Femismo escrita por Otakórnio


Capítulo 2
Adolescente (parte 1)


Notas iniciais do capítulo

William está mais velho, agora um adolescente



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/781532/chapter/2

   Isolado em um canto da festa estava eu. Sentado em meio a conversas e risadas de crianças eu hesitava. Não comi os docinhos porque estava de dieta, apesar de ter dado espaço para o bolo. Havia uma música distante para mim e alta para os vizinhos. Nem me lembro de quem era o aniversário, pois estava absorto. Suspirava e olhava para cima várias vezes.

   “William, eu vou buscar teu primo do trabalho. Quer ir comigo?” – a namorada do meu primo Renan me trouxe de volta para a Terra.

   Queria ir e me distrair um pouco, mas algo sempre me dizia para não ficar sozinho com uma mulher. (Não lembrava o porquê, mas lembrava-me do sentimento). Recusei com simpatia e peguei meu celular.

    “Eu vou contigo!” – meu primo Tales, uma criança na época, correu para perto dela. Tales gostava de sair, não era o tipo caseiro. As duas foram de carro trazer Renan.

   Com meu celular moderno acessei a internet e abri o perfil dela numa rede social. Jane. Ela havia se mudado alguns meses atrás para outra cidade, mas continuava no mesmo colégio que eu. Ela me disse que pediu ao seu pai para continuar estudando lá até o ano acabar. Jane me disse que acordava muito cedo e tinha que pegar um ônibus lotado. (O que eu lamento muito para quem nem ao menos trabalhava).

   Observei a foto de perfil. Pele morena, cabelos ondulados e olhos cor de âmbar. Não era feia. Achava-a consideravelmente bonita. Porém toda sua beleza sumia quando ela falava. Tinha um pensamento retrógrado e sempre me fazia um comentário idiota sobre qualquer coisa. (Uma vez um aluno novo se assumiu gay para nós dois. Foi de repente, durante o intervalo, acho que ele precisava contar a alguém. E eu ouvi claramente quando ela disse que não existe homem gay, que é só um fetiche porque não tem como haver sexo sem uma vulva envolvida. Eu sei que ela ia dizer que podia resolver o “problema” dele, mas eu a fiz parar de falar antes que o garoto ficasse mais chocado). Como minha avó dizia, “você ela calada é uma poeta!”. E eu estava com um complicado dilema – ela havia pedido para ficar comigo.

   Eu já estava no Ensino Médio e ainda não tinha beijado ninguém. (Naquela época me considerava assexuado porque eu não sentia o mínimo de desejo, seja por mulheres ou homens. Porém naquele ano eu finalmente senti curiosidade e só estava esperando uma menina pedir para me beijar – porque eu achava que não podia pedir por ser homem. Jane foi a primeira. Sinceramente eu aceitaria qualquer uma facilmente. Eu acho. Mas Jane falava tanta besteira que me deixou na dúvida se aceitava ou não).

   Era só um beijo.

   Mas e se seu beijo tivesse o gosto das suas palavras?

   Não era como se fossemos nos envolver sentimentalmente.

   Mas e se suas palavras cruéis se transformassem em ações?

   Minha mente discutia comigo mesmo. Eu não queria discutir com uma pessoa de verdade – um primo – porque eu não queria que minha família soubesse que eu pretendia beijar alguém. Não queria que criassem boatos de namoro ou pior. Eu sempre via minhas primas se gabarem de noites de sexo ou beijos quentes. Mas lembro bem quando meu primo Emanuel disse, em segredo, para mim e Renan sobre quando ele perdeu a virgindade. Eu fiquei surpreso e envergonhado; Renan pedia todos os detalhes possíveis – e como Emanuel não contou nenhum, o próprio Renan os acrescentou na história quando espalhou para a família inteira. Emanuel é mal falado até hoje por ter perdido a virgindade “cedo demais” aos dezessete anos.

   “William.” – ao ouvir a voz do meu pai guardei meu celular com pressa – “Vem me ajudar com a limpeza!”

