Nox et Lux escrita por Jor Trindade


Capítulo 3
II.


Notas iniciais do capítulo

Oie. Como estão? Só vim aqui para avisar que não tenho previsão de quando irei publicar o próximo capítulo. As aulas da minha faculdade serão retomadas na segunda, então não sei se terei tempo de revisá-lo. Espero que compreendam. Beijos de luz ♥



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Trigger Warning

Este capítulo contém cenas de abuso sexual que podem servir de gatilho para alguns leitores.

...

Uma atmosfera estranha se instala no ambiente como um vírus. Volto a me sentar em minha posição na roda e agarro os joelhos contra o peito como uma espécie de escudo. Sinto-me enojada, como se tivesse sido despida. Fito imperturbavelmente os padrões geométricos do tapete sob seus pés, claramente tentando impedir que meus olhos vão de encontro aos de Beatrice. Enquanto isso, o rosto de Tris oscila entre frustração e constrangimento. Posso senti-la investigando meu semblante, inconscientemente mordiscando a cutícula do polegar, como se procurasse explicações para o meu comportamento repentino e evasivo.

Tyler volta a colocar a garrafa em jogo. O gargalo aponta para Qiang, que agora está com os dedos entrelaçados, estalando as juntas. Seus olhos de lince são incitadores.

— Verdade ou desafio? — indaga Callum, para quem aponta o fundo da garrafa.

— Desafio, é óbvio. — Qiang estufa o peito, presunçoso.

— Que tal um showzinho de strip?

O asiático balança a cabeça em discordância, bufando.

— É tudo isso que tem a oferecer? Eu preferia algo com um pouco mais de adrenalina.

Callum dá de ombros.

— Vamos ver o preço pelo qual essa sua preciosa bunda punk vale.

Apesar da postura permanentemente inabalável, posso discernir uma nota de hesitação em seu rosto. Qiang entorna o líquido amarelado e quente de uma das garrafas goela abaixo e dobra os joelhos para se levantar. O asiático grunhe no processo e cambaleia até retomar o equilíbrio. Ele sacode a cabeça e aperta as pálpebras em uma linha fina, como se os seus olhos buscassem ajustar o foco. Seus braços pendem languidamente ao lado do corpo. Está totalmente chapado.  

— Preciso de uma música para entrar no clima — anuncia Qiang, alternando passadas ora para a esquerda, ora para a direita, na tentativa de se aquecer. Todos os seus adereços pesados de prata tinem, acompanhando o movimento do corpo.

— É pra já! — Matthew saca o celular do bolso com um sorrisinho jocoso. Seus olhos estão compenetrados no aparelho enquanto os dedos percorrem rapidamente a tela e acessam o Spotify. — Rocket Queen ou Pour Some Sugar On Me?

— Tanto faz, só... vamos acabar logo com isso — diz Qiang, impaciente, e pressiona o dorso do nariz entre o polegar e o indicador. — Esteja eu acompanhado de Guns n’ Roses ou Def Leppard, a humilhação é a mesma.   

— Pensei que fosse mais audacioso — Callum provoca, contudo não recebe nada em resposta.

— Está bem, então — anuncia Matthew enquanto toca a tela do celular com o polegar. A melodia de Rocket Queen, aos poucos, começa a tomar forma, com Slash tangendo energicamente sua Gibson Les Paul. — Veremos como sua performance se sai em meio ao som do sexo selvagem de Axl e Adriana Smith.

Qiang mordisca o lábio inferior e começa a balançar desastrosamente o quadril em um movimento sinuoso e que supostamente deveria parecer sensual. Seu corpo ginga, os passos intercalados em um vaivém demorado. Quando a voz estridente e áspera de Axl Rose reverbera pelo recinto, o asiático despe-se da jaqueta de couro e deixa que o tecido escorregue pelos seus braços até ir ao chão. Matthew emite um assovio e Qiang caminha vagarosamente em sua direção, tomando cuidado para não destoar do ritmo. O asiático acomoda os pés dos dois lados das pernas esticadas do baterista e move a virilha entusiasticamente, a um palmo do rosto de Matthew, que deposita uma nota de cinco dólares no cós da sua calça.

