplicidade travessa. Deixamos as trouxas na mesinha mais próxima, seguindo para nossas tão esperadas descobertas.

E para a nova página do nosso amor.


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