Conto de Bruxas escrita por Laurus Nobilis


Capítulo 2
Meio


Notas iniciais do capítulo

Nossa, que alívio é conseguir terminar esse capítulo... Desculpe a demora. Foi a faculdade. Escrevi metade do capítulo e depois fiquei sem tempo. A gente mal tem tempo para obrigações, imagina para escrever por prazer? Mas a primeira rodada de provas passou e consegui. Tá aí, e ficou bem grande.

Bastante coisa aconteceu na minha vida nesse meio-tempo, arranjei até namorado, rs.



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— Essa não é a princesa Lilian. – constatou o rei, mal-humorado, quando seu filho retornou muito tempo antes do previsto, de braços dados com uma moça esfarrapada. Em termos leves, ela parecia ter recém-sofrido um acidente com uma chaminé.

— Não, não é. – concordou o príncipe; a voz um pouco trêmula. – Seu nome é Liora. Eu a resgatei.

Encabulada, Liora fez uma reverência:

— Vossa Majestade.

O rei a convidou a se endireitar com um gesto sutil.

— É uma grande… surpresa conhecê-la, donzela. – cumprimentou. – Caso não se importe em dizer, de onde você vem?

A jovem bruxa hesitou, sentindo naquela pergunta o mesmo ar reconfortante de uma corda sendo ajustada em torno de um pescoço. Respondeu, enfim:

— Da floresta, senhor.

Um par de sobrancelhas reais foi erguido:

— De qual floresta? Da Floresta Sombria?

Liora não sabia que sua floresta tinha esse nome. Estava quase certa de que o nome era diferente quando sua família migrou para lá, há anos. A seu ver, não havia nada de sombrio na vegetação frondosa e nos animais simpáticos que diariamente cruzavam seu caminho, a não ser, é claro, que você fosse um medroso.

Para seu alívio, Theo pronunciou-se em sua defesa. Ele também reunia coragem antes de se direcionar ao pai:

— Sim, eu a resgatei de lá. Encontrei-a adormecida há muito tempo em uma velha cabana. Suponho que tenha sido enfeitiçada.

— Enfeitiçada? – replicou o rei, com genuína curiosidade.

— Pensando bem, eu agora me lembro… – acrescentou Liora, tomada por um reflexo astuto. – Deve ter sido aquela velha senhora que bateu em minha porta. Ela elogiou minha gentileza em lhe trazer um copo d’água e me ofereceu um biscoito de sua cesta. É difícil recusar biscoitos…

— Bem, mocinha, eu recusaria qualquer coisa que me oferecessem no interior daquela floresta, mas não a culpo por sua pureza e ingenuidade. Que bom que meu filho a encontrou. – Ele lançou ao príncipe um olhar que não parecia exatamente felicitá-lo. – E sobre a princesa Lilian?

Theo deixou escapar um suspiro.

— Não poderia, por acaso, ser meu irmão? Todos sabem que é o sonho dele…

A expressão do rei tornou-se sombria:

— Precisa ler a profecia de novo, caro primogênito?

Liora limitava-se a observar a situação, tentando não transparecer nervosismo, enquanto Theo enrijecia o corpo ao seu lado.

— Não preciso. – afirmou ele, erguendo o queixo elegante. – Retomarei minha missão assim que alocar Liora na corte, eu juro. Ela vivia completamente sozinha naquela floresta, e eu não poderia deixá-la assim.

O rei assentiu, sem alterar o ar sério.

— Muito compassivo, como sempre. Cuidado com juramentos. Agora vá… E mande preparar um banho para a donzela, por favor.

Liora não apreciou demais a entonação daquilo e logo percebeu que talvez ouvisse coisas que não gostaria enquanto estivesse ali. Em comparação a seus maiores medos, seria até fácil suportar.

O príncipe tomou-a outra vez pelo braço. Ele não parecia se importar com o fato de haver teias de aranha até em seu cabelo e isso, de alguma forma, poderia ser suficiente.

Ao se afastarem o bastante por um corredor suntuosamente decorado, Theo olhou em torno e sussurrou direto a ela:

— Eu odeio meu pai.