— Aqui estou eu, e você é a rainha foguete — cantarola o asiático, forçando o timbre da voz para que se torne feminina e melosa.

Matthew ri e projeta as mãos para a frente na tentativa de afastá-lo, sem sucesso. Diante da resistência, Qiang se debruça sobre ele e se sacode feito uma serpente, roçando a língua úmida em sua bochecha. A testa de Matthew se vinca em uma expressão contrafeita, e ele limpa o rastro de saliva em seu rosto com a manga do moletom.

— Caralho, eu preciso gravar isso — Tyler declara entre risos.

— Nada de câmeras, bebê. — Qiang sopra um beijo estalado por sobre o ombro para o baixista. — O show desta noite é totalmente exclusivo.

— Uau, agora você quase conseguiu me deixar excitado — debocha Tyler.

O asiático empurra o peito de Matthew com a sola das botas tratoradas e retorna ao seu posto quando o refrão termina. Ele passa as mãos pelo peito, efetuando um trajeto lento e tortuoso até o cabelo, onde enrosca os dedos, e o desgrenha. Quando os gemidos de Adriana Smith emanam do áudio e reverberam pelo ambiente, Qiang se despe das botas e as atira na direção de Tyler, que a apanha no ar, protegendo o rosto do solado sujo de lama seca. O asiático bate palmas efusivas.

— Bela pegada, docinho — Qiang murmura enquanto, ao fundo, Adriana Smith chega ao seu ápice, os grunhidos cada vez mais difusos em meio à melodia.

Os braços magricelos do asiático sacodem no ar, revelando a enorme tatuagem de lobo em padrões geométricos. À medida que os movimentos do seu corpo se acentuam, a caveira punk estampada em sua camiseta do The Exploited ganha vida, os dentes pontiagudos parecendo mordiscar seu mamilo com o vaivém da mandíbula.

— Vamos lá, tire a camisa — incentiva Callum. — Ainda não há pele suficiente à mostra. Não seja tímido!

O restante do grupo ovaciona e assovia em concordância, e o burburinho parece fazer as estruturas pútridas do armazém gemerem em resposta. Eu, diferentemente, encolho-me como se houvesse sido chamuscada por fogo.

— Se esse for o caso, vou precisar de um estímulo extra. — Qiang sugestivamente dirige os olhos para o cós da calça, de onde pende a nota de cinco dólares oferecida por Matthew.

— Você é mesmo um malandrinho ardiloso — exclama Tyler, maneando a cabeça em discordância. Em seguida, tateia os bolsos em busca de uma nota de um dólar e a aninha sob o cós da calça junto da do baterista.

Qiang emite um som de reprovação por entre os lábios e teatralmente faz um beicinho.

— Isso não é o suficiente.

— Seja razoável, você não está com essa bola toda — o baixista lhe lança uma piscadela, e o grupo explode em uma gargalhada quase em uníssono.

— Que seja. — O asiático revira as órbitas dos olhos e enrosca os dedos na borda inferior da camiseta. Seus músculos do braço enrijecem e se retesam quando ele a puxa pela cabeça, revelando o físico esguio e as costelas aparentes sob a pele alva.

— Sinto que os meus cinco dólares foram para a lixeira — zomba Matthew enquanto avalia o quase imperceptível relevo que indica alguns poucos gomos em seu abdômen. 

— Cale essa boca! — rosna Qiang, ultrajado, ao mesmo tempo que projeta o dedo médio em resposta.

— Me parece que alguém teve o seu ego ferido — sibila Beatrice, arqueando uma sobrancelha.

A garota finge cravar uma adaga contra o peito e se dobra em agonia, sucumbindo sobre o tapete. Tyler está se divertindo tanto que lágrimas despontam do canto dos olhos.

