Conto de Bruxas escrita por Laurus Nobilis


Capítulo 1
Início




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/780286/chapter/1

Liora era uma bruxa.

O último rebento de uma extensa família de bruxas. Elas sobreviviam isoladas no fundo da floresta que cercava o reino de Wynnsbur, após perceberem, há muito tempo, que não eram bem-vindas entre as pessoas comuns.

Algo mudou quando sua avó; a única parente restante, veio a falecer há alguns anos, abandonando-a adolescente, assustada, e o que era pior – desorientada. Pois embora a magia esteja em seu sangue, jovens bruxas têm muito a aprender e aperfeiçoar dentro da antiga prática.

Desta forma, para Liora, não sobrava nada além de velhos livros e de recomendações que ela tinha medo de esquecer. Em meio aos esquilos e às frutas silvestres, ela levava a difícil vida de uma bruxa iniciante. E solitária.

Certo dia, a moça estava atirando raiz de camomila, essência de papoula e névoa de luar em um caldeirão cheio, no fogo baixo, sendo mexido lentamente. O livro de poções estava escancarado ali ao lado, e ela o consultava a cada minuto, insegura.

Mas Liora tinha um traço distraído que não a ajudava muito. Então, quando chegou em uma parte do feitiço que era só mexer, mexer, mexer, ela olhou por uma janela. Era fim de tarde e os passarinhos piavam em coro, anunciando a chegada da noite. Com grandes olhos cor de mel, a bruxinha os observava.

“Pássaros são legais, mas às vezes seria bom ter alguns amigos”, pensou ela, em um relance melancólico.

Mal percebia como sua poção começava a borbulhar, bem mais do que deveria estar borbulhando. De repente… O líquido explodiu inteiro em cima dela.

Liora cambaleou para trás e caiu sentada no chão, completamente encharcada. Limpando o rosto com a manga do vestido e piscando algumas vezes, ela voltou a enxergar. Lá se fora seu sonífero e relaxante muscular caseiro.

— Vovó, eu sou um fracasso!!!!!! – gritou de frustração, levantando-se bruscamente. Ninguém a respondeu. Sua avó estava enterrada sob um marco de madeira no jardim dos fundos, assim como sua mãe, mas aqui e ali, ela ainda a chamava.

Após inspirar fundo para conter a vontade de sair chutando tudo, Liora deu uma espiada dentro do caldeirão, e outra em seu estoque de ingredientes. De fato, aquela poção estava arruinada. Então ela deu seu dia por encerrado e foi jantar. Estava ficando com sono… bastante sono.

Quando Liora adormeceu de bom grado naquela lânguida noite, ao som dos grilos e corujas, mal imaginava que não despertaria. Passou-se um dia. Dois dias. Três…

A jovem permanecia da mesma forma: respirando ritmadamente, tranquila, sem se mover.

Se estivesse acordada, poderia constatar que havia pesado a mão na névoa de luar, um ingrediente com propriedades fortíssimas caso utilizado com exagero.

Mas ela não acordaria tão cedo, e ninguém sentiria sua falta. Isso era certeza. Os animaizinhos seguiram com a vida.

O reino de Wynnsbur seguiu com a vida.

Os anos seguiram.

Até que um dia…

O príncipe Theo, bisneto do rei Leonard V, de Wynnsbur, veio a atravessar aquela floresta, galopando seu fiel cavalo branco. Ele tinha uma profecia a cumprir, agora que completara 16 anos – um assunto meio confuso sobre uma princesa enfeitiçada em um reino distante guardado por um terrível dragão. E assim partira, levando apenas a espada lendária que deveria usar para ceifar a vida da criatura.

Ele nem sentia muito medo. Na verdade, o conselho que vinha recebendo era o de passar depressa por aquele local em particular, cujas árvores restringiam boa parte da luz. Eram lendas e mais lendas a respeito. Roubo de crianças… Uma família de bruxas… Lobisomens… Árvores com galhos vivos… O rapaz evitava pensar demais nisso.

Aquela floresta sempre cercou seu reino e nada de anormal acontecia.

Se ele era capaz de matar um dragão, também devia ser capaz de despistar uma bruxa, caso visse alguma.

“A não ser que me enfeiticem”, riu consigo mesmo, dando uma cutucada no cavalo com o pé para que andasse mais rápido.

Após cumprir um bom trajeto, Theo notou algo estranho. Um espaço mais aberto em meio à densa vegetação. E algo ali que parecia ser um velho chalé de madeira; o lar de alguém.

Mas quem moraria naquela região? Quanto mais tão fundo dentro dela?

Ninguém de boa índole.

No entanto, o príncipe tinha um traço curioso que não o ajudava muito, e achou tudo aquilo quieto e abandonado demais. Então ele amarrou seu cavalo, desembainhou a espada por precaução e buscou uma porta de entrada.

