Sob o Olhar de Notre Dame escrita por Lily the Kira


Capítulo 5
Antes da Tempestade


Notas iniciais do capítulo

No último capítulo nós vimos que Madame Frollo, que sempre protegeu Quasímoda de todos os comentários maldosos das pessoas más da cidade, pegou realmente pesado com a garota, coitada.
Este aqui é aquele capítulo em que tudo deveria ficar bem, por um momento a gente até se engana achando que vai dar tudo certo... mas não, senhor.

Só tenho uma coisa a dizer: "God have mercy on him". Quem pegou a referência comenta aqui.



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Claudia não dormiu naquela noite. Seu quarto pareceu mais frio do que nunca e, como que para piorar ainda mais seu ânimo já abalado, uma tempestade violenta caiu sobre Paris. Os trovões a assustavam, a chuva caía com força total e o vento, que uivava alto, parecia na realidade um coro de almas penadas.

A ministra revirava-se de um lado para o outro, revivendo cada momento daquele dia terrível. Primeiro, Esmeraldo dançando. Depois, a afilhada coroada como Rainha dos Tolos depois de desobedecê-la. Por fim, a ameaça do cigano e a tristeza de Quasímoda.

“Fique longe de mim, sua louca! Se chegar perto de mim de novo, eu é que serei capaz de matar você!” Essas palavras não eram apenas duras e Esmeraldo, ao dizer aquilo, não apenas feriu Claudia profundamente. Ele cometeu um crime gravíssimo, cuja pena poderia ser, inclusive, a morte. A ministra era obrigada a denunciá-lo por aquilo.

— Como ele pôde? – o peito de Claudia latejava, a tristeza, a vergonha e a mágoa atacavam sem piedade, junto com o pavor de, pela primeira vez, não querer cumprir um dever do qual não podia fugir - Mas, mesmo assim, não posso fazer isso. Não vou prendê-lo. Não suportaria lhe causar mal!

“Você precisa! É a lei!” uma parte de sua mente, que a dominou durante toda a sua vida e que geralmente falava com a voz de sua mãe, respondeu com severidade.

— Foi um mal-entendido! Ele tinha razões, eu me excedi, o machuquei e ameacei e ele notou o que eu sentia. Céus, ele notou! – Claudia, mortificada, enterrou o rosto entre as mãos, incapaz de conter as lágrimas – Como posso acusá-lo de algo que eu mesma dei causa?

“Que vergonha. Você se comportou com a pequena Laurette. Lembra-se dela? Da menina que precisou fugir de Paris por não suportar a vergonha pelo que fez? Ela também se deixou encantar por um cigano!”

Claro que Claudia ouvira a história de Laurette. Tudo havia acontecido quando ela ainda tinha seus quinze anos de idade. Laurette era a filha de um rico senhor feudal, uma menina de grande beleza, cabelos cor de mel e impressionantes olhos dourados. Seu pai, rígido como era, mantinha um olho bem aberto em cima da filha para que ela nunca fizesse qualquer tolice, e parecia que essa medida havia dado resultados pois, aparentemente, Laurette era ajuizada, recatada, obediente.  Era uma filha e uma dama exemplar.

Qual não foi a surpresa de todos quando surgiu a notícia de que mademoiselle Laurette fora mandada embora de casa pelo pai pois se deixara envolver por um cigano. Não que as senhoras fuxiqueiras não tivessem desconfiado semanas antes da palidez da menina e do seu vestido apertado na cintura, mas foi a terrível confirmação daquele fato que mexeu com todos em Paris.

Claudia, à época, foi severamente advertida pelos pais a não cometer o mesmo erro de Laurete, e essa história tão triste marcou-a de tal forma que ela teve medo até mesmo se aproximar demais de qualquer moço, em especial de jovens ciganos. E agora... ali estava ela, talvez tão encantada quanto Laurette um dia esteve.

“Você está à beira de um precipício! Um passo em falso e sua vida e reputação estarão arruinados. É isso o que quer?” a voz severa advertiu-a mais uma vez, o desespero aumentando a cada segundo.

— Isso não acontecerá comigo! – Claudia respondeu, esforçando-se ao máximo para convencer-se disso.

“Prenda aquele cigano! É a lei, é seu dever como ministra!”