De repente, não consigo mais contemplar aquela cena. Sinto-me totalmente desconfortável. Torna-se cada vez mais impossível fingir normalidade diante do comportamento misógino, fetichista e inconveniente de Qiang, sobretudo quando os demais rapazes pareciam coniventes. Pareciam querer atenuar a situação ao pretender que nada havia acontecido.

Sinto o estômago revirar e me levanto de supetão. Os olhares se voltam para mim. A música para, e Qiang interrompe o seu showzinho patético, um pouco contrafeito, com as calças abaixadas até os joelhos. Ele se inclina e apanha a camiseta que está jogada do avesso sobre o tapete, vestindo-a pela cabeça. Em seguida, desliza sobre a sola dos pés e volta-se em minha direção. Tenho a impressão de vislumbrar seus lábios se repuxarem no que aparenta um sorriso, porém há algo de animalesco ali.

— Me desculpe, mas... — finalmente digo em um fio de voz. Involuntariamente, deposito nervosamente a mão sobre o antebraço, um tanto inquieta. — Eu... tenho horário para voltar pra casa. Estou passando as férias na casa dos meus pais e prometi à minha mãe que chegaria antes do jantar. Ela não faz ideia de onde estou, para ser honesta. Eu disse a ela que participaria de um grupo de estudos e estaria de volta às sete e meia. — Levo as mãos espalmadas sobre os lábios para abafar um riso inconsciente, que mesmo assim acaba saindo estrangulado do fundo da garganta. — Aposto que meu macarrão com queijo já deve estar endurecido dentro do micro-ondas.

Estou me esforçando para parecer amistosa. Contudo, a fala interrompida a casa dois segundos por um arfar impaciente me denuncia.

Beatrice imediatamente se levanta e toca meu braço com a ponta dos dedos. Sua expressão é complacente, mas ao mesmo tempo retraída.

— Está tudo bem?

— Sim, não se preocupe — respondo a ela, oferecendo-lhe um meio sorriso. — Eu só preciso mesmo ir para casa. Também quero aproveitar e adiantar alguns relatórios da universidade.  

— Ah. Está bem — murmura Beatrice. Suas sobrancelhas estão ligeiramente vincadas, e suponho que ela deva estar chateada. — Está tarde. Não quer uma carona? Callum pode levá-la até em casa. Nós guardamos sua bicicleta e você pode voltar buscá-la um outro dia, se quiser.

— Não, é sério, não precisam se preocupar comigo. 

Limito-me a oferecer um aceno de cabeça para os rapazes e sigo caminhando em direção à porta, a cabeça rodando, um pouco entorpecida pelo álcool. Sinto Beatrice avançar logo atrás de mim.

— Volte mais vezes, novata. Será sempre bem-vinda — diz Tyler, sentado displicentemente sobre o tapete, apoiado sobre os cotovelos. Ele gesticula um aceno. Apenas respondo com um sorriso.

Irrompo pela porta, finalmente livre do armazém decrépito. O vento assovia na rua mal iluminada, revelando uma situação climática muito diferente do calor pegajoso de horas atrás. Uma lufada projeta meus cabelos para trás e eu me encolho, apertando os braços contra o corpo. Tateio o bolso de trás da calça e saco o celular para verificar as horas. Tenho um sobressalto. Há pelo menos cinco ligações perdidas, todas da minha mãe. Já passa das dez.

— Então... — Beatrice está com a cabeça abaixada, a atenção voltada para o pedaço de goma de mascar preso na sola de seu coturno. — Nos vemos em breve? Quero dizer, você poderia voltar aqui um outro dia para que possa realmente assistir ao ensaio, sem nenhum idiota para atrapalhar.

— Sim, é claro. Podemos marcar mais alguma coisa para esta semana.

Beatrice assente e me dá um abraço rápido. Seus braços me envolvem com certa insegurança, e eu retribuo.