Aquilo foi inesperado. Liora o encarou.

— Você odeia o rei? – respondeu em tom de brincadeira.

O rapaz expirou o ar, parecendo cansado.

— Ele é um excelente rei, mas como pai… Pode deixar a desejar.

Seus passos ecoavam em conjunto sobre o chão de mármore, enquanto a bruxa elaborava algo para dizer.

— Então você não quer ir até lá, resgatar a tal princesa?

O príncipe esboçou um sorriso diante da maneira como ela disse “a tal princesa”, replicando:

— Quem dera fosse essa a questão. Sou ótimo nas aulas de esgrima, e, se a profecia não mente, nasci para matar o dragão. Não tenho grandes objeções em trazer a princesa até aqui, sob o lombo de meu cavalo… – Ele deu uma pausa. – Mas o problema, Liora, é que sou obrigado.

Obrigação? Liora vasculhou fundo em sua mente por alguma situação que a remetesse àquela angústia. Demorou um pouco antes de encontrar… Quando ela era mais nova e sua avó, ainda viva, nem sempre as lições de magia se mostravam um mar de rosas. A jovem Liora engolia o sentimento de frustração quando sua avó, Myrtle, a fazia gastar exaustivas horas reabastecendo a água do poço ou vasculhando mata adentro por um tipo específico de cogumelo. A justificativa, como lembrava claramente, era sempre a mesma: disciplina e organização também têm seu papel na formação de uma bruxa.

E ela reclamava e reclamava sozinha, pois tudo o que desejava era realmente estudar magia. Não contava com o fato de que perderia a avó dali a poucos anos e teria de se virar sem ninguém. A solidão era, sem dúvida, o pior dos malefícios, e não há feitiço que devolva aquilo que se perdeu para sempre.

Sua expressão parecia comovida quando disse ao príncipe, desentrelaçando seus braços:

— Ele pode ser insensível, mas ainda é seu pai. Acho que, no fundo, ele sempre quer o melhor para você, não é?

Ao deparar-se com aquele olhar carregado de emoção, o príncipe hesitou.

— Acho que sim. – disse ele, e estava com um “me desculpe” na ponta da língua, antes de Liora interrompê-lo, em tom mais animado:

— E sua mãe? E seu irmão? Irei conhecê-los?

— Ah – retrucou ele. – Minha mãe não gosta muito de sair de seus aposentos, especialmente quando está adoentada, como agora. Comeu algo estragado, ao que parece… E meu irmão Michael, aquele pestinha, tem 14 anos. Você poderá conhecer a todos no jantar real hoje à noite.

— Jantar real? – repetiu Liora em um fio de voz; a cor evaporando de suas faces.

— Sim… Não tenha medo. – pediu Theo, ostentando um simpático sorriso que quase a convenceu. – Ninguém aqui morde e o ar esnobe se restringe, geralmente, à aparência. Geralmente. Você pode sentar ao meu lado, e se qualquer um ousar lhe destratar… Eu responderei à altura.

Aquilo deixou a jovem bruxa um tanto sem fôlego. Eram muitas emoções de uma vez.

— Tudo bem. – concordou ela, como se nenhuma outra resposta lhe viesse à mente.

O príncipe parecia muito contente ao tomar uma de suas mãos e pressionar os lábios contra a pele. Um leve formigamento permeou o local, avançando por todo o braço.

— Te vejo lá, então! – acrescentou ele, preparando-se para partir. Já estavam diante do quarto de hóspedes onde ela viria a ficar. – Logo uma criada virá atendê-la.

Liora assentiu, sentindo a pulsação ainda fora de compasso. Enquanto Theo se afastava, ela lembrou de uma pergunta que precisava e deveria, provavelmente, fazer a ele. Mas a timidez parecia oprimir seu peito como um peso de ferro. Talvez mais tarde.

Como ele me despertou?, pensou, girando a maçaneta de madeira maciça e adentrando sem dificuldade um quarto bem-iluminado, cheirando à lavanda.

