Pan Dora escrita por LittleR


Capítulo 1
Pan


Notas iniciais do capítulo

Capítulo escrito no aconchego de minha cama.
Boa leitura!



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 "Às vezes a gente quer muito uma coisa e então acha que vai querer a vida toda. Mas aí o tempo passa. E o tempo é o tipo de sujeito que adora mudar tudo. As vontades também. Um dia ele muda você e pronto: você enjoa de ser pequena e vai querer crescer.”

(BOJUNGA, Lygia; A Bolsa Amarela, 1976)

 

I.

Foi um dia desses quaisquer, das chuvas de verão e do calor escaldante, que eu encontrei um menino flutuando acima de minha cama. O sono ainda me embalava quando o vi e, por isso, disse a mim mesma que era aquilo não passava de um devaneio de minha mente sonambula. A luz poeirenta de uma fada brilhava próxima a seus olhos de um verde profundo e ansioso como... florestas? Não uma floresta qualquer. Uma floresta jovem, com folhinhas ainda novas molhadas de carvalho. Estiquei a mão para o menino e tentei tocá-lo, absorta num estado de transe e encantamento.

“Você é real?”

Um sorriso de infantil prepotência resplandeceu em seus lábios, breve e intenso, como uma chuva de verão.

“O que você acha?”

“Eu não sei. Os sonhos seguem as pessoas mesmo depois que elas acordam?”

“Alguns, sim, mas só se as pessoas quiserem.”

Os lençóis brancos com cheiro de amaciante farfalharam quando me ergui e me sentei em minha cama. Acompanhando meu movimento, o menino deslizou no ar para sentar-se ao meu lado.

“Você voa.”

“Boa observação.”

Notei agora pela proximidade que o menino ao meu lado vestia roupas estranhas, ou, no mínimo, inadequadas para o convívio social. Eram nada mais que trapos verdes e folhas amarradas no entorno de seu corpo infantil, mas ainda maior que o meu. Ele tinha cabelos dourados.

“Se você não é um devaneio de minha parte, então quem você é?”

“Peter. Peter Pan. Sou um garoto perdido. E você?”

“Eu não estou perdida.”

Bem perto mais perto agora, o sorriso de Peter mostrou-se de novo, mas dessa vez era abobalhado e alegre, e trazia consigo dois furinhos no queixo, abaixo dos lábios rachados de vento.

“Isso eu percebi. Na verdade, é bem fácil encontrar você. Posso ouvir suas histórias todas as noites e elas me guiam até aqui.”

“De onde vem?”

O dedo de Pan ergueu-se em direção a janela aberta de meu quarto. Suas unhas eram curtas e quadradas, mas mesmo assim alguma sujeira encontrara um jeito de esconder-se ali.

“Primeira estrela à direita e em frente até o amanhecer.”

“Bem explicativo.”

“Meu lar é uma terra mágica, muito diferente dessa. É um lugar onde tudo pode se tornar realidade e você nunca cresce ou envelhece.”

“Nunca cresce? Significa que será criança para sempre?”

“Sim.”

Eu não disse nada de imediato, pois precisei de um tempo para entender o que ele quisera dizer. Nunca crescer e nunca envelhecer, eu seria essa mesma pessoa para sempre. Fiquei pensando nisso mais tempo do que percebi.

“Nunca crescer... Isso não é um pouco... entediante?”

Os olhos profundos de Pan arregalaram-se de surpresa.

“Entediante?”

“Sim. Passar a eternidade sendo e fazendo a mesma coisa sem nunca mudar. Qual a graça nisso?”

“É justamente essa a graça”

“Não é, não.”

“É sim.”

“E como você sabe que ser adulto não é mais legal do que ser criança, se você nunca cresceu?”

Peter não respondeu de imediato. Ele parecia quase irritado com minha audácia em questionar algo em que ele acreditou toda a sua vida. Espera... vida? Quantos anos Peter tinha?

“Sabendo, oras!” Ele explodiu, jogando os braços para o ar. Estava vermelho e bicudo. “Ninguém precisa comer cocô pra saber que é ruim.”

Que menino indelicado! Eu fiz uma careta para a falta de decoro dele. Mas logo passou e eu me lembrei de minha questão mais primordial.

“Escute, Peter, qual sua idade?”

“Tenho doze anos.”

“Tá, tá. Mas há quanto tempo tem doze anos?”

“O que quer dizer com isso?”

“Ora! Ora! Quero dizer... hm... deixe-me ver... quanto tempo tem que você parou de crescer? Quero em anos, por favor.”

“Eu não sei. O tempo é diferente na minha terra.”

“E você não sabe contá-lo?”

“Eu não. É coisa de adulto querer controlar o tempo e eu ainda sou um menino.”

“Nisso você tem razão.” Concordei com Peter, acenando veemente com a cabeça. “Mas mamãe sempre diz que maturidade tem mais a ver com os tipos de experiências que você teve e o que você aprendeu com elas do que com quantos aniversários você celebrou.”

“Eu não entendo o que isso significa”

Eu também não entendia muito bem o que significava, mas deixei pra lá. Já bastava eu me sentir burra na presença dos adultos.

“Acho que você não teve muitas experiências que dessem maturidade a você.”

