Os Sentinelas escrita por Hurricane


Capítulo 2
Crianças Não São Permitidas


Notas iniciais do capítulo

Olá, pessoal. Postando primeiro porque eu não me aguento, e segundo porque fui reprovado na minha prova de moto e isso me deixou bem triste.
Se tiver alguém lendo e quiser me falar alguma coisa legal, essa é a hora.



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Rique só descobriu que fora dormir quando acordou no dia seguinte. Ele e Diego levantaram com uma cara de derrota e desgraça. A garganta do primeiro doía e ardia, era como se tivesse um carvão entalado nela. Diego percebeu que o amigo estava mal e abriu a boca para perguntar o que era, mas sua voz quase não saiu. Ele próprio mal podia escutá-la.

Antes que eles sequer tivessem tempo de acordar direito, a garota do hotel bateu à porta. Diego, estando em melhores condições, foi quem atendeu.

— Que bom que estão acordados. Temos péssimas notícias para vocês. Arrumem-se e me encontrem lá embaixo, para que eu os leve até a prefeitura. Precisam de alguma coisa?

— Na verdade, acho que o Rique precisa de um médico — rouquejou Diego. Depois, rouquejou novamente quando ela não entendeu.

— Vou ver o que posso fazer por vocês. Não demorem.

Rique entrou no banheiro primeiro, ficou lá por um tempo extenso antes de sair pior do que quando entrara. Ele tremia, sua visão ficava turva. Apoiou-se nas paredes, abriu a boca para dizer algo e o que saiu foi mais próximo de um silvo do que uma palavra. Diego foi em seguida, e demorou o mínimo possível para poder ajudar o companheiro.

A garota os esperava, como havia dito. Ela entregou uma sacola parda para eles, que tinha um sanduíche para cada. Entraram num Uno quadrado, e ela ligou o carro. Pararam em frente a uma casa grande, com um portão de espetos de ferro e um muro de cascalho. O jardim era amplo e tinha algumas plantas esculpidas.

A garota abriu o portão – que estava totalmente destrancado – entrou e bateu à porta. Não demorou muito para um senhor abrir. Ele tinha os cabelos grisalhos, olhos espertos por trás de um par de óculos. Seu rosto era enrugado, mas ele ainda tinha as mãos e os pés firmes.

— Que foi, Amanda?

— Um dos forasteiros precisa de cuidados médicos.

— Forasteiros? — ele perguntou incrédulo. Olhou para eles no carro, entrou e deixou a porta aberta.

Amanda acenou para que a seguissem. A casa era ricamente mobiliada, com pé-direito alto, um chão acarpetado. As janelas eram amplas e o máximo de luz do Sol incidia em todos os cômodos.

Amanda os guiou até um quarto que parecia um consultório. Henrique deitou-se, e o velho sacou todos os apetrechos de médico que tinha ali. Ele iluminou a garganta problemática com uma lanterna e fez uma cara feia.

— O que foi, doutor? — perguntou a garota.

— É uma infecção horrível. Fez bem em trazê-lo aqui. O que aconteceu?

— Os Sentinelas aconteceram.

Os olhos do doutor brilharam com reconhecimento. Não fez mais nenhuma pergunta, apenas abriu um armário e muniu-os com remédios. Fez Rique tomar os antibióticos ali mesmo antes de liberá-los.

— Doutor, uma assembleia foi convocada. Não ficou sabendo?

— Seus conciliábulos nunca fizeram nada por nós, querida. Não compareci ao último, nem pretendo comparecer a este. Depois vocês podem me dizer o que eu perdi.

Sem trocar mais palavras, saíram. Henrique, pesadamente dopado, perdeu o contato com a realidade assim que entrou no carro. Tinha mínimos momentos de lucidez durante a viagem.

Diego sentou-se no banco da frente, dando espaço para que o amigo fosse deitado. Olhou Amanda com atenção, mas ela parecia inflexível.

— Então… Você é a líder do con… conci… conbici…

— Conciliábulo. Não, não sou. Não temos um líder propriamente dito. Apenas organizamos as reuniões quando algo de novo aparece.