Tudo aconteceu muito rápido, de forma que a dúvida ressurgiu apenas durante a conversa com o rei. Em um momento ela estava imersa em um sono profundo, de sonhos variados, agradáveis e coloridos, e no outro, estava desperta, encarando atordoada um par de olhos verdes. Simplesmente não sabia o que se sucedera entre um estado e outro.

E gostaria muito de descobrir, pois contra-feitiços eram uma área complicada da magia, que ela ainda estava longe de dominar. Isso significava que, algum dia, lançaria por acidente um feitiço em si mesma e não saberia desfazer. Bem, esse dia chegou.

O que um simples príncipe poderia saber a mais do que ela? Será que era uma bruxa tão ruim assim?

Com a mente repleta desses pensamentos, Liora olhou em torno. Embora ela fosse nada mais que uma hóspede, seu quarto parecia digno de uma dama de companhia da rainha.

Havia uma cama de dossel de aparência muito confortável; um generoso armário, que ela não sabia ao certo com quais roupas iria preencher, e uma elegante cadeira, diante de uma penteadeira cujo espelho revelava a magnitude de sua aparência horrível. Sua pele parecia acinzentada com a poeira; seu vestido era um misto de sujeira e frangalhos roídos por traças e o cabelo… Seu cabelo, tão bonito quando bem-cuidado, estava um caos. Ela respirou fundo.

Então, finalmente, reparou na grande janela cercada de adornos que havia ali perto e esqueceu por um segundo de seu faniquito, aproximando-se para conhecer a vista. Abaixo dela estava o grande pátio dos fundos, através do qual transitavam, a todo momento, jovens donzelas passeando tranquilamente em vestidos elegantes; criadas carregando cestos de roupa engomada; lacaios apressados; cavaleiros junto a seus respectivos cavalos e caçadores trazendo cães de guarda.

Tomada por fascínio, Liora observava como todas aquelas pessoas pareciam bonecos vivos; minúsculas diante da altura onde ela se encontrava. Uma súbita batida na porta fez com que ela se virasse, sobressaltada. Estava aguardando uma criada que seria enviada para ajudá-la, certo? E a encontraria daquele jeito…

De fato, a moça que estava ali atrás, de vestido azul simples com avental branco; cabelo castanho curto e cacheado contido por um lenço e expressão amável, apesar de cansada, arregalou os olhos diante da jovem bruxa. Em seguida tentou disfarçar seu espanto, sem muito sucesso.

— Suponho que a senhorita seja Liora… – cumprimentou ela, após pigarrear.

Liora abriu um sorriso constrangido.

— Sim, sou eu. E você, qual o seu nome?

A moça suspirou.

— Sou Jessamine, mas pode me chamar de Jess. Não entendo o que minha mãe estava pensando.

— Por quê? – retrucou Liora, erguendo as sobrancelhas. – Por causa do tamanho do nome? Esse é o nome de uma florzinha amarela, parente do jasmim. – descreveu ela, em automático. – Quando fervida em um chá, rende um ótimo remédio para indigestão e dor de cabeça. E é muito bonita.

Jess pareceu surpresa; desta vez, por outro motivo.

— Como você sabe disso tudo?

Liora estremeceu, percebendo o que acabara de fazer, e respondeu num ímpeto:

— Aprendi com minha avó.

Por um segundo excruciante, a criada ficou séria, processando o que ouviu. Então abriu um largo sorriso:

— Que incrível!

A bruxinha sorriu com alívio, pressentindo que seriam boas amigas. Aguardou em silêncio enquanto Jess avaliava mais uma vez, com os olhos, seu trágico estado.

— O que aconteceu? – perguntou ela, simplesmente.

— Parece que dormi por cem anos ininterruptos. – respondeu Liora, tão simples quanto.

— E quem a despertou?

— Ao que tudo indica… O príncipe Theo.

Jess ergueu os olhos, interessada. Liora esperou um comentário enriquecedor, mas terminou se contentando com:

— Ele é lindo, não é? Podemos ir. Seu banho caprichado já aguarda.

