Cafés quentes não aquecem corações frios escrita por mandy


Capítulo 3
Capítulo 3




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Quando as férias acabavam, a rotina se tornava ainda mais cansativa. Afinal, depois do colégio, tinham ainda uma jornada de seis horas de trabalho, quando não mais, dependendo sempre do ânimo dos clientes em manter longas conversas sobre assuntos desinteressantes. Sirius resmungava o tempo todo. Perguntava-se se velhos não precisavam ir para a cama cedo, se múmias não precisavam de suas catacumbas. Reclamava porque a rotina baixava suas notas não muito exemplares em disciplinas essenciais. Apesar de Sirius ser deveras muito inteligente, Reglus admitia, achava que gastava o seu tempo livre com coisas que em nada lhe acrescentariam futuramente. Como reclamar.

Enquanto Sirius resmungava, Regulus aproveitava os intervalos de tempo para estudar alguma coisa. Era um exagero quando as aulas haviam acabado de retornar, mas gostava de ter a cabeça fresca. Assim, ao invés de chegar em casa e ter de se preocupar com os deveres do colégio, ele podia simplesmente descansar. Ou ler alguma coisa que não relacionasse a sua compreensão com notas escolares.

Bem como havia imaginado, o movimento indesejável era quase nulo naquele período. Não significava, porém, que os amigos do irmão mais velho deixassem de frequentar o café. Não mais para pedir cafés alcoólicos ou falar alto demais, e isso talvez por influência de seus pais. Era difícil acreditar que sim, mas não tinha qualquer explicação condizente.

Havia acontecido o seguinte: duas semanas antes das aulas começarem a visita de Orion Black os surpreendeu no Café. Ele nunca estava presente, era um proprietário que trabalha nas sombras, como se lidasse com títeres. Haviam muitos outros dias, muitas outras horas para supostas supervisões, mas ele precisou aparecer naquele dia. E, mesmo quando Sirius estava em seu horário de almoço e nada lhe impedia de estar sentado onde queria, mesmo que, num dia atípico, os rapazes estivessem mais silenciosos do que o normal, não era aquele um bom dia e nem uma boa hora para aparições. Mas o pai não disse nada. Ou mesmo Sirius se levantou de onde estava, mas até os clientes podiam sentir a tensão se instalara no Café naquela tarde.

Desde então, as brigas em casa eram constantes. Orion, diferente de Walburga, era um homem de poucas palavras. Era objetivo, falava com o tom de voz baixo, mas os olhos queimava como fogo. A última coisa que Regulus ouvira, quando perambulando pelos corredores, fora um clichê patriarcal que, apesar de tão ultrapassado, deixava claro as posições hierárquicas ali dentro.

— É a minha casa. Submeta-se ou saia.

Com ele, Sirius não conseguia mesmo manter os ares sarcásticos. Geralmente ficava vermelho de raiva, não era incomum ouvi-lo socando a porta do guarda-roupa quando acontecia. Então, não somente no espaço do Café, mas a casa como um todo passou a ter uma atmosfera mais densa. Ao menos na perspectiva de Regulus.

Depois das brigas, quando os rapazes estavam ali, era com as vozes mais baixas, uma vez acompanhado por livros e cadernos, noutra apenas por cochichos minimamente suspeitos. Regulus sabia que, mesmo com aquela mudança comportamental, se o pai resolvesse aparecer novamente num dia como aquele, a caos só ficaria mais intenso, mas poderia apostar que o irmão continuava a fazer de propósito. Sirius nunca abaixava a cabeça.

Então começou a faltar. Já havia faltado outras vezes, mas sempre com alguma justificativa plausível, como quando pegara um resfriado que o deixara de cama por uma semana inteira e, mesmo quando Regulus já houvesse se deslocado de sua casa para o Café quando febril, nenhum cliente iria gostar de ter um funcionário com nariz escorrendo em cima de seus expressos. Agora, no entanto, simplesmente não ia, sem avisos prévios, sem desculpas posteriores. E isso sobrecarregava a Regulus ainda mais, mas quase sempre engolia.

Da vez que explodiu, chamaram atenção dos velhos jogadores de xadrez que deveriam estar ali desde as onze da manhã. Já era por volta das três da tarde. Sirius nem mesmo se esforçava para atender aos demais clientes, caminhava muito devagar, às vezes nem desejava boa tarde. Regulus já começava a ficar irritado.

— Olha. Eu não consigo fazer isso sozinho… — Disse quando o irmão voltava, de trás do balcão, o tom de voz baixo.

Sirius arqueava as sobrancelhas uma vez, parando diante do mais novo.

— Isso o que?

— Isso, Sirius. O trabalho, os cafés. Somos só nós dois e você não tem colaborado em nada!

Por um momento, ambos guardaram silêncio, os olhos de Regulus desviando para o pedido que o irmão tinha em mãos, enquanto Sirius mantinha os ares que beiravam quase à tranquilidade.

— É simples, Regulus. Não faça.

— Mas que merda, Sirius! — A voz, mesmo por entre dentes, era alterada. — Você por um momento poderia parar de ser tão egoísta, parar de pensar no seu próprio umbigo e agir como se fizesse parte desta família?

Ele não costumava falar daquele jeito, o que surpreendeu Sirius que, depois, com um riso anasalado, balançou a cabeça negativamente. Deixou sobre o balcão os pedidos e, recostando as costas ali, voltou-se ao irmão.