— Me mande uma mensagem assim que chegar em casa, se puder.

— Pode deixar — murmuro em resposta.

Com o olhar lânguido de quem havia bebido mais do que estava acostumada e o estômago revirado, acomodo os pés sobre os pedais da bicicleta e pedalo com pressa para longe dali.

...

Algumas folhas movem-se com graciosidade pelos ares, varridas pelo vento, e trazem consigo um aroma levemente almiscarado, espalhando-se pela calçada de concreto fendido. A lâmpada de um poste de luz estala prestes a queimar, produzindo um ruído incômodo. Para uma sexta-feira à noite, a cidade jaze estranhamente silenciosa. Uma neblina tênue serpenteia entre o topo das casas em estilo vitoriano.

Olho para os dois lados da rua antes de atravessá-la e não avisto uma alma viva. Aumento o volume do fone de ouvido só para me entregar àquela sensação de desaparecer entre as minhas melodias favoritas. E, também, para tentar fazer desaparecer aquele estranho sentimento mórbido que se apodera do meu corpo. Sinto as têmporas pulsarem com o volume no máximo, mas procuro ignorar a dor e me concentrar no movimento dos quadris enquanto volto a colocar a bicicleta em movimento.

Minha mãe certamente iria surtar assim que soubesse que eu estava montada em minha bicicleta, perambulando sozinha pela cidade tão tarde da noite. Mas era melhor assim. A pedalada me ajudava a pensar e a atenuar o efeito da bebida. Além do mais, não sei se suportaria ficar próxima daqueles garotos por muito mais tempo.

Algo se empoleira em um carvalho próximo. Consigo vislumbrar o farfalhar das folhas enquanto um majestoso corvo avança habilidosamente para a extremidade ramificada de um galho, expondo as penas negras e fitando-me de modo ameaçador. A ave pia fúnebre e alça voo. Tenho de me abaixar para evitar que ela trombe em mim. Meu coração salta dentro do peito com o sobressalto, e sinto-me patética.

Quando me levanto, deparo-me com a luz ofuscante dos faróis de uma motocicleta que me cega por um breve momento. Pestanejo, tentando me adaptar à manifestação súbita de claridade em meio à penumbra. O veículo é conduzido em minha direção, e tenho a sensação repentina de estar sendo seguida. Dou meia volta e pedalo com mais força, sentindo o vendo soprar meu cabelo enquanto quebro a resistência do ar. Sigo em frente por mais alguns metros e viro a esquina, desviando do trajeto e adentrando uma rua pouco conhecida e, certamente, distante o suficiente da casa dos meus pais para que eu comece a entrar em pânico.

A sensação infla ainda mais em meu peito quando percebo que o sujeito na motocicleta se dirige para a mesma rua, a velocidade do veículo aumentando e encurtando a distância entre nós. Esquadrinho o ambiente em busca de um lugar público, um restaurante ou o que quer que seja. Mas não há nada além de casas de subúrbio.

De repente, torna-se cada vez mais difícil respirar. O conteúdo amargo da bile revolve em meu estômago. Minha visão perde o foco, e reteso as mãos sobre o guidão com a terrível certeza de que estou em meio a uma crise.

Os pneus da bicicleta avançam por um trecho irregular. A bicicleta trepida e meus membros flácidos feito gelatina não são capazes de manter o equilíbrio. A bicicleta tomba para o lado e meu corpo é lançado sobre o asfalto. Por um momento permaneço ali, confusa, o corpo estirado debilmente feito uma boneca de pano. Vislumbro o sujeito estacionar a motocicleta logo atrás de mim, no acostamento, e caminhar em minha direção. Sinto que estou hiperventilando, mas não consigo me mover.

— Tudo bem por aí?

O sujeito tira o capacete, revelando os traços asiáticos e um amontoado de piercings que cintilam em meio ao breu.