A madeira carcomida permitiu com que ele entrasse facilmente, e logo tossisse com as camadas e camadas de poeira no interior. Um local abandonado, de fato. Com esforço, devido à vista que ardia, ele examinou seus arredores: janelas de vidro fosco e rachado pelo tempo, no entanto, normais. Uma sala de estar normal, em condições simples. Uma cozinha normal… Com diversos ingredientes pendurados em feixes pelas paredes, tão deteriorados pelo tempo que reduziriam-se a pó diante do menor toque. Inúmeros potes, de conteúdo mofado, armazenados em muitas estantes. E, ali no meio…

Um caldeirão?

Não deveria ser. Ou talvez fosse, mas apenas para cozinhar uma boa sopa. Muito normal.

Algo induziu o príncipe a caminhar ainda mais fundo pela humilde e desértica cabana.

Ao adentrar um último quarto – cada passo seu dissolvendo centenas de teias de aranha de uma vez, mas um bom príncipe não teme insetos – o herdeiro de Wynnsbur deparou-se com algo que não esperava exatamente encontrar. Uma moça.

Porém, não uma megera sanguinária cercada de sangue e ossos infantis. Apenas uma moça adormecida.

Algo indicava que suas circunstâncias não eram tão comuns: seu corpo estendido parecia envolto por um fino véu, que, ao aproximar-se, não era difícil supor tratarem-se de muitas teias de aranha entrelaçadas.

Aquela garota, de rosto bonito, aparência saudável e respiração ritmada, dormia há bastante tempo.

O príncipe Theo, ainda sem transparecer temor ou desconfiança, ajoelhou-se ao lado da cama e limpou com delicadeza o rosto da jovem. Ela tinha cerca da sua idade. Ele conhecia aquela situação, é claro – sabia o que deveria fazer, embora achasse um pouco desrespeitoso.

Então tentou alguns métodos tradicionais: uma sacudidela. O movimento fez com que a cama onde a donzela enfeitiçada estava deitada liberasse uma grande quantidade de pó, que quase matou o príncipe de alergia, mas não causou o menor efeito na adormecida.

Assim que voltou a respirar propriamente, o príncipe puxou de seu bolso um delicado alfinete de prata, ergueu uma das mãos empoeiradas da moça e, não sem algum receio, espetou seu dedo indicador. Uma gota de sangue, vermelho e quente, brotou do ferimento. Mas ela continuava a dormir, tão serena quanto antes.

“Não vai ter jeito”, pensou.

Assim, ele inclinou-se e plantou em seus lábios pálidos um rápido beijo. Não tão rápido, na verdade. Sua beleza lhe causara uma impressão.

De imediato, ela abriu os olhos. Quase de imediato, recuou de forma brusca.

Por um segundo, eles se entreolharam; igualmente assustados.

Mas a moça foi mais rápida em agir, pulando para fora da cama e agarrando um candelabro de metal.

— Calma, calma, calma! – exclamou o príncipe. Não tinha medo de lugares abandonados ou de insetos, mas temia um golpe na cabeça. Naturalmente. – Não vim machucá-la! Só quero ajudar.

Ainda segurando com firmeza o candelabro, a jovem expirou o ar, seguido de uma tossida.

— E eu preciso de ajuda?

O príncipe franziu o cenho antes de retrucar:

— Bem, acho que sim. Olhe ao redor.

Ela obedeceu. Tudo parecia extremamente empoeirado. Seu velho vestido… Seu vestido era uma mistura esbranquiçada de poeira e teias de aranha. Um tanto nojento. Liora arregalou os olhos.

— Não me diga… – começou, encarando aquele bem-arrumado rapaz.

— Sim, donzela. – concordou ele, mais calmo agora que a perspectiva de ser golpeado não era tão próxima. – Parece que você estava dormindo há muito tempo.

“Donzela.” Ninguém nunca a chamara assim. Soava um tanto desagradável, mas ela não se preocupou com isso ao devolver o candelabro ao seu lugar. Parecia um bom momento para cair em prantos. Liora dormira por aproximadamente um século.

Mas pelo que choraria? Quem sentiu sua falta? O que perdeu?

O pensamento, em resposta, fez jorrar algumas lágrimas pelo seu rosto.

O príncipe compadeceu de imediato, aproximando-se dela.

— Sinto muito. – emendou ele. – Mal posso imaginar… Qual o seu nome?

Liora hesitou um pouco, enxugando os olhos. Ela não devia confiar em estranhos – e para alguém de sua espécie, este era um conceito bastante amplo. Ninguém gosta de bruxas. Se uma criança adoece, plantações secam sem explicação, ou um prato é derrubado sem causa aparente, as mulheres introvertidas que cultivam ervas medicinais em suas hortas costumam ser as primeiras a levarem a culpa. Havia um excelente motivo para que Liora, sua mãe e sua avó vivessem isoladas.

Mas ela não era imune à solidão. Muito menos a ficar toda derretida diante da gentileza de um príncipe encantado. De modo que respondeu, finalmente:

— Meu nome é Liora. E o seu?

