Quam superesse in paradiso escrita por Lara Coimbra


Capítulo 10
O Despertar do Leão


Notas iniciais do capítulo

O nome do personagem novo, assim como alguns detalhes de sua origem e costumes são revelados nesse capítulo, cheio de acontecimentos e eventos chocantes! O nome deste personagem em português significa leão, por isso dei este título.
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Boa leitura!



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Foram três dias de pura agonia e esperança. O náufrago mal se mexia, e balbuciava coisas inteligíveis. Tudo que Mono podia fazer era pingar gotas do suco milagroso em sua boca, rezando para que suas propriedades curassem quaisquer fossem as feridas internas do homem. Mono não conhecia muitos homens, a não ser Wander, Lorde Emon, e seu pai, e para ela uma vida era uma vida. Seus entes lhe protegeram muito do mundo exterior e seus perigos - principalmente dos homens perversos. Ela nem temia muito por si, mas sim por seu menino de chifres. Ela pressentia que sua existência era algo único demais para passar despercebido. O que aconteceria se seu pai o visse, ou mesmo Lorde Emon?

Aos poucos, ela arrastou o corpo adormecido morro acima, à procura de um esconderijo mais eficiente e mais coberto. Seus mantimentos e materiais rústicos ficaram na caverna da floresta, distante demais no momento. Qualquer esforço poderia matar o frágil sobrevivente. A cor de sua pele era algo impressionante: um tom vivo e brilhante, que lembrava caramelo queimado. Seus cabelos eram praticamente sinônimos de sua etnia, além de um pouco longos e encaracolados nas pontas. Ela se lembrava vagamente das histórias de Hege, contando dos misteriosos estrangeiros de Derafus. Era desse jeito que ela os imaginava - bom, ou quase. O sujeito resgatado era alto, além de ter pelos no rosto e no peito. Wander era lisinho, e tinha praticamente a mesma estatura que ela. 

Secando o suor de seu corpo, Mono foi tomada por mais memórias, já que a comparação física entre aquele  diante dela e a pessoa de seu passado veio à tona. Flashbacks de cenas mentais que envolviam o toque entre seu corpo e o de Wander, o cheiro dos cabelos ruivos, o gosto de sua perspiração. A sensação de estar sendo tocada era tão real… Mas antes fosse apenas em sonho, pois o estrangeiro segurava seus pulsos levemente, com seu olhar negro brilhando em gratidão e derramando lágrimas emocionadas. 

“Por favorr… Me diga s-seu nome…”, ele gemeu. “Preciso saber o nome de quem salvou minha vida.”

O sotaque era forte, mas a princesa pôde entendê-lo.  “Me chamo Mono.”

“Mono…”, ele aspirou o som de sua voz como se fosse um perfume. “É um nome de princesa. Tens muita sorte.”

Mono estava sedenta para revelar-lhe sua identidade, mas tinha medo de assustá-lo com o recente trauma sofrido. Não queria que ele passasse pelo mesmo que ela, que se sentisse sozinho dentro de uma imensidão silenciosa. Não desejava seu sofrimento para ninguém. 

“Senhor, sua embarcação se envolveu em um acidente. Você se lembra?”

“Sim.”, ele foi monossilábico, porém lúcido. Suas feições modificavam-se conforme ele revivia o desastre em sua mente. “Onde estão os outros?”

Mono acenou negativamente, cabisbaixa. O homem tentou se levantar, ficando agitado repentinamente, cambaleando e caindo logo depois. Não tinha força nas pernas.

“Nós temos que levá-los! Chame seus aldeões, pegue seus cavalos! No Templo da Adoração eles terão uma chance!”, ele berrava, chamando a atenção de Agro e Saunter.

Mono não entendeu nada de seu destempero nem o que era aquele tal templo de que estava falando. Ela apenas chorava junto, segurando sua mão, suplicando para que ele não insistisse em sair do lugar. 

“Senhor… Não temos aldeões. E só temos uma égua. Somos só eu e meu filho.”

