Paz e Ruína escrita por P B Souza


Capítulo 1
Capítulo 1




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Ninguém imaginou que o desfecho da guerra seria assim. Depois de tudo o que aconteceu, a gente esperava um tipo de recompensa, talvez nem recompensa, mas certamente esperávamos por paz. Paz entre as ruínas, meu pai dizia que era isso que teríamos no final.

Ele acertou metade.

— Pega ela! — Ouvi os gritos dos Urubus.

Corri pelo corredor daquele prédio, as folhas ainda espalhadas pelas mesas de um antigo escritório farfalhavam conforme eu passava, o chão estava coberto de fuligem e poeira e a luz do sol invadia pelos vãos da estrutura colapsada.

Fiz a curva aonde o chão se quebrava para o precipício do arranha-céu ao solo, dali sai no hall aonde ficavam, antigamente, os elevadores. Agora havia apenas o poço.

— Você não tem mais para onde fugir, passarinha. — Ouvi a voz do Gus, girei nos calcanhares e recuei a ponto de sentir o fosso do elevador atrás de mim. Gus me encarava, pelo mesmo corredor que eu havia vindo, pelo batente lateral na esquerda mais dois homens dos Urubus surgiram.

Eles usavam aquelas roupas carcomidas pretas, sempre caçando o que roubar de todo e qualquer ser vivo, quando não podiam roubar nada de valor, contentavam-se em roubar a vida!

— Vai se foder! — Mostrei o dedo do meio para ele e corri para a direita, rumo a janela. Que você esteja em posição Cros. Não tinha como saber, eu precisava confiar!

Talvez isso seja a parte mais difícil de fazer nesse novo mundo maldito; confiar em alguém. Talvez seja justamente esse excesso de confiança que nos trouxe até aqui.

Foi justamente confiança, ou melhor; a falta dela, que me manteve viva até agora. Só existiu um homem em quem eu confiei em toda minha vida e ele estava morto, assassinado pelo Beija-Flor, o maior traficante da Cidade Minada.

Quando cheguei na janela agarrei nas suas bordas e pulei para fora, o ar abraçou meu corpo, e eu senti a adrenalina nas veias enquanto lembrava da ginastica, os meus dedos entrelaçaram-se no beiral enquanto eu mudava a posição de uma mão, depois a outra, tudo em um segundo... O corpo então caiu para o andar inferior.

— Peguei! — Ouvi a voz de Cros, senti seus dedos nos meus tornozelos e então soltei do beiral da janela, despencando como se fosse rumo a queda livre. Eu estava no sexto, agora quinto andar.

Cros me puxou para dentro pela janela e me agarrou em um abraço.

— Você é louca. Completamente louca!

— Vamos. — Não havia tempo para isso.

A caixa-d’água devia estar sendo esvaziada enquanto eles corriam atrás de mim, mas até quando a distração serviria? Cros viera ao meu resgate quando derrubei a moeda no caminhão pipa, então havia outra variável em jogo. Tomará que eles não tenham achado o caminhão!

Ele abriu caminho para mim, indo direto na escada de emergência, essa parte do prédio estava ainda inteira. Descemos os lances de escadas até o térreo aonde saímos dali para uma sala repleta de moveis abandonados e amontoados, contornamos e no corredor estavam os corpos dos urubus que derrubamos para subir.

— Liga o caminhão. Vou puxar a mangueira. — Cros me disse se separando de mim.

Ele foi para um lado e eu segui para os fundos do prédio.

Meu pai antes de morrer dizia que teríamos paz entre as ruínas. Ele mesmo era um pacifista, de certa forma pelo menos.

Quando sai do prédio me deparei com o estacionamento coberto aonde tínhamos empurrado o caminhão durante a madrugada, passamos quase três horas empurrando um caminhão pipa para evitar sermos detectados pelo som do motor. Agora o sol nascia e nós fugíamos com a água, o plano havia dado quase certo, fomos notados e tivemos que lutar para escapar com a água, mas ali estava, a água!