— Ah, é você – sibilo furiosa, deixando transparecer deliberadamente minha expressão de poucos amigos.

Qiang se agacha, oferecendo-se para me ajudar a levantar, mas me esquivo, empurrando seu braço para longe.

— Eu sei me virar — digo com hostilidade.

Afasto a bicicleta, sob a qual estou presa do quadril para baixo, e tento me colocar em pé. Porém, quando a dor pungente em meu joelho esquerdo me atinge, acabo vacilando. Cambaleio e caio sentada sobre a calçada. Uma cena digna das estripulias de um palhaço no picadeiro. Imbecil.

— Não é o que parece — murmura o asiático, e sinto seu olhar de reprovação arder em minha pele, zombeteiro.

Qiang sustenta meu corpo com os braços enfiados sob as minhas axilas e me arrebata do chão. Sinto a pressão de seus dedos cálidos sobre as costelas. Detesto ter de demonstrar minhas fraquezas, especialmente com caras como ele. Mas não estou em posição de resistir. Então apenas permaneço ali, sendo manipulada como uma boneca de pano. Ele deposita meus pés sobre o asfalto, e finalmente me sinto um pouco menos patética, apesar do joelho arruinado. Afago nervosamente as roupas sujas e amarrotadas a fim de limpar os detritos da estrada.

— Então, por que está aqui e por que estava me seguindo?

Ele ergue o rosto para me fitar, parado a poucos centímetros de distância. Seus lábios cheiram a álcool e outros odores pungentes que não consigo reconhecer, o que me faz franzir o nariz e me afastar discretamente. O típico sorriso lascivo, animalesco, emoldura seu rosto e faz com que eu me encolha.

— Estou fazendo o mesmo que você, voltando para casa. — Ele dá de ombros e acomoda uma mecha do cabelo atrás da orelha. Em seguida, seus olhos vão de encontro aos meus. Minhas entranhas estremecem quando esquadrinho seu rosto, pois não há nada ali. – Tem certeza de que não quer companhia para voltar para casa?

— Não, eu... estou bem – digo com convicção e retrocedo alguns passos, trôpega.

Sou tomada de assalto pelo aperto de sua mão áspera segurando meu antebraço com firmeza. Uma terrível sensação de impotência me consome e sinto o rubor aflorar em meu rosto. Tento me desvencilhar, sem sucesso.

— O que está fazendo?

— Espere aí, princesa. Não precisa fugir, podemos conversar um pouquinho, o que acha? – Ele se aproxima, enlaçando minha cintura e pressionando-me contra seu corpo esguio. – Seus pais nunca a ensinaram que uma garota como você não deveria estar andando sozinha pelas ruas a esta hora? Pode ser perigoso. – As palavras em seus lábios parecem zombar de mim.

Empurro as mãos para frente, tentando inutilmente afastá-lo. Mas isso só o faz encurtar ainda mais a distância entre nós.

— Me solte, por favor – sibilo com a voz vacilante.

— Você é uma graça, sabia? – Qiang rebate, contornando a região próxima ao decote da minha camisa com a ponta dos dedos.

Desfiro socos em seu peito e pontapés em seus tornozelos, enojada ao sentir seu hálito malcheiroso roçar meu rosto. O sujeito estreita ainda mais os braços ao meu redor, como uma espécie de advertência.

— Pare de tentar se livrar de mim, princesa. Não torne as coisas difíceis entre nós, eu apenas quero me divertir.

Suas mãos apertam meus quadris. Mesmo com os movimentos totalmente restringidos, tento alcançar o celular em meu bolso da calça. Contudo, sou impedida de prosseguir ao sentir seus lábios esmagarem os meus. Qiang me beija de modo rude, as mãos espalmadas em minhas costas, impossibilitando ainda mais a fuga. Comprimo os lábios, nauseada ao reconhecer o gosto amargo de sua língua espremendo-se contra minha boca.