“Como assim não há cavalos ou pessoas? Você está aqui!”, mesmo sem fôlego e sem energia, o homem se arrastou, indo para fora da caverna. Quanto mais ele vermitava, mais areia entrava em suas roupas, que já estavam em trapos. 

Saunter ficou assustado e chorou, agarrando-se à Agro. “Mamãe, o que está acontecendo?!”

“Fique aí. Vou trazê-lo de volta. Ele precisa de tempo…”, Mono chegou a ficar sem ar no final da frase. Ela não teve esse tempo. Não havia ninguém para interceder por ela, e sim, ela que teve de interceder por um bebê abandonado. Em seis anos, Mono não podia se dar o luxo de ser fraca ou insana. 

Morcegos se espantaram e voaram em batelada. Estava muito escuro ainda, apesar de ser fim de madrugada. Apenas fora da gruta que a luz da lua e as nuvens de brilho fosforescente deixavam clara e nítida a paisagem. Vazio. Frio. Silêncio. Um grito de desespero. 

“Senhor… Eu levo você até o local onde ficaram os corpos… Sinto muito, eu… Eu não pude enterrá-los, eu tinha que cuidar de você. Meu filho e eu mal nos viramos com o que temos, me desculpe, eu não consegui fazer um funeral digno para seus amigos.”, Mono também estava em prantos, colocando para fora uma parte do que estava entalado em sua garganta durante todo esse tempo. “Eu nunca achei que veria alguém outra vez, me desculpe, eu tenho tanto para perguntar, eu devia respeitar a sua dor, mas eu não consigo. Eu sinto o que você sente agora todos os dias, todas as noites!”

Escutando às confissões infortunas da jovem mulher, ele fungou e suprimiu seu choro. “Por favor, me ajude a voltar. Está frio.”, o sujeito pediu. Mono deu-lhe apoio e assim voltaram juntos à caverna arenosa. Saunter ainda estava desconfiado, e evitou se aproximar. Já encostado sob uma pedra e coberto por réstias de pano, ele mais uma vez tocou no braço de Mono e lhe disse, antes de descansar: “Não me chame de senhor. Levan, este é o meu nome.”

Da próxima vez que acordou, estava sendo observado muito de perto por Saunter.  Mono e Agro não estavam. Tinham saído para buscar alimento. Como estava mais claro, Levan podia observar melhor os traços do menino. Seus olhos tinham algo de estranho, mas ele não soube especificar. Os chifres eram proeminentes e pontudos. Quando tentou tocá-los, Saunter deu um salto para trás, emburrado. 

“Me desculpe, é que eu nunca vi nada igual.”

Saunter inadvertidamente passou os olhos pela pele de Levan.

“Pelo jeito você nunca viu alguém como eu também…”

O garoto não fazia o tipo tímido, mas as palavras pareciam estar presas dentro dele. Uma mistura de medo, ansiedade, e expectativa. A forma como sua mãe mudara repentinamente seu comportamento fez também com que ele associasse tal fato ao aparecimento do náufrago. Ela nunca o havia deixado sozinho, e lá estava ele, largado, junto a um estranho. Já com forças para se manter em pé, Levan estudou o que tinha à sua volta. Ainda estavam na caverna coberta de areia. Ele não parecia incomodado com a natureza do solo, e Saunter também achou aquilo esquisito. Subindo a rocha levemente inclinada para cima, podia-se ver os restos de algo colossal. Uma forma singular no meio do casulo desértico. Um monte de corpo esguio, e uma estrutura dura em uma ponta, com cavidades oculares, saindo da superfície, como uma grande cabeça de animal. 

“O que seria aquilo?”, Levan fez a pergunta, e sem esperar nenhuma resposta, dirigiu-se até o local, deslocando-se pelos infinitos grãos amarelos com facilidade, parecia até uma técnica específica para andar. 

Saunter não se conteve. “Não chegue perto, é perigoso!”