   Antes de entrar na cozinha pude ver todas (literalmente) as mulheres saírem da casa, além de crianças menores. Apenas os homens ficaram para fazer a limpeza. Eu já havia percebido que mulheres raramente faziam trabalhos domésticos: minha mãe só cozinhava quando meu pai não estava e minha irmã nunca jogava algo no lixo – papel, plástico, os restos do almoço; ela literalmente jogava nada no lixo. Eu percebi isso especialmente naquele ano. Eu já era um adolescente e meus pais não se preocupavam tanto em deixar eu e minha irmã sozinhos; às vezes eles saíam juntos em encontros ou só tinham que trabalhar até tarde. Foi nessa época que meu pai começou a exigir minhas obrigações como homem. Ele sempre pedia para eu varrer a casa, arrumar meu quarto, fazer o almoço, lavar os pratos. Ele sempre reclamava se eu não fizesse uma dessas tarefas; com pouco tempo eu percebi que minha irmã fazia nada e ninguém reclamava. Eu ficava irritado quando via copos na cama, embalagens espalhadas pela casa, restos de almoço dentro de um prato... Coisas que Raquel poderia fazer sem esforço, mas ela nasceu mulher e nunca teve essa obrigação. O que me deixava intrigado – por quê?

   “Por que nenhuma mulher vai nos ajudar?” – perguntei. Eu estava recolhendo todo o lixo do chão: pratos e copos de prato, papéis, embalagens de presentes.

   “Esse é um trabalho para homens.” – meu pai limpava os restos de comida e bebida jogados no chão. Mesmo sem estar presente, eu sabia que, além das crianças, as maiores culpadas pela sujeira eram do gênero feminino.

   “Mas elas também sujaram. Na verdade acho que as mulheres fazem mais sujeira que homens...”

   “Sim, mas temos mais força física. Seria injusto não limpar.”

   “Não acho que limpar vai fazer alguma mulher perder a mão.”

   “Homem tem mais facilidade com essas coisas!”

   Era inútil discutir, e isso me irritava. Já tive discussões parecidas com essa mais vezes do que podia contar. Eu vivia isso. Limpava minha sujeira e da minha irmã porque tinha mais facilidade. Ao voltar da escola eu tinha que ajudar a fazer o almoço, depois do almoço eu tinha que lavar os pratos, antes de anoitecer eu precisava varrer a casa. Enquanto minha irmã só dormia e ficava no computador o dia inteiro. Eu tinha certeza que meus pais estavam me castigando de algo – até perceber que isso também acontecia com muitos amigos e primos meus. Acho que, na verdade, o mundo castigava os homens.

   Apesar de irritado de injustiçado, ajudei na limpeza. Dentro da casa havia um clima agradável de conversas e ajuda; fora da casa as mulheres faziam um churrasco para ter uma desculpa para beber.

   A noite passou rápido porque eu estava distraído. Discutindo comigo mesmo sobre se devo ou não criar coragem e dar meu primeiro beijo, não percebi o que acontecia a minha volta. Percebi quando Renan e sua namorada chegaram para comer o churrasco. Mas não notei que Tales havia se isolado – incomum para alguém com uma personalidade como a sua – e ficou quieto por horas. Não percebi quando ele me olhou pedindo ajuda. Não percebi quando ele pediu as chaves para o pai e foi o primeiro a ir embora da festa. Distraído com meu próprio mundo, não vi o mundo a minha volta. E, aparentemente, eu não fui o único a fazer isso. Era uma festa familiar, havia muitos parentes ali e ninguém percebeu uma criança com comportamento incomum.

   Quando estava indo para casa lembrei vagamente que Tales não falou comigo a festa inteira. Mas logo me distraí outra vez e finalmente consegui chegar a uma conclusão.

   Ia ter meu primeiro beijo. Era só um beijo, afinal!