Permaneço inerte pelos instantes em que seus lábios volumosos forçam os meus a se abrirem. Parece funcionar. O ritmo do beijo diminui aos poucos. Finalmente, seu rosto se afasta.

— Você é odioso! – É tudo o que consigo balbuciar enquanto lanço um cuspe certeiro em seu rosto.

O sujeito geme, afrouxando o aperto em torno de mim. Com o braço livre, fricciona a manga da jaqueta no rastro de saliva. Quando ele me encara novamente, seus olhos negros como ébano parecem tempestuosos sob a penumbra. As mãos descem pelos meus pulsos mais uma vez, apertando-os com tanta força que posso pressentir a formação de um hematoma com a dimensão dos seus dedos.

— Sua puta!

Em um movimento abrupto e inesperado, o rapaz empunha um objeto metálico que saca de um dos bolsos e o conduz até a minha garganta. A pressão gélida da lâmina posicionada alguns centímetros abaixo do meu queixo trêmulo faz minhas entranhas se contraírem. Olho de soslaio para o objeto e reconheço um punhal suíço com entalhes no cabo. Engulo em seco. Tento gritar, clamar por ajuda, mas não há ninguém circulando pelas ruas. Sinto a respiração de Qiang em minha nuca quando ele se inclina para sibilar:

— Eu realmente não gostaria de fazer isso, mas você não está me dando escolha.

Não ouso me mover enquanto o sujeito me conduz até uma viela que tangencia a rua. O local é iluminado por uma única lâmpada tremeluzente e cheira à urina. Latões de lixo transbordam detritos, atraindo ratazanas cujos olhos brilham na escuridão. O musgo se alastra pelas paredes de tijolos abobadados que delimitam a viela, e a umidade parece grudar à pele.  

O rapaz esquadrinha a rua de um lado a outro para se certificar de que não está sendo observado. Ao se dar conta que não há ninguém circulando pelo local, Qiang me liberta, fazendo-me desabar com um baque surdo no asfalto. Rastejo para longe dele, massageando o pescoço superficialmente mutilado pela lâmina do punhal. Meus olhos estão marejados, entorpecido pelas lágrimas, o que torna meu campo de visão difuso, mas não me permito deixar que elas escapem.

Qiang está em pé diante de mim, e seu corpo projeta sombra sobre os meus pés. Ele leva as mãos ao cinto de couro e começa a desabotoá-lo.

— Eu te deixo molhadinha? – murmura ele enquanto os dedos trabalham. Qiang parece me violar apenas com as palavras e, por um momento, sinto repulsa pelo modo como a calça emoldura a curva dos meus quadris, e me encolho, tentando obliterar a visão que o asiático tem do meu próprio corpo. – Me responda, sua puta! Aposto que sim. Você cheira à porra!

Tudo o que vejo diante de mim é um animal faminto em seu estado primitivo de selvageria. Um produto da cultura do estupro, que insiste em naturalizar o comportamento sexual masculino agressivo. Sinto como se quase pudesse vislumbrar a saliva escorrendo pelos cantos da sua boca.

Agarro um tijolo que repousa em meio aos detritos e o atiro na direção de Qiang enquanto ele caminha até mim com as calças abaixadas até os joelhos. O objeto colide contra seu ombro e o sujeito emite um urro de dor, cambaleando para trás. Coloco-me em pé e disparo rumo à entrada da viela, mas sou impedida de continuar quando suas mãos agarram meus cabelos. Meu corpo é projetado para trás em um solavanco e caio de costas no asfalto. O impacto faz com que o ar fuja dos meus pulmões e começo a arfar, incapaz de retomar o fôlego.

— Vadia desgraçada!

Qiang monta sobre meu corpo estendido, e sinto seu peso pressionando minhas costelas e tensão de sua genitália ereta sobre a perna esquerda. Debato-me como um peixe na areia, desferindo socos em algum lugar ao longo do seu tronco. O sujeito pende a cabeça para trás e solta um longo suspiro insatisfeito. Ele se dobra sobre mim e aperta minhas mãos beligerantes contra o chão logo acima da cabeça, usando o antebraço. Qiang apanha novamente o punhal suíço com a mão livre. A lâmina reluz diante dos meus olhos como um prenúncio de morte.