Eu disse e ficou por isso mesmo, porque Peter não entendia o que isso significava e nem eu queria continuar falando sobre esse assunto. Um longo e contínuo silêncio preencheu meu quarto azul.

“Mas, então... Você gostaria de visitar minha terra... pra contar suas histórias?”

“Eu não conto histórias, apenas escrevo. Minha mãe é quem conta. Toda noite, às nove. Mas ela já contou a dessa noite, Pan, desculpe.”

“Hm... mas você as sabe decorado?”

“Sim.”

“E consegue criar novas?”

“Sim.”

“Então você é perfeita. Venha!”

Peter agarrou meu pulso e, como um furacão, puxou-me para fora da cama na direção da janela, mas eu tratei de pisar bem forte meus pés contra o assoalho para que ele não pudesse me arrastar.

“Eu não posso. Tenho aula amanhã.”

“E continuará tendo aula amanhã. Você só não irá. Ve... nha!”

Pan se ergueu do chão num voou rasante e me puxou com ainda mais força, mas eu resisti. Meu braço estava doendo já, com essa brincadeira sem graça.

“Não posso.”

“É... só... por... um... instante...” Gemeu ele, insistindo em me puxar.

“Espere, um instante?” Parei de resistir e a força que Peter estava fazendo nos levou direto de cara no chão. “Um instante? Como pode ser um instante se você disse que não sabia contar o tempo na sua terra?”

Pan respondeu depois de gemer, enquanto massageava a testa vermelha e com um galo.

“Mas pelo menos isso eu sei.”

“Você não está me enganando? “

“Por que eu enganaria?”

“Mamãe disse que os homens mentem e não prestam.”

“Eu não sou um homem.”

“Mas é um projeto de um.”

“Mas eu não quero ser um. É por isso que eu fui pra minha terra, porque gosto de ser menino. Você não?”

“Eu não sei, nunca fui menino.”

“Mas e menina?”

“O que tem?”

“Se você gosta de ser uma?”

Eu tive que parar de novo pra pensar nisso. Peter fazia muitas perguntas inteligentes para as quais eu não tinha resposta na hora. Eu acho que deve ser porque ele é um menino há muito, muito tempo mesmo.

“Eu não sei.”

“Talvez você saiba se for à minha terra”

Foi só a partir desse instante que comecei a cogitar aceitar a proposta de Peter. Mesmo que eu tivesse aula amanhã.

“Tudo bem” aceitei. “Mas com uma condição. Você deverá vir à minha terra primeiro”

“Mas eu já não estou?”

“Essa? Não. Essa é a terra dos homens. E das mulheres também, até certo ponto. Mas você viu que eu não sou nem um e nem outro.”

“E onde é sua terra?”

Eu bati palminhas de excitação e um largo sorriso se esticou em meus lábios. Eu quase podia senti-lo ganhar vida por si próprio. Agarrei meu novo amigo Pan pelo pulso e o puxei para meu canto favorito do quarto. Ao lado da janela, perto da estante dos livros que mamãe lia para mim todos os dias, às nove, minha escrivaninha imperava como se fosse o trono de um rei.

Ela não era nem grande nem muito trabalhada, mas eu sabia que em sua perna esquerda, no lado escuro, eu ocultara um beijo com as marcas do batom que roubei de mamãe e que era tão vermelho quanto sangue. E, embaixo do tampo, onde só quem soubesse podia ver, eu escrevera minha canção favorita London Bridge is falling down, my fair lady. E acima da mesa, eu pusera para dormir meus dois tesouros: o caderno e a caneta que me ajudavam a criar um mundo só para mim.

Mostrei meus tesouros para Pan, dos olhos profundos e ansiosos, e com uma fada de luz poeirenta vagando pelo quarto como uma abelha, derramando poeira brilhante por onde passava.

“Aqui. Nesse papel. É minha terra. Só minha. Eu a criei sozinha. Pensei nas pessoas, nas cidades, nos países, nas lendas, em tudo. É toda minha essa terra.”

“E como eu faço para ir até ela?”

“Ora! Ora! Eu sou o portão de entrada. Se todas as noites você vier, eu irei ler um pouco dela para você. E deixarei que você a conheça e entre nela. Se todas as noites você vier, estará vindo à minha terra.”

Peter acenou, entendendo. Ele ergueu seus dedos, em cujas unhas a sujeira se esgueirara, mas eu bati em sua mão e não deixei que ele tocasse em meu mundo de maneira tão desleixada. Pan gemeu.

“O que há de especial em seu mundo?”

“É uma terra mágica. E é mágica de verdade, menino! Tão mágica que você não precisa saber voar pra chegar até ela.”

Peter parecia quase convencido.

“Tudo bem, eu vou vir pra sua terra. Mas, depois, você deverá vir à minha e contar todas as histórias de sua mãe para os meninos perdidos.”

“Mas eu não estou perdida.”

“E nem é um menino” Peter deu de ombros. “Mas não tem problema. Temos um acordo?”

Eu acenei e assim selamos nosso pacto com um aperto de mão, tendo por testemunhas olhos de um verde profundo, um sorriso de infantil prepotência e a luz poeirenta de uma fada ao nosso redor.


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Notas finais do capítulo

Até mais!



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