— Não! – a ministra lutava bravamente, a ira crescendo dentro dela junto com o desespero.

“Então seja como Laurette e caia nos encantos de Esmeraldo de uma vez, sua tola. Já está perdida mesmo!”

— Já chega! – Claudia levantou-se bruscamente e socou com força um móvel, os olhos cinzentos bem abertos, a ira vencendo o desespero – Ele não irá me vencer, não vou cair nos encantos de ninguém e não darei a ele o gostinho de saber que me atingiu!

Os pensamentos acalmaram-se após aquela explosão de fúria, Claudia venceu aquela batalha e decidiu que, daquele dia em diante, não pensaria mais em Esmeraldo. Bastava esquecê-lo, não vê-lo mais, não dar importância ao que sentiu por ele e tudo ficaria bem.

O dia amanheceu claro, sem qualquer sinal da tempestade da noite anterior. Paris ouviu o soar dos sinos de Notre Dame mas notou que sua melodia parecia melancólica e sem graça, não combinava em nada com aquela manhã alegre.

Quasímoda dormiu pouco na noite anterior, as palavras da madrinha ainda feriam sua alma, junto com o remorso que sentia por desobedecê-la. Nem a companhia de Esmeraldo e a promessa de que ele voltaria para vê-la eram suficientes para alegrá-la. Hoje ela estava particularmente desanimada, tão desanimada que nem se deu ao trabalho de pentear os cabelos ou colocar uma roupa limpa.

Quando os sinos silenciaram, a garota suspirou, entediada, e debruçou-se sobre sua mesa de trabalho, observando o modelo de Notre Dame e registrando mentalmente todas as mudanças que teria de fazer em seu modelo mas que não tinha a menor vontade de executar agora.

Distraída como estava, Quasímoda não escutou os passos delicados que soavam na escadaria. Quando madame Frollo entrou no cômodo, viu a afilhada abatida, com olheiras, desarrumada e mergulhada em tristeza.

— Filha... – a ministra começou, aproximando-se da garota, que deu um salto ao finalmente se dar conta de que Claudia estava ali – Creio que precisamos conversar seriamente.

O tom de Claudia era ameno, maternal, mas Quasímoda não registrou essa mudança em relação à fúria da madrinha no dia anterior. As palavras duras da ministra ainda a feriam e ela, mesmo crendo que merecia aquela bronca, não queria ouvir mais.

— Você nunca mais vai fazer o que fez ontem, não é? – Claudia encarou a afilhada e a garota limitou-se a negar com a cabeça, ainda sem coragem de encarar a ministra.

— Ótimo. – Quasímoda notou que a madrinha pareceu dar aquele assunto por encerrado e finalmente ergueu a cabeça – Não quero que nada de mau aconteça com você, entende? Ver você naquele palco ontem... céus, filha! Não sabe o quão terrível aquela visão foi para mim!

— Eu sinto muito, madrinha – a garota finalmente falou, em um fio de voz – Se eu soubesse que toda a cidade iria dizer que tenho o rosto mais feio de Paris... até a senhora pensa assim.

Claudia arregalou os olhos e relembrou as palavras duras que dirigira à afilhada no dia anterior, após a briga que tivera com Esmeraldo. “Espero que agora perceba a malícia de tudo isso e deixe, pelo menos, de ser a criatura mais estúpida da cidade, já que sua aparência é impossível de corrigir”

— Não, eu não penso assim! – a ministra apressou-se a dizer enquanto segurava firmemente a mão da afilhada, o remorso queimando-a por dentro – Eu estava furiosa, jamais devia ter falado aquilo, perdoe-me.

Quasímoda notou a tristeza e a sinceridade nos olhos da madrinha e sentiu uma onda de carinho por ela, capaz de varrer para longe a tristeza e o remorso. Quando viu, a garota a estava abraçando e chorando, repetindo todo o tempo que sentia muito e que só queria que aquilo terminasse, que ambas esquecessem daquele dia horrível e ficassem bem. Claudia sorriu, abraçando a afilhada com carinho e decidindo-se a fazer exatamente isso.

Mas aí Quasímoda lembrou-se de Esmeraldo e, julgando que devia uma explicação a Claudia, a garota começou, mais confiante.