— Vamos ver se agora você vai colaborar.

Sustento o olhar marejado sobre ele enquanto sento o punhal penetrar na carne, logo abaixo do quadril, na face lateral da coxa. Dobro-me contra seus braços, forçando minhas pálpebras a permanecerem abertas ao ver o sangue escorrendo por minhas roupas e sujando as mãos do indivíduo, que permanece imperturbável.

De repente, um lampejo branco surge como a explosão de uma bomba e lança o corpo de Qiang contra uma das paredes de tijolos do beco. Sou jogada para frente como uma boneca de pano mole e débil, contorcendo-me em espasmos. Uivo em agonia, observando o sangue ser jorrado em fios cálidos quando retiro a lâmina alojada em meu membro inferior com um tranco. Uma luz ofuscante toma conta do ambiente. Levanto brevemente os olhos a tempo de ver o corpo de Qiang completamente inerte, a gola da jaqueta maculada pelo sangue que se derrama do canto dos seus lábios. O lado direito de seu rosto está parcialmente desfigurado, assim como um de seus ombros repousa em uma posição antinatural, parecendo estar fora do lugar.

Um som pavoroso parece me ensurdecer por um breve momento, espalhando-se em ondas e ecoando por tudo ao redor. Com uma fúria sobrenatural, o som faz as lâmpadas tremeluzirem e se apagarem e varre tudo ao redor, levantando uma nuvem de poeira e detritos que rodopia pelos ares.

Uma substância densa feito plasma, porém intangível, despenca dos céus e provoca um impacto que faz o asfalto se partir abaixo de nós. Sinto o corpo todo formigar como se descargas elétricas emanassem dele. Rolo sobre as fendas do chão e sou interceptada por uma caçamba de lixo que fora arrastada pela força do vento.

E, da mesma maneira abrupta como começou, o tempo parece parar por um instante, e a atmosfera permanece inerte e em silêncio.

Porém, antes que eu possa me recompor, o corte em minha coxa passa a arder como se estivesse em brasa. Brado a plenos pulmões numa tentativa inútil de abolir a dor. Uma estranha explosão de energia parece navegar por todo o corpo, ardendo em minhas veias, fluindo em direção à lesão.

Tento resistir à dor, no entanto, meu corpo parece estar sendo sugado repetidas vezes para a escuridão, tornando a realidade a minha volta cada vez mais indistinta. Meu corpo convulsiona, o ardor chegando a extremos e suplanta  qualquer dor que eu possa imaginar. É agonizante. Quero gritar, mas não consigo mover meus lábios. Sinto-me perder o controle sobre os sentidos. Minhas terminações nervosas urram em protesto. Sinto que a qualquer momento posso entrar em combustão.

Repentinamente, tudo parece ceder. Meus músculos relaxam, conduzindo-me de volta a uma realidade mais branda. A dor cessa.

Ainda arfante, coloco-me sentada. Inclino a cabeça a fim de verificar o corte. Afasto as bordas do rasgo em minha calça com os dedos, colocando as mãos sobre a boca para abafar uma exclamação surpresa ao ver que não há nenhum ferimento. Tudo o que resta é uma fina cicatriz.

Levanto-me, um pouco inebriada. Antes que eu possa pensar em correr para algum ponto de luz, a imagem aterrorizante do corpo desfalecido recostado contra o muro de pedra me faz estagnar.

Caminho em sua direção e fico de cócoras. Estico o braço, colocando o dedo indicador e médio sobre o lado interno do pulso do individuo. Sinto o gosto da bile subir à garganta ao sentir a massa flácida do membro. Não há  nenhum sinal vital.

Qiang está morto.


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