Levan convidou-o a se aproximar, e continuou murmurando. “Isso é… Não… Então é verdade! Alguém veio para derrotá-los! Um sacrilégio!”, sua indignação levou-o a chorar e abraçar o crânio conservado.

Algo dentro de Saunter o fez chorar também, mas não de empatia. Era uma daquelas sensações que o deixavam desconfortável quando se deparava com esses cadáveres mesclados com o próprio meio ambiente. Desde o incidente no lago brumoso, Mono evitava ao máximo acampar perto daquelas coisas, porém, o acontecido nas praias e o resgate de Levan fizeram com que ela improvisasse. Agora, em sua ausência, Saunter estava mais uma vez à mercê dos fenômenos inexplicáveis que acometiam sua voz, visão, e alma. 

As órbitas ficaram azuladas e deformadas, assim como da última vez. Sua pele ficara ainda mais pálida, transparecendo suas veias, escurecidas por uma essência sombria. Levan caiu sob seus pés, admirado. O menino enfeitiçado respirava forte e assobiava pela garganta, emitindo um gemido rouco.


Dunas isoladas na areia, 
Seus vestígios ficam muito bem escondidos,
Fazendo a terra tremer,
Seu olhar paira sobre você.

Levan curvou-se, como se estivesse diante de uma entidade. “Dirge”, ele proclamou, esperando algum tipo de benção. Um golpe potente jogou-o para longe da criança. Mono botou-o na sela junto a si, e levou-o para fora da caverna. Pouco tempo depois, ela veio confrontar o novato.

“Não encoste ou fale com meu filho novamente, entendeu?!”

Sentindo dor, Levan abaixou a cabeça e pediu desculpas. “Eu não sabia que aquilo aconteceria… Eu juro. Seu menino, ele é muito especial.”

“Eu já quase o perdi por causa de um episódio desses. Por favor, nos respeite. Você depende de nós para sobreviver!”, argumentou Mono, agitada. 

O tom despreparado e sem firmeza da moça apenas fez com que Levan percebesse sua pouca idade e inexperiência. Ele podia barganhar ou ameaçar se quisesse, mas ele não era do tipo violento ou oportunista. Assim, como ela, ele só queria sobreviver, mas ele tinha algo que faltava a ela.

“Olha, você também precisa de mim. Eu não sei há quanto tempo está vivendo desse jeito, mas sei que não vai durar muito mais se não aprender a fazer um acampamento, ou estocar comida e água. Seu cavalo pode sofrer desgaste mais rápido do que imagina. Consigo ver em seus dentes, ela não é mais jovem.”

Mono não queria admitir, mas era verdade. Seu plano de parecer durona e sob controle não durou tanto tempo assim. Desde o começo ela contou com a sorte, mas se não fosse capaz de aprender, nunca teria chegado até ali, e criar um bebê da forma como fez. 

“Não me subestime. Você não sabe pelo que passei.”

“E eu gostaria de saber”, Levan estava disposto a cooperar. “Vamos trabalhar juntos. O que acha?”

Mono aceitou, entretanto com ressalvas. Precisaria de tempo para saber até onde poderia confiar no navegante. Ela queria muito conhecer sua história. Seu comportamento frente a Saunter também dava pistas de que ele tinha conhecimentos mais profundos que ela em relação às Terras Proibidas, Dormin, e porquê aquelas coisas estranhas aconteciam com Saunter, que por si só já era diferente.

Ao voltar do transe místico, o pequeno relatou suas visões. Aconteceu assim como no dia que ele se enxergou como um pássaro. Sonhara que era uma serpente na areia, perseguindo alguém. Não estava muito nítido, mas era um cavaleiro montado, que atirava flechas contra seus olhos. “Eu só queria pegar ele, mamãe. Eu estava muito nervoso. O cavalo era preto, igual à Agro”. Ele também relatou que sentia muita dor de cabeça, como se houvesse batido contra algo, depois sentia pontadas nas costas. Isso explicava o motivo de ter gritado tanto. Se olhassem mais atenciosamente, veriam as marcas de lágrimas secas de Mono, que foram abundantes até o fim do tormento.