— Príncipe Theo de Wynnsbur, o primeiro. – replicou ele, sorrindo e estendendo a mão.

Liora sobressaltou-se. Bem, as roupas elegantes, o rosto impecável e a espada desembainhada com o emblema da família real gravado na empunhadura denunciavam alguma coisa. Ela apertou a mão de Theo, tentando disfarçar seu desconforto.

Já seria uma situação complicada se fosse uma pessoa qualquer do reino de Wynnsbur a entrar em sua velha cabana, mas um príncipe? Ela não sabia ao certo como reagir. Então prosseguiu com a conversa:

— O que… Vossa Majestade fazia por essas bandas?

Theo piscou. Ele próprio havia esquecido de seu compromisso.

— Pode me chamar de Theo, donzela. – corrigiu cordialmente. – Mas recomendo que se refira a meu pai, o rei, como Vossa Majestade, quando for apresentada a ele. Bem, antes de me deparar com a senhorita, eu estava a meio caminho de uma missão.

— Uma missão? – indagou ela, curiosa. Sentia-se um tanto tímida em olhar nos olhos do príncipe.

— Sim. Resgatar a princesa Lilian, no reino de Rysamir… Ela foi enclausurada há anos, em uma torre, por um dragão que não a deixa sair. Minha missão, de acordo com uma velha profecia, é matar esse dragão. E libertar a princesa.

Liora assentiu com um sorrisinho.

— E depois vocês se casam?

O príncipe pareceu constrangido, encolhendo os ombros.

— É essa a ordem das coisas, não é?

— Acho que é – concordou a jovem bruxa. – Bem, príncipe Theo, muito obrigada por me despertar. Acho que você pode continuar com sua missão. Eu estou bem.

— Tem certeza? – insistiu ele, com ar preocupado.

Liora fez que sim.

— A sensação é parecida com a de despertar após uma longa, longa noite de sono. Revigorante, até. Vou seguir com minha vida.

— E… E a sua família? – quis saber o rapaz, com hesitação.

— Não tenho. – respondeu Liora, sem disfarçar a voz embargada. – Éramos apenas eu, minha avó e minha mãe. Minha mãe foi acometida por uma febre terrível quando eu era criança; minha avó morreu de velhice há alguns anos. Há muitos anos, agora. Então… Vivo sozinha. Tenho me virado bem.

O príncipe pareceu comovido. Tinha coração mole, como todo príncipe. E por alguma razão, não tentava questionar mais a fundo as circunstâncias daquilo: uma jovem vivendo sozinha em uma cabana no meio da floresta. Ele segurou as mãos empoeiradas de Liora.

— Vou levá-la para meu reino. – prometeu. – Vou lhe oferecer o melhor tratamento possível em minha corte. Você não pode continuar vivendo assim… Sem ninguém.

Os olhos cor de mel de Liora encararam, pela primeira vez, direto nos olhos verdes e sinceros do príncipe. Entalada em sua garganta, estava a verdadeira resposta: Não posso. Não posso aceitar. Não sou como você.

Porém seu coração sugeria outra coisa.

Ela dormira por cem anos. O que teria a perder? E Theo havia sido muito gentil. Talvez as outras pessoas de seu reino também fossem assim.

Tenho direito à uma única decisão impulsiva, pensou, relaxando os músculos.

— Tudo bem. – concordou, sem fôlego. – E quanto à princesa Lilian?

— Ela pode esperar. – replicou o rapaz com um sorriso contente. Na verdade não podia, mas como típico adolescente da sua idade, ele às vezes ignorava as ordens do pai.

Então guiou a moça para fora da cabana, que, por alguma sorte de milagre, não havia desabado ao chão. Aguardando com certa impaciência do outro lado, encontrava-se um imponente cavalo branco, em cuja sela reluzia o emblema da família real.

— É meu cavalo, Sunrise. – introduziu com humildade.

Liora cumprimentou o belo animal com a cabeça; embora estivesse mais preocupada em olhar ao redor. Nada parecia ter mudado na floresta onde vivia. O mesmo piar de pássaros, o mesmo frescor da brisa, o mesmo verde das árvores… Por um segundo, ela imaginou se aquilo não passava de um sonho selvagem.

Uma bruxa, como ela, sendo resgatada por um príncipe encantador.

Theo desconhecia aquele pequeno detalhe enquanto a ajudava a subir na garupa do cavalo, galopando na mesma direção de onde viera – na direção do reino.

Liora sentiu seu coração acelerar quando alcançaram os limites da floresta.

Parecia já ouvir pessoas ao longe.

O que sua avó diria?


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Enquanto eu escrevia, passei o tempo todo pensando no quanto é inverossímel alguém passar cem anos dormindo sem envelhecer, comer, fazer as necessidades básicas ou acordar com um terrível mau hálito.

Vamos justificar tudo com magia, né?

De início isso seria um conto, mas achei melhor prolongar em uma short-fic de três capítulos. Vou atualizar assim que possível. Espero que gostem.