— E o que apareceu dessa vez?

— Vocês.

O silêncio começou a se instaurar, mas Amanda resolveu quebrá-lo.

— Olha, é uma situação toda muito complicada. Vamos explicar melhor na reunião, assim como vamos discutir muita coisa ainda. Mas já adianto que ouvirão coisas inacreditáveis, e podem até nos chamar de loucos, mas… Bem, vocês viram os Sentinelas. Como eu disse, é uma situação muito complicada.

— Pode explicar alguma coisa, ao menos?

— Deixa para a reunião, ok? Poupe sua voz. Tenho certeza de que farão perguntas.

Diego concordou e ficou em silêncio. A prefeitura era um lugar realmente grande, havia cadeiras dispostas por todo o salão onde entraram. À frente, um púlpito esperava que alguém ali subisse e declamasse seu discurso.

Rique teve de ficar no carro. O salão estava quase inteiramente cheio, Diego olhou ao redor e viu muitos rostos. Mais rostos do que julgara que havia na cidade pela noite de ontem. As pessoas que compunham o público eram, em sua grande maioria, adultos, pessoas de meia-idade e alguns velhos. Não via criança alguma.

Amanda o guiou até uma cadeira no palco, para que todos pudessem vê-lo. Um homem alto e grisalho tomou a palavra e fez o anúncio:

— Meus queridos camaradas, este é um marco histórico para nós: estrangeiros adentraram a cidade. — Uma ovação se seguiu. — Talvez finalmente possamos…

— Não podemos! — gritou quem, Diego reconheceu, era o frentista da noite passada. — Eu tentei sair e deu no mesmo. Além de mais dois infelizes aqui, nada mudou.

E, com essas palavras, começou uma discussão enorme, mas nenhuma voz se elevou. Diego percebeu que elas faziam um esforço quase sobrenatural para não se exaltarem demasiadamente. Amanda olhou bem para tudo aquilo, balançou a cabeça e tirou Diego dali. Voltaram para a casa do doutor, onde ele os recebeu com uma xícara de café para cada e algumas bolachas.

— Você tinha razão, Rikta. Nossa reunião foi inútil e ninguém respondeu a nada.

O doutor deu de ombros.

— Bem, vamos logo ao que interessa — Amanda disse olhando para Diego. — Você ainda tem muitas perguntas, nós temos poucas respostas mas vamos dar todas que pudermos. Comece.

— Não, comece você. O que há de errado com essa cidade? Por que o conciliábulo? Por que tantas pessoas compareceram? Melhor ainda: que coisas eram aquelas? Como assim fomos punidos?

— Olha, vou tentar te dar uma resposta resumida que cubra todos esses pontos: os guardiões da cidade são as coisas que nós começamos a chamar de Sentinelas. Eles cuidam de todo e qualquer crime que seja cometido aqui. Os Sentinelas são como criaturas mágicas, que nos prenderam nessa cidade. Há quarenta anos não entra ou sai ninguém daqui. Até ontem à noite, quando vocês dois apareceram.

“Por isso tantas pessoas foram vê-los. Vocês dois podiam significar nosso expurgo… Mas parece que não.”

Diego levou um minuto para engolir a história. A princípio, ele não queria acreditar, mas lembrava-se do Sentinela à noite, sobre seu peito, e depois sumindo. Então percebeu algo que não se encaixava na história:

— Se não entra ninguém aqui há quarenta anos, por que o hotel ainda funciona?

— Não funciona. Mas algo me levou até lá, e, sinceramente, eu acho que foram vocês.

— Dona, isso não faz sentido algum.

— Não vocês vocês, mas ninguém entrou nessa cidade por quarenta anos. Não foi acidente. Os Sentinelas os trouxeram até aqui, e eles me levaram até lá para que tivessem onde ficar.

Diego tomou um gole do café, apertou seus olhos com força e respirou fundo. A rouquidão o incomodava.

— Então… Eu não cometi nenhum crime, por que fui punido?