E assim, foi guiada pela mão até um outro cômodo distante.

***

Foi com alegria que adentrou o lavatório, onde estava à sua espera uma grande banheira esculpida em madeira, preenchida por água fumegante e perfumada. Liora se despiu do vestido que usava há mais de um século e afundou de bom grado ali, fechando os olhos.

Levou um susto ao ouvir passos. Logo percebeu que era apenas Jessamine. Tentou esboçar uma reação…

— O que foi? Você espera se banhar sem nenhuma ajuda? – indagou a criada, cruzando os braços.

— Hãn… Sim? – hesitou Liora.

— E seu cabelo?

Aquele era um bom ponto. De tão embaraçado, o cabelo da jovem parecia ter o triplo do tamanho usual. Alguma ajuda seria bem-vinda.

— Tudo bem… – concordou ela. – Mas isso é esquisito.

— Pode ser. Você se acostuma. – assegurou Jess, munindo-se energicamente de um pente e de uma escova.

Ela se acostumou, após um tempo. Teve medo de sofrer um doloroso martírio, que não se concretizou, pois Jess parecia habituada a fazer aquilo. Com mãos leves e pacientes, ia lavando e desembaraçando os fios.

Os minutos avançavam, e elas começaram a conversar. Liora compartilhou algumas de suas muitas dúvidas:

— E essa é a questão. Sei que ele me despertou, mas não sei como.

Ela ergueu sua mão direita. Uma pequena ferida no dedo indicador ardia em contato com a água ensaboada.

— Não deve ter sido isso… – comentou, olhando para Jess, que concordou com a cabeça.

— Pelo que dizem as lendas e histórias… – teorizou a criada. – O beijo do verdadeiro amor cura todas as mazelas. Quase todas. Nada reverte a morte. Um feitiço de sono eterno, no entanto…

— Espere aí! – interviu Liora, sentindo o sangue inundar as bochechas. – Beijo? Amor verdadeiro? Como assim?

— Pois é… – retrucou a outra, rindo. – Pelo que conheço do príncipe Theo, ele não faria isso sem mais nem menos, o que explica a espetada no seu dedo.

— Amor verdadeiro? Nós sequer nos conhecíamos. – insistiu a bruxa; tão vermelha quanto papoula em flor.

— Verdade. – admitiu Jess, de olhar ainda sonhador. – Talvez seja apenas o nome. Ou talvez seja destino. Você acredita em destino?

Liora refletiu um pouco, esfregando a poeira da pele de seus braços com uma esponja.

— Acredito. Minha avó mencionava isso de vez em quando. Mas… Imagino que o tal “destino” tenha deveres mais importantes além de juntar casais.

Diante disso, Jess deu uma gargalhada estrondosa.

— Que difícil, você! – exclamou ela. – Se fosse eu no seu lugar… Nossa… Espere um pouco, vou buscar as roupas. Seu cabelo já está em ordem, acho.

Atenta àquele “acho”, Liora examinou com os dedos seus longos e escuros fios de cabelo enquanto a criada deixava o lavatório. Parecia tudo em ordem, realmente, por algum milagre. Ela aproveitou os segundos que poderia passar sozinha com seus pensamentos, embora estes lhe causassem mais perturbação do que alívio.

Seu medo era estar destinada à coisas ruins. Depois, talvez, e apenas talvez, ela poderia pensar em romance. Estava ali por uma decisão impulsiva, não é?

Ninguém descobriu ainda, pensou. E ele gosta de mim.

Pressionou as pálpebras diante desse último e involuntário pensamento.

Jessamine retornou naquele momento segurando uma pilha de roupas perfeitamente dobradas; seus passos ágeis gerando ruído no chão. Liora a observou, como sempre, assustada.

— Você vai adorar! – cantarolou. – Já pode experimentar.

— Tudo bem… – concordou a jovem, invocando um leve sorriso. – Assim que me oferecer um pouco de privacidade, por favor.

Risonha, Jess assentiu e saiu outra vez do cômodo.