— Madrinha, eu sei que a senhora disse que Esmeraldo devia ficar longe de mim, mas eu preciso lhe dizer que ele veio aqui ontem para me pedir perdão, já que foi ele quem me apontou como candidata a Rainha dos Tolos. Ele foi gentil, não se importou com minha aparência e em momento nenhum quis me fazer qualquer mal.

Claudia escutou aquilo estática, vendo o brilho nos olhos da afilhada. Sim, ela sabia que Esmeraldo foi à catedral após o festival para ver Quasímoda e foi isso que gerou a briga entre ambos, a insônia da ministra, seu conflito interior, a paixão cada vez mais forte. E agora isso era a causa de uma alegria perigosa no rosto da garota inocente e pura que estava à sua frente, que não merecia a dor de um amor não correspondido.

E, para completa estupefação de Claudia, uma onda de ciúmes a invadiu e seu rosto involuntariamente se fechou. Quasímoda notou a mudança na madrinha e sentiu medo.

— Madrinha, eu... – a garota começou mas a ministra a interrompeu sem ousar encará-la.

— Não quero aquele feiticeiro perto de você. – seu tom era baixo mas categórico, e Claudia insistia para si mesma que essa precaução era apenas para proteger Quasímoda, que não tinha qualquer relação com o sentimento forte cuja existência a ministra decidira-se a negar – Ciganos não são confiáveis e, quanto mais parecem gentis, mais astutos são.

— Mas... – Quasímoda tentou mais uma vez.

— Eu disse não! – Claudia explodiu, incapaz de se conter, assustando-se com a própria reação mas vendo o desespero crescer cada vez mais. Quasímoda, petrificada, encarou-a de volta. Pela primeira vez em toda a sua vida madame Frollo elevava a voz para ela. O choque a manteve calada enquanto a madrinha afastava-se, parecendo ainda furiosa.

— Se eu ver aquele cigano perto de você, serei obrigada a prendê-lo. Ontem ele cometeu um crime grave, pelo qual só não foi levado ao Palácio da Justiça por mera clemência minha. Mas se ele sair um passo da linha, ele será julgado e muito provavelmente executado. Então é bom que, dessa vez, você me obedeça, Quasímoda.

A garota estava definitivamente pasma agora. O rosto de madame Frollo estava completamente diferente: a madrinha estava mortalmente pálida, os olhos sem brilho, uma ira gélida estampada em seu olhar. Não parecia a mesma pessoa que ela sempre conhecera: calma, gentil, paciente. E Esmeraldo, além de tudo, estava correndo perigo. Ele não podia vir vê-la à tarde, como prometera. Se isso acontecesse, se madame Frollo soubesse, ele estaria perdido.

— Madrinha, se ele vier me ver, eu dou minha palavra que não o receberei mas, por favor, não o prenda. – Quasímoda implorou, mal avaliando o que dizia ou como dizia – Foi tudo minha culpa, não dele, eu juro que não desobedecerei mais a senhora, que não irei mais vê-lo, só não o prenda.

Claudia, ouvindo as súplicas da afilhada, concluiu corretamente que Esmeraldo então viria ali mais vezes para ver Quasímoda e isso a enfureceu de tal maneira que ela, pela primeira vez, sentiu-se definitivamente inclinada a prendê-lo. O que, afinal, ele queria com a garota? Por que se arriscar a ir até lá para vê-la depois de todos os avisos que recebeu? Será que o cigano, por algum motivo, importava-se tanto assim com Quasímoda a ponto de desafiar a própria ministra Frollo? Esmeraldo, por um infeliz acaso, a amava?

“Meu, de mais ninguém!” o pensamento cortou a mente de Claudia e ela estreitou os olhos, decidida.

— Ele não voltará aqui se tem amor à própria vida. E você, se me desobedecer novamente e recebê-lo aqui, saiba que quem pagará o preço será aquele maldito cigano. Pense nisso.

Claudia deixou Notre Dame e rumou para seu gabinete no Palácio da Justiça. Enquanto caminhava, a ministra sentia-se pouco a pouco mais lúcida, a ponto de repensar cada uma das palavras duras que disse a Quasímoda.