“Coma mais um pouco deste fruto.”, ofereceu Mono, repartindo entre todos, inclusive Agro. “Acredito que ainda á tarde posso levá-lo de volta à praia, conforme prometi.”

“Eu não quero ir, mãe.”, Saunter não desejava se deparar com corpos humanos novamente.

Mono relutava em abandoná-lo novamente tão cedo. Ela tinha que ser prática. Agro não daria conta de levar os três. Além disso, os cadáveres já estariam putrefatos. Não seria bom para Saunter ficar exposto a tal visão. 

“Me prometa que você vai ficar aqui quietinho, do lado do santuário, até eu voltar.”

“Eu prometo.”, disse ele, abraçando-a com ternura, lamentando ao mesmo tempo.

“Não podemos demorar.”, Mono avisou, agora olhando para Levan.

“Tudo bem, eu só… Preciso me despedir.”

Os restos em decomposição estavam enfileirados da forma como Mono os havia deixado. Águias, caranguejos, e formigas atacavam a carne apodrecida, sem ligar muito para a presença dos humanos vivos na região. Mono e Saunter dividiam a sela, e mal se falaram durante o percurso. Era estranho ficar sentada e sentir a proximidade do quadril de outra pessoa bem atrás dela. Quando Wander a levava para passear, também de cavalo, era ela quem sentava na posição posterior, com a cabeça deitada sobre seus ombros e os braços dando à volta em sua cintura. 

Um a um, os falecidos companheiros de Levan foram reconhecidos e nomeados. Bom, pelos menos aqueles que as águas não levaram. “Siianeq, Adamo, Hinde, e o capitão Semper… Por que todos vocês se foram?”

Mono aguardou enquanto Levan pranteava seus irmãos de navio. Finalmente ele percebera que as vestes que lhe faltavam agora serviam à jovem e o menino de chifres, evidenciando mais o quão precárias deveriam ser suas condições de vida. 

“Eu também empilhei essas ferramentas e peças de metal aqui. Talvez sirvam para alguma coisa.”, revelou ela, gerando um sorriso no rosto do próximo.

“Isso já ajuda bastante! Logo fabricaremos nossos próprios materiais, você vai ver!”, comemorou Levan, que logo providenciou uma forma de levar os objetos consigo no caminho de volta. “O lugar de onde eu vi sempre foi muito árido e os nativos tinham que inventar suas próprias geringonças para extrair matérias primas. Esse conhecimento é passado de família em família até hoje.”

“Mal me pergunte, mas… De onde você veio?, Mono sentiu-se envergonhada ao questionar.

“Achei que estava óbvio.”, afirmou, ao apontar para o tom de sua pele. “Sou de Derafus.”

Mono engoliu em seco. Seu reino estava em constantes conflitos com pessoas derafes. Não era uma guerra declarada, mas sempre gerava muita confusão, e muitas pessoas morriam nesse embate. Sua cabeça estava confusa e suas memórias lhe faltavam também, mas ela podia jurar que Wander também fizera parte das tropas que enfrentavam povos da outra nação. Tinha algo a ver com A Ordem dos Xamãs impedirem a proximidade com as Terras Proibidas, e com o fato de que Derafus reconhecia a lenda de Dormin como parte de sua história e religião. Enfim, a versão a qual ela fora ensinada condenava a cultura e práticas religiosas derafes - o que era outra grande ironia do destino, pois Mono agora dividia seu exílio com ninguém mais, ninguém menos que um homem nascido e criado na terra abominada por seus conterrâneos e entes queridos.


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Notas finais do capítulo

Me perdoem por alguns erros, ainda não tive tempo de corrigir tudo tudo. Eu sempre faço isso depois que posto, aí vou editando, e editando, até ficar nos trinques.
Eu soltei esse capítulo tão rápido em relação ao anterior que não estou nem acreditando. O importante é isso, não deixar a peteca cair, e continuar produzindo. Até a próxima!



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