Com um suspiro e alguns estalos na coluna (passar cem anos deitada tinha suas consequências), Liora ergueu-se da banheira e secou rapidamente seu corpo e cabelo com toalhas de linho dispostas ali perto. Então, enrolada na toalha, limpou o vapor que embaçava a superfície de um espelho. Queria conferir, só como garantia, se sua aparência deixara de ser um caos.

Com profundo alívio, reconheceu seu cabelo preto e sedoso que escorria sinuoso até a cintura. Livre da poeira e das teias de aranha, pôde ver também as sardas que pontilhavam seu nariz levemente arredondado; a forma de seu rosto um pouco anguloso; sua boca rosada em formato de coração e por fim, os olhos astutos. Os mesmos olhos de tom ocre que herdara de sua mãe e de sua avó.

“Olhos de bruxa”, descreviam elas, orgulhosas.

Se Liora pudesse escolher ter o olhar suave de uma fada ou de uma princesa, naquele momento…

Tentando chutar para longe as inseguranças como chutaria um guaxinim que mordisca seu pé, ela voltou sua atenção para as roupas que Jess trouxera. Era um suave tecido de veludo em tons floresta e tons oliva de verde. Liora ergueu o vestido diante de si com um misto de fascínio e desconfiança.

“Algo assim irá caber em mim?”, pensou.

Durante toda a sua vida, vestira apenas roupas simples costuradas à mão. De início, obra de sua mãe e avó e mais tarde, é claro, ela aprendera a costurar suas próprias roupas. Aquele vestido, com certeza, não parecia ter sido feito por uma adolescente com poucos recursos.

Superando a hesitação, Liora descobriu como organizar os laços, amarras e bainhas até estar dentro daquilo. Parecia ter se ajustado bem a seu corpo. Na câmara de dormir reservada a ela, descobriria se seu novo visual tendia mais para o esplendor ou para o ridículo. Calçou também os sapatos verde-oliva com detalhes em dourado que acompanhavam o vestido. Por fim, chamou:

— Jess?

Jessamine entrou no mesmo instante. Estava aguardando do lado de fora.

— Você demora muito, hein? Cumprimentei umas cinco pessoas que passaram por aqui nesse meio-tempo. – queixou-se logo de início. – Estava se vestindo ou apenas refletindo sobre a vida?

— Um pouco de cada. – admitiu Liora. – Como estou? – quis saber, receosa.

Jessamine estreitou os olhos. O lavatório era iluminado apenas pela luz de velas perfumadas e os vapores reminiscentes do banho não ajudavam. Até que ela abriu um sorriso espontâneo.

— Liora, você está linda!

— É mesmo? – retrucou a bruxa, espantada.

— Sim! Quer dizer, até eu ficaria bonita na oportunidade de usar um vestido desses, mas sua aparência muda quando você não está…

— Entendi. – disse ela, rindo.

— Estou certa de que essa era a última coisa que faltava para você arrebatar o coração do príncipe... – A criada ignorou a expressão de horror formada no rosto da donzela, ou talvez não ignorasse, pois emendou rapidamente: – Agora vamos para o quarto. Vou pentear seu cabelo e fazer uma bela trança.

Obediente, Liora a seguiu e respirou com algum alívio o ar gelado e circulante do lado de fora. Os trapos que antes vestia ficaram por ali e ela mal pensava no que seria feito deles.

***

— Ai, ai, ai… – queixava-se Liora enquanto Jess secava e penteava seu cabelo com uma intricada escova de prata e cerdas de arminho. – Achei que já tivesse desfeito cada nó do meu cabelo.

— Sou uma boa criada. – retrucou ela, com paciência. – Não significa que não opero milagres, donzela.

A jovem suspirou:

— Que mania é essa de me chamar assim? Primeiro o príncipe Theo, depois o rei e agora você.

Jess ficou tão perplexa que até interrompeu seu trabalho.

— Ora bolas! – exclamou. – Até onde sabemos, você não é casada. Será uma donzela enquanto for uma respeitável virgem. Quando a desposarem, passa a ser uma dama, ou lady. Como nossa rainha: lady Eleanor.