   Por nervosismo escovei meus dentes três vezes. Para ser mais atrativo usei um batom sem cor para deixar meus lábios brilhantes. Pesquisei na internet como beijar e treinei no espelho. Ainda não me sentia pronto, mas fui porque estava curioso. Depois da aula saímos da escola e fomos para o condomínio onde eu morava. Conversamos, enrolamos, fomos para um canto isolado perto da quadra. Naquele horário as crianças e adolescentes almoçavam, então o condomínio ficava vazio principalmente no parque e na quadra. Levei-a para a quadra porque sabia que ninguém iria para lá, além de que era um lugar onde a maioria dos prédios não tinha uma boa visão. Éramos só nós dois. Só nós dois. Só nós. A sós.

   Foi horrível.

   Tudo deu errado a partir do momento em que nossos lábios se tocaram. Por ser meu primeiro beijo achei a sensação muito estranha, bem diferente do que eu esperava. Pior foi quando Jane apertou minhas nádegas. Pior ainda foi quando eu reclamei e ela não parou e ainda falou que “homens têm essa mania de mentir”. E o ápice do meu desgosto foi quando tentei ir embora e Jane me agarrou e me deu incômodos beijos forçados.

   Ali lembrei porque estava em dúvida se devia beijá-la ainda que um beijo não fosse nada de mais. Lembrei que Jane não apenas falava besteira, como fazia. Pensei em como nos conhecemos desde crianças e das coisas que ela dizia e fazia quando era mais nova. Lembrei de quando Débora, uma menina da vizinhança, tentou me beijar forçado e Jane riu. Lembrei de quando Jane teve certeza que um menino no ônibus se interessou por ela apenas porque ele segurou seu braço quando o veículo deu uma parada brusca. Lembrei de quando ela chamou Emílio, meu melhor amigo, para sair durante semanas apenas porque ela o ouviu falando comigo sobre masturbação. Lembrei de quando ela falou para um novato na escola que não existe homem gay. Foram pequenos detalhes que me deixaram uma noite inteira em dúvida se eu deveria apenas beijá-la. Um beijo não é nada de mais, certo? Pois bem, lá estava eu preso numa situação totalmente desconfortável por causa da minha péssima escolha. Um beijo. O que eu estava pensando? É perigoso beijar idiotas.

   E eu também sou idiota por não ter pensado ainda mais.

   Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota. Idiota.

   No que eu estava pensando? Por que fui aceitar Jane? Estava bem na cara que não ia dar certo. Ah, por que fui para um lugar tão isolado com ela? Por que fiquei com vergonha de alguém me ver ficando? O que eu fiz? Por que eu sou tão idiota?

   Foi humilhante chorar. Foi humilhante empurrá-la no chão e sair correndo. Foi humilhante e era minha culpa. Foi humilhante chegar em casa chorando e ter que explicar ao meu pai.

   “William...” – meu pai secou minhas lágrimas – “Você tem que tomar cuidado. Mulheres não são de confiança e você tem que estar atento.”

   “O que eu faço agora? Ela estuda na mesma sala que eu.”

   “O silêncio é a melhor resposta. Apenas a ignore!”

   (A consequência daquele beijo foi minha raiva. Sentia-me culpado e humilhado, ao mesmo tempo em que sentia ódio e injustiçado. Com aquele beijo lembrei o porquê de não querer ficar sozinho com uma mulher).

   Sentia que havia algo errado no que meu pai me disse. Seu conselho não me parecia certo, mas ainda assim o segui. Bloqueei Jane nos meus contatos e a ignorei na escola, mesmo ela tentando falar comigo como se nada tivesse acontecido. Ficava assustado quando ela se aproximava e sentia muita raiva quando a ouvia rindo.

   “Por que você não ta falando com Jane?” – Emílio me perguntou no intervalo.

   “Eu fiquei com ela e foi o suficiente para eu não querer mais beijar uma mulher.” – expliquei o que aconteceu com detalhes.

   “Ah, eu acho que ela só queria ficar mais tempo contigo.”

   “Como assim?”

   “Tu disse que ela te abraçou quando tentasse sair, né? Acho que ela só queria continuar te beijando.” – ele sorriu – “Talvez se saísse bem no primeiro beijo.”

   Essas palavras também me pareciam erradas.