“O que está havendo comigo?” ela pensava, assustada “Como pude me deixar levar pela ira daquela maneira? E.. Como pude deixar aquele pensamento terrível me dominar? Aquele cigano jamais poderia ser meu, e eu jamais deveria sequer cogitar tal coisa!”

O caminho entre a catedral e o Palácio da Justiça era curto, Claudia não demorou a chegar em seu destino mas o medo, os pensamentos sombrios, o remorso, tudo o que havia de pior em sua mente, tornavam aquela pequena caminhada uma verdadeira tortura que nunca acabava. E, para coroar, o som de um pandeiro tirou Claudia de suas reflexões e ela encarou, completamente estupefata, ninguém menos que Esmeraldo dançando ali, na praça em frente ao magnífico palácio, rodeado de pessoas encantadas, alheio a tudo, feliz, magnífico.

A ministra parou onde estava. Se pretendia segundos atrás prendê-lo, esse pensamento sumiu por completo de sua mente. Ela não seria capaz disso, alguém como Esmeraldo não merecia um destino tão terrível. Além disso, ela mesma foi quem dera causa à reação violenta do rapaz quando o confrontou e ameaçou, e ainda por cima, ao que parecia, invocou nele lembranças dolorosas de seu passado. 

Completamente enfeitiçada, Claudia foi andando lentamente mais para perto de Esmeraldo, os olhos brilhando e acompanhando cada movimento que ele fazia. O rapaz não a notara ali e ela rezava para que ele permanecesse alheio à sua presença.

Somente as badaladas do sino de Notre Dame foram capazes de trazê-la de volta, lembrando-a de que o dever chamava. Assustada, a ministra retirou-se discretamente, ainda com os olhos pregados no cigano, e entrou em seu gabinete, respirando com dificuldade. O dia passou sem que ela realmente percebesse, sua mente completamente entorpecida por aquela visão tão magnífica de Esmeraldo dançando energicamente na praça. Claudia agora torcia para que pudesse sair logo para vê-lo novamente. Se alguém notou o quão alheia ela estava, madame Frollo não sabia dizer, mas ela pouco se importava com isso naquele momento.

Entretanto, quase no final do dia, uma batida sonora na porta soou em seu gabinete. Claudia assustou-se e olhou para as pesadas portas duplas de carvalho à sua frente, sem vontade alguma de receber quem quer que fosse.

— Entre – disse ela maquinalmente, e o procurador real entrou no gabinete, seu rosto fechado e uma pilha de papéis em suas mãos. Claudia estreitou os olhos.

— O que aconteceu? – ela perguntou, ciente de que um crime grave acabara de ocorrer para que o procurador estivesse naquele estado.

— Mademoiselle Laurette de Beaufort foi encontrada morta enquanto visitava Paris, ministra Frollo, e o cigano Esmeraldo foi visto nos arredores da residência dela no momento do crime. Segundo consta, mademoiselle Beaufort foi viver no interior da Espanha após deixar Paris, e lá ela teve uma grave desavença com o cigano em questão.

“Já passei por isso com uma mulher nojenta exatamente do seu tipo, mas nunca mais! Nunca mais!” Claudia relembrou as palavras de Esmeraldo e suas entranhas se reviraram. A tal mulher era Laurette, então? A raiva e repulsa nos olhos do cigano eram tamanhas que ele realmente seria capaz de matar Laurette se a visse novamente.

— Estes são os autos, ministra. Em nome do Rei da França, peço pela prisão do cigano Esmeraldo por crime de homicídio. – o procurador concluiu, segundo o rito processual e Claudia sentiu mais uma vez que uma lança perfurava seu peito. Agora não havia nada que ela pudesse fazer: Esmeraldo precisava ser preso e julgado e, quem sabe, executado.

Sem dizer qualquer palavra, a ministra redigiu a ordem de prisão e entregou-a ao procurador, seu rosto inexpressivo e sua alma tão vazia e desolada quanto um deserto.

— Defiro o pedido de prisão e instauro o processo criminal contra o réu. Assim que ele for preso, que seja trazido até mim para interrogatório. 


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Notas finais do capítulo

Esse, leitor, é o fim do primeiro ato. A partir de agora a treta tá estabelecida. Torçam por Esmeraldo. É só o que eu tenho a dizer.



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