Eram muitas regras para processar. Então Liora olhou para seu vestido e lembrou de onde estava.

— Tudo bem, então – declarou.

— Sem querer injuriar-lhe, Liora… Mas às vezes me pergunto de onde você veio.

— Da floresta. – respondeu a moça, com naturalidade e um ligeiro sorriso. A esse ponto, confiava em Jessamine.

— A mesma floresta empesteada de bruxas, aqui nos limites de Wynnsbur? – Foi a inevitável reação da amiga.

— Bem, acho que sim. Você acredita nessas coisas? – Liora ergueu as sobrancelhas, virando-se um pouco.

— Nunca vi de perto – disse a criada. – No entanto, não sei porque não acreditaria. Existem umas histórias…

Naquele instante, alguém bateu à porta. Ignorando tudo o que fazia, Jess foi atender e cumprimentou com educação um dos lacaios reais, que lhe entregou uma carta.

— Está aguardando correspondência? – perguntou a Liora, ao retornar para onde ela estava. Não conteve o tom animado após reconhecer o emblema real no selo.

— Não que eu saiba… – murmurou a outra, tomando a carta nas mãos.

Para o bem ou para o mal, não ficou tão surpresa ao desdobrar o requintado papel. Era um convite oficial para o jantar daquela noite. Em bico de pena, leu:

A família real convida:

Liora, a forasteira

para o jantar real junto à toda a corte do rei Harold e da rainha Eleanor, no grande salão de banquetes, esta noite, ao baixar o sol.

Vossa presença nos proporcionaria grande deleite."

Liora sentiu uma leve falta de ar e pareceu enxergar dobrado. Uma anotação na beirada a tranquilizou, ao mesmo tempo em que a inundava de um novo nervosismo: “por favor, venha!”

Jamais vira aquela caligrafia antes. Embora, por alguma razão, parecesse familiar.

— Príncipe Theo! – murmurou uma romântica Jessamine, eliminando suas dúvidas. – Pela honra de são Valentim, Liora, acho bom você valorizar essa chance que está tendo.

— Não tenho ideia do que falas. – replicou a bruxinha com firmeza. – E a trança?

— Ah, sim, a trança… – concordou Jess, enfim voltando a pentear suas longas madeixas.

Liora reclamou um pouco menos enquanto Jess fazia várias estripulias em seu cabelo, puxando uma mecha para lá, outra para cá… Com o penteado quase pronto, ela pegou uma delicada linha de tecido dourado, que parecia ter sido designada para essa exata função, e lineou as curvas da trança negra. Por fim, com delicadeza, entregou para a donzela uma delicada tiara do mesmo material folheado em ouro – nada tão extravagante que se comparasse ao que uma nobre usaria, apenas belo o suficiente para indicar que sua presença no castelo demandava respeito.

Liora olhou para o adereço com um inconfundível ar confuso, antes de alocá-lo no topo de sua cabeça.

— Pronto, pronto! – cantarolou a criada. – Agora você parece preparada para sentar à mesa junto a toda a corte. Já lhe advirto: é bastante gente.

Liora suspirou.

— Mas o príncipe estará lá com você. – acrescentou a moça. – Quer olhar-se no espelho?

A garota sabia que dar uma resposta entrecortada toda vez que a criada mencionasse o príncipe daquela maneira iria apenas cansá-la, então não se deu ao trabalho desta vez, ao assentir e levantar-se para ir até um espelho de corpo inteiro, cujas bordas, intrincadas em madeira, representavam folhas, frutas silvestres e esquilos – elementos familiares.

Não é que estava mesmo bonita? Reconhecia seu rosto – especialmente os olhos tão chamativos, que há pouco tempo lhe proporcionaram uma estranha onda de insegurança. Mas não reconhecia aquelas roupas bonitas, ou mesmo a elegante trança. Normalmente, seu cabelo ondulado e cor de ébano lhe caía solto pelos ombros. A falta de convivência com outras pessoas e a vida cheia de obrigações na floresta não exigia dela tanto zelo por sua aparência. Ela suspirou e sorriu, algo emocionada.