Subi na cabine do caminhão e girei a chave. O motor não quis ligar de primeira, então pisando na embreagem e girando a chave tentei mais duas vezes para ele ligar só na terceira tentativa, com o combustível sujo que tínhamos não era difícil os motores pararem de funcionar, mas era o que tínhamos e nós aprendemos a lidar... Ou você se adapta ou não sobrevive.

Cros apareceu, soltou a mangueira do caminhão, e prendeu a corrente de dentro da mangueira (nós também planejamos isso, um pequeno truque, uma corrente passada por dentro da mangueira) no engate do caminhão.

— VAI! — Cros berrou, dando tapas na lataria do caminhão-pipa, enquanto se agarrava e subia no topo dele. Eu pisei no acelerador e olhei pelo retrovisor o estrago que faríamos.

Cros não foi soltar a mangueira para que pudéssemos reaproveitar ela, mas sim soltar ela do encanamento e prender a corrente na coluna. Quando eu acelerei a corrente presa no engate se esticou e tencionou. O puxão fez a coluna de sustentação do prédio estourar em algum lugar lá dentro. O caminhão patinou e então a corrente estourou também. Saímos pela garagem para a rua. A coluna estourada fez o prédio inteiro vibrar.

— A porra toda vai cair. — Cros urrou do lado de fora, ouvi ele correndo no topo do caminhão enquanto via pelo retrovisor as poucas janelas inteiras do prédio estourar conforme sua estrutura parecia ceder sob o próprio peso. Então Cros surgiu pela porta do passageiro, abrindo-a e caindo no banco com um sorriso malandro naquele rosto indecente. — Você conseguiu! Porra, você é demais!

Ele agarrou minha mão, e eu sorri para ele vendo nos olhos de Cros que ele me amava e idolatrava aquela imagem que tinha de mim, enquanto isso o caminhão cruzava a rua deserta repleta dos carros abandonados e destruídos de uma cidade fantasma habitada apenas pela escória remanescente de uma sociedade decadente.

Quando pequenos nos ensinam que no dia do julgamento as boas almas serão arrebatadas e na terra ficará apenas a escória, os que ficarem para trás deverão buscar arrependimento para herdar o reino dos céus, os que não se arrependerem estarão então fadados ao sofrimento eterno... Eu nunca fui ligada a religião, mas cresci ouvindo essas histórias da minha mãe até o dia que eles a tiraram de mim. Então do meu pai, até o dia que tiraram ele de mim também. Às vezes eu me perguntava porquê? O que eu tenho que me arrepender? Qual o meu pecado? Eu só perdi, sofri, chorei. Até o dia que parei de chorar... Até o dia que comecei a revidar.

Cros segurava minha mão enquanto atrás de nós o prédio ruía em cima de todos aqueles homens dos Urubus, quantas vidas? Eu sequer sabia, e, de verdade, sequer me importava. Talvez esse fosse um dos meus pecados... Um dos, mas não o único.

Soltei a mão de Cros para segurar o volante com mais firmeza, a nuvem de poeira cobriu nosso caminho e eu precisava de mais cuidado ao dirigir, se batesse o caminhão e perdesse aquela água era o fim.

Minha mãe me ensinou muito sobre bondade, generosidade, sobre o caminho certo, o caminho justo. Ela me ensinou tudo que eu não faço... Ela fez, ela está morta. Meu pai me ensinou a sutil arte de negociar com meus inimigos, de buscar entendimento, de buscar a paz. Ele me ensinou tudo o que eu não faço, ele está morto. Podem me chamar de a filha rebelde, a ovelha negra da família, mas não vou morrer, não vou me entregar. Não vou parar até que o último homem esteja caído, até que a última bala seja disparada. Até que a última gota d’água seja derramada... Eu vou continuar.

Porque se for verdade, se eles tiverem sido arrebatados e estiverem em paz, a minha única certeza é que estou condenada... Aqui ou depois. Paz e ruína não é uma opção. Confiar não é uma opção. Sobreviver é meu único caminho, e vou trilhar esse caminho até o final, até as ruínas se tornarem pó, e eu engasgar no pó da própria desgraça que causei... Mas vou levar cada um deles comigo!


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