   Me senti impotente. Ao voltar para casa não falei com meus amigos no caminho. Estava triste e com raiva. Um beijo forçado... Senti nojo de Jane, uma garota que conheço desde criança. Ela agora parece tão errada que achei que ignorar não é suficiente. Digo, ela nem se sentia culpada. Eu disse não e a empurrei; bloqueei ela em todos os contatos e nem a olho mais. Para ela isso era nada. “Ela vai ter o que merece. O que se faz na Terra, se paga na Terra!” – foi o que papai me disse ontem. Ignorar e deixar para lá. Aquela sensação não me era estranha. Acho que já me aconteceu algo parecido há muito tempo...

   “Will, vem me ajudar com o almoço.”

   Notei que Raquel chegou mais cedo que eu. Ela estava deitada no sofá, mexendo no celular.

   Depois do almoço tirei um cochilo na cama. Sonhei com o passado. Lembrei da minha tia Luiza e de uma sensação de terror. Vi as mãos dela que me puxavam e me tocavam, logo em seguida vi mãos mais jovens puxando meu quadril e dessa vez era uma boca que tocava a minha. Acordei com meu pai me pedindo para varrer o chão.

   Por que essas coisas acontecem comigo?

   “É o seu crime por ser bonito.” – lembrei do que Emílio me disse uma vez.

   É minha culpa?

   Talvez seja.

   Eu sei que não é muito bonito um homem usar short. É um tanto vulgar, mesmo com crianças. Sei que não deveria ter ficado tão próximo de Luiza. Assim como sei que não deveria ter ficado em um canto escondido com Jane. Mesmo elas sendo pessoas conhecidas e teoricamente de confiança.

   Mas... É realmente minha culpa?

   Por que as pessoas ao meu redor me fazem pensar que é minha culpa? Por que meu pai me diz para ficar calado e deixar o universo ou sei lá resolver por mim? Por que meu amigo Emílio me parece errado às vezes?

   É por eu ser um homem? Jane já beijou vários garotos e ninguém fala nada. Raquel já beijou um garoto e foi elogiada. Mamãe já traiu papai e vi várias tias fazendo piadas e a elogiando também...

   Ah, sim. É isso mesmo.

   É por eu ser homem.

   “Seus hormônios estão te atacando, Will?” – ouvi a voz risonha de Raquel. Ela ainda é uma criança e já teve seu primeiro beijo. Foi elogiada, quase aplaudida. Na verdade, ela chegou em casa sorrindo e disse em voz alta. Enquanto eu beijei agora, na adolescência. Foi uma péssima experiência, não tive nada para vangloriar e mesmo se tivesse eu não iria dizer para todos. Porque eu não vejo motivos em espalhar algo assim, e também sei que minha família ia falar várias coisas.

   Enxuguei minhas lágrimas.

   Ah, Emílio, acho que finalmente entendi sua frase. Você a disse errada de propósito? Eu conserto para você:

   “É o meu crime por nascer homem.”

   “Vocês homens choram por tudo!” – Raquel revirou os olhos. – “Ta chorando por que agora? Acabou o teu batom?”

   Agora entendi. É por isso que Raquel nem mamãe não ajudam em casa. É por isso que meu primo Emanuel ficou mal falado por ter dito que perdeu a virgindade. É por isso que Emílio me perguntou timidamente sobre masturbação – ele não tinha coragem de perguntar ao pai. É por isso que sou assediado e ninguém acha estranho.

   Essa é a diferença entre homens e mulheres.

   Há um preço por nascer homem. E há vantagens por nascer mulher.

   E ali, varrendo a casa e ignorando as perguntas da minha irmã, eu chorei. Chorei por finalmente ter percebido minha posição no mundo. Chorei porque eu sabia que por mais que eu sofresse com injustiças e abusos não haveria ninguém para me ajudar – nesse caso eu estava sozinho. Chorei porque estava me sentindo culpado por algo que nunca iria ser culpa minha. E eu não poderia fazer nada quanto a isso.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Femismo" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.