— A definição dos Sentinelas de crime é bem… ampla. Se você rouba, eles arrancam seu braço; se você mata, eles te matam. Se você mente, eles arrancam sua língua.

— Não matei, nem roubei e nem menti.

— Mas você não sabia como a nossa querida cidade funcionava até agora — intrometeu-se Rikta. — Diga, não percebeu nada de exótico na reunião?

— Hmmm… Não haviam crianças?

— Também, mas durante a discussão.

Diego parou e pensou. Além de que ninguém realmente gritara, não sabia. Deu de ombros e acenou para que o doutor continuasse.

— Nós não falamos obscenidades… Perdão, mas qual é o seu nome, mesmo?

— Diego.

— Nós não falamos obscenidades, Diego. Não ofendemos aos outros. Porque isso também é um crime para os Sentinelas.

Ele arregalou os olhos, imaginando como era dar uma topada na quina da mesa nessa cidade amaldiçoada.

— Os Sentinelas — continuou Rikta — operam por uma Lei de Talião violenta e deturpada, onde, se você comete um crime, você é punido. Não importa o crime, a punição é sempre violenta.

“Nos primeiros anos, tínhamos uma paciente que sobrevivia por aparelhos. Quando a desgraça recaiu sobre nós, a família nos mandou desligar tudo. Veja bem: se os aparelhos mantinham a paciente viva, desligá-los a matava. O médico responsável teve sua cabeça arrancada e entregada como um troféu à família ‘vitimada’.

“Uma jovem de dezesseis anos, também. Ela estava grávida e cometeu um aborto. Os Sentinelas a rasgaram do útero até o pescoço, porque abortar é matar o feto.”

— Isso é discutível.

— Não para os Sentinelas. Eles não operam por um código de moral. O corpo de polícia inteiro foi assassinado porque eles trocaram tiros com alguns assaltantes. Os assaltantes também foram. Entende? Não importa se os policiais estavam protegendo a população, não importa se era ou não um direito da garota não ter o filho.

“As leis dos Sentinelas são maiores que as leis dos homens.”

— Então porque eu xinguei um pouquinho, eles enfiaram a mão na minha goela e acabaram com a minha voz, além de darem uma infecção pro Rique?!

— Na verdade, estamos surpresos que eles simplesmente não os tenham matado. Não é normal que deixem viver desse jeito, mas, de novo, se os trouxeram aqui, talvez não os queiram mor… Doutor? O que foi, doutor?

— Eles encostaram em vocês? — perguntou, incrédulo. Sua boca pendia aberta enquanto não falava, e a descrença havia se espalhado desde o ponto mais baixo de seu maxilar até o último fio grisalho sobre sua cabeça. — Com suas mãos!?

— Bem… Sim. Não deviam?

Amanda o olhou, retesou seus lábios e deixou o olhar vaguear antes de explicar.

— Os Sentinelas… não encostam nas pessoas. Não fisicamente. Eles… olha, não sabemos explicar, mas eles vêm das sombras, eles habitam nas sombras, e eles usam as sombras. Então, quando atacam alguém, eles não encostam na pessoa. Eles estendem as… sombras, olha, eu disse que não tínhamos muitas respostas. Convivemos com eles há quarenta anos, mas não sabemos nada além de um punhado de informações.

Diego ficou sentado, deixando o resto do café esfriar na xícara. O silêncio se instaurou entre eles enquanto cada um absorvia as novas informações. Diego repassou cada momento daquela conversa, então parou e perguntou:

— E o que tem as crianças? Por que você deu atenção a eu ter dado atenção a isso?

— Nossa vida tem sido bem infeliz sob o jugo dos Sentinelas. Não podemos embravecer, não podemos esbravejar. Alguns de nós optaram pelo suicídio, mas a maioria não tem coragem pra isso.

“Além de tudo, crianças são impulsivas. Os Sentinelas costumavam ser complacentes com menores de sete anos, mas, mesmo assim, nem sempre os pequenos escapavam.

“Então, nós resolvemos que acabaríamos