— Família, Regulus? Que família?

Não vale a pena, Regulus pensou. Negou uma vez, respirando pesadamente e pegando ele mesmo o pedido, seguindo para a máquina de moer café.

— Esquece.

— Não, agora eu preciso saber. Que família? — Sirius continuou. — Essa mesma família que te explora, que traça o seu futuro como se fôssemos robôs prontos para substituírem outros robôs nessa empresa de merda? Alguém perguntou pra você o que realmente gostaria de fazer no seu tempo livre, se tivesse um, ou o que gostaria de fazer depois que se formasse o colégio? Não, eu tenho uma melhor! Você se refere à família quando olha para os nossos pais, os nobres Orion e Walburga Black que humilham você quando não está dentro das expectativas que eles criaram?

Regulus sentiu o rosto queimar. Como se precisasse ser lembrado por ele de como era ser filho de Orion e Walburga, como se todos os dias não se sentisse obrigado a dar o seu melhor somente para satisfazer os pais e não ter de ouvir o quão inútil era. “Você não faz nada direito, Regulus”, costumavam dizer. “Não adianta ter um filho que nos envergonhe.”

Os olhos volveram para a parte externa do balcão. O jogo de xadrez havia parado, as conversas paralelas estavam silenciadas. Todos olhavam para eles. Percebendo também isso, Sirius passou a mão pelos cabelos, impaciente. Desfez o nó do avental e caminhou em direção à saída.

Antes de deixá-lo sair, no entanto, Regulus respirou fundo.

— Você também nunca me perguntou o que eu gostaria de fazer se não fosse isso aqui.

Não soube dizer se o irmão estava mais puto ou desconcertado. Ao final, a única coisa que poderia concluir era que todos eles eram iguais.

Era de se esperar, em todo o caso, que nenhum dos amigos baderneiros aparecessem. Nem o próprio Sirius aparecia - já tinha quase uma semana inteira que não dormia em casa. Seria natural se Regulus se sentisse melhor com aquele fato, mas a verdade era que nunca trabalhara tanto. Então, quando um dos amigos de Sirius apareceu - e ele não conseguiu se sentir mais tranquilo mesmo sabendo que era o mais calmo deles -, o garoto bufou. Enquanto servia o pedido de duas taças de café com leite para dois empresários dos tempos antigos, ergueu os olhos a Remus, questionando-o sem palavras.

— Um tradicional.

E, novamente, aquele pedido. Sentiu o estômago embrulhar.

Depois de servir os senhores na mesa ao lado, voltou-se à máquina e moeu os grãos. Entregou-lhe a xícara junto a alguns torrões de açúcar, que não foram usados para adoçar o café, se não como um aperitivo doce que o rapaz comia.

Um de frente para o outro, ambos guardaram silêncio. Regulus sentiu o suor frio nas mãos. Porque ele ainda estava ali?

— Sirius não vem hoje — disse por fim, desejando que algum cliente lhe chamasse para que não precisasse ficar ali, o encarando.

Claro, havia uma mínima extensão por detrás do balcão, onde poderia perambular, mas alguma coisa o mantinha ali. Mesmo que com os olhos baixos, mesmo que precisasse estalar os dedos, um de cada vez, para aliviar a tensão.

— Eu sei — Remus lhe respondia com um sorriso no canto dos lábios — Mas eu gosto do café aqui. Deste café.

Regulus, ele complementou em sua cabeça, já que aquele era o nome do café tradicional.

Remus continuou.

— Ele parece se encaixar nos padrões, o tipo de café que todo mundo aprecia, mas… ele é forte. — Ergueu os olhos para Regulus, fazendo o seu estômago dar voltas — E o gosto fica na boca.

Regulus respirou com cuidado para não denunciar o nervosismo. Tratou de desanuviar e desviar os olhos do garoto a sua frente, voltando a vasculhar o ambiente a procura de algum novo cliente. Ainda não conseguira se safar. Umedecia os lábios com a língua então, concordando uma vez em resposta. O café. Ele estava falando do café.

— Você está bem, Regulus? — O ouviu questionar.

Não sabia se ele estava se referindo aquele momento em específico ou ao todo. Afinal, Sirius deveria ter lhe contado. Além do mais, Regulus conseguia disfarçar bem as suas expressões, mesmo quando desconcertado. Ao menos achava que sim.

— Foi Sirius quem te mandou aqui?

Devagar, Remus negou.

— Sabe onde ele está?

— Sei.

Neste momento, a sineta do Café se fez ouvir. Regulus guiou os olhos para a porta então e, rapidamente, apanhou caderneta e caneta para atender ao recém chegado, agradecendo mentalmente por poder dissipar aquela tensão. Antes de sair, no entanto, se escorou no balcão, próximo a Remus e, com um sorriso presunçoso, lhe disse baixo:

— Quando o vir, diga que lhe mandei a merda.

— Digo com prazer — e Remus piscava em resposta.

Logo quando terminara de atender ao homem de pouco mais de trinta anos, bem vestido, com um notebook embaixo do braço - o que quebrava o clima nostálgico que tantos velhos adoravam -, Regulus percebe que Remus havia ido embora e deixado o dinheiro sobre o balcão.


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