Ao fundo, Jess também sorria, satisfeita com o resultado de sua dedicação. Até que olhou pela janela e exclamou:

— Já é noite! Vá, Liora. Vá antes que se atrase. Ninguém aprova atrasos.

— Ah, avó querida, me dê forças… – murmurou a donzela para si mesma, antes de agradecer e acenar para a criada e partir, sem muita noção quanto a onde estava indo.

A confusão não durou muito, pois quem a esperava no fim do corredor era Theo.

Ao vê-la, ele abriu um galante sorriso – como de hábito – e ergueu sua mão, que desta vez não estava cinzenta de poeira, para plantar ali um beijo. Em seguida, não poupou palavras:

— Liora, eu mal a reconheci de tão bela!

A moça sentiu o rosto esquentar.

— Isso seria bom ou ruim? – perguntou timidamente, incapaz de não pensar na aparência tinha quando chegou ali.

— Sem dúvida, bom. – O príncipe desviou o olhar para a direção de onde viera. – É melhor seguirmos em frente, caso não se incomode. Os convidados já devem estar se reunindo. Está muito nervosa?

Liora sorriu constrangida antes de concordar.

— Não há necessidade. – garantiu Theo. – Pode sentar ao meu lado.

Quando ele dizia, parecia mais fácil acreditar. Ele tomou-a pelo braço e foram atravessando os corredores ladeados por tochas tremeluzentes até o salão de banquetes, cuja extensa mesa era iluminada por quatro lustres no teto abobadado. A maioria das pessoas já parecia estar ali.

— Minha família. – indicou Theo com a cabeça, com tamanha simplicidade como se sua família não fosse constituída por reis, rainhas e príncipes. Liora piscou.

Em lugar privilegiado na mesa, estavam o rei Harold – a quem ela já conhecia –, a majestosa rainha Eleanor e um rapaz que parecia uma versão mais nova e um pouco menos asseada de Theo. Devia tratar-se do príncipe Michael, seu irmão.

Liora pôde constatar, em um instante, como os irmãos herdaram a fisionomia agradável da mãe, em vez do ar sisudo do pai. Theo, no entanto, tinha os olhos verdes do pai. Os olhos de Michael compartilhavam o tom caloroso de castanho dos de Eleanor.

— Seus olhos são como os do seu pai. – murmurou Liora para o príncipe. Enquanto caminhavam até os assentos reservados para eles na enorme mesa, podiam gozar de um último momento de privacidade.

— Ah, eu sei. – suspirou ele. – Dizem que meu pai ficou muito feliz quando nasci e abri os olhos pela primeira vez.

Liora imaginou a cena. Parecia bonitinha, até. Enfim eles sentaram-se, lado a lado. O rei acenou com a cabeça. A rainha esboçou um sorriso; parecendo, como a moça pôde notar, um tanto pálida à luz dos candelabros. O príncipe Michael lançou-lhe simplesmente um olhar curioso.

Ao direcionar o olhar para a comida, Liora levou um susto. Estava acostumada com as refeições escassas e sem nada de extraordinário da vida campestre – geralmente um punhado de grãos, fatias de rabanete e tomate que cultivava em sua horta e às vezes carne de rato-do-mato, que ela tinha muita pena de matar. Diante dela estavam opções de carnes, verduras e guarnições cuja boa parte sequer saberia nomear, embora tudo parecesse delicioso. E certamente bastava para alimentar a multidão que ali se reunia. Theo deu uma risadinha ao seu lado e ela olhou para ele.

— Essa é uma reação comum – pontuou o rapaz. – Você devia ver o caos que fica a cozinha enquanto tudo isso é preparado.

— Posso imaginar. – retrucou Liora, rindo por sobre o nervosismo que sentia.

— Senhorita, sua aparência certamente melhorou desde hoje mais cedo. – comentou o rei de forma inesperada.

— Pai… – interferiu Theo, sempre sensível ao constrangimento de Liora.

— Foi um elogio! – defendeu-se o rei.

— Obrigada. – murmurou a jovem.

— Soube que você dormiu por cem anos, Liora. – disse a rainha. Sua voz era melodiosa.

— Sim… – concordou ela, meio tensa. – Devem ter sido uns cem anos. Leonard V ainda era rei quando fui enfeitiçada.

— Meu bisavô? – perguntou Theo, maravilhado.

Liora olhou em seus olhos cor de folha e assentiu. Até ela mesma estava espantada, agora.

— E como é dormir por tanto tempo? – perguntou, de repente, uma nova voz feminina. Hesitante, Liora rompeu contato visual com o príncipe para responder.

Diante dela estava uma bela e muito bem-vestida moça da sua idade. Embora a forma como esta a olhasse lhe despertasse um tremendo desconforto. Não parecia das pessoas mais simpáticas.

— Não é muito diferente de um sono revigorante em uma noite comum. Estranho foi despertar. Eu estava coberta de teias de aranha. – esclareceu Liora.

A moça, cujo nome ela sequer sabia, sorriu com algum deboche.

— Como a resgataram de uma situação assim?

A bruxa sabia a resposta exata. Porém, não lhe parecia confortável explicar. Então lançou um olhar ao rapaz ao seu lado e disse:

— Foi ele. Serei eternamente grata, por isso e pelo que fez por mim depois. Eu vivia em condições um tanto complicadas, sozinha na floresta.

Desta vez, foi Theo quem corou.

Sem saber, Liora acabara de renovar o ânimo daquela moça para provocações. Todos sabiam o que narravam as histórias sobre encantamentos, e Alyssa, filha do conde de Émeralde, um grande amigo do rei, não era exceção. Ela estava enciumada.

— Na floresta das bruxas? – inclinou-se ela.

— Se é assim que todos a chamam… – suspirou Liora. – Era o lar da minha família há anos.

— Mas nenhuma pessoa vive lá. – insistiu Alyssa.

— Ninguém que a maioria saiba. Nós vivíamos. Era uma boa vida… Até eu ficar sozinha. – respondeu a moça. Estava ocupando-se em preparar seu prato. Não se sentia tão confortável em contar detalhes dolorosos de sua vida para uma desconhecida, ainda que parecesse ser da nobreza.

— Apenas bruxas vivem lá. E demônios. E fantasmas que desmembram caçadores. – prosseguiu a maldosa condessa.

— Alyssa… Por favor. – Theo ergueu o tom no máximo que suas boas maneiras permitiam. Estava familiarizado com a arrogância da jovem. Aquilo, no entanto, extrapolava limites.

— É fácil comentar sobre aquilo que não se conhece. – reagiu Liora, encarando-a de repente com olhos brilhantes de raiva.

— O que garante, menina… – emendou Alyssa, muito satisfeita. – Que você não enganou nosso bem-intencionado príncipe com magia? Que não é uma bruxa do pior tipo, descendente de outras? E que não tem planos terríveis dentro deste reino?

Tomada por algo cuja intensidade jamais sentira antes, Liora quis atirar seu prato em cheio na expressão debochada da garota. Em vez disso, trêmula, levantou e disse:

— Desculpe a todos, mas não me sinto bem. Devo retirar-me.

Chegou a sentir enquanto Theo segurava seu pulso. Determinada, se desvencilhou e partiu. Não pretendia voltar. Nunca mais.

Mal ela saiu a passos rápidos, o rapaz levantou-se, pronto para ir atrás dela. Antes disso, lançou um olhar rancoroso a Alyssa:

— Mais tarde terei uma conversa com você.

— À vontade. – disse ela, contendo o riso.

Bufando uma vez, o príncipe deixou o local.

Um silêncio desconfortável dominou todo o salão. A rainha e o irmão mais novo de Theo observavam o rei à espera de um comentário. Até que ele declarou:

— Peço desculpas em nome de meu filho. Ele costuma ter vontades e reações intensas. Espero que mude com o tempo. Por que não continuamos? – propôs ele, com uma garfada na comida.

Todos os demais o imitaram, e o jantar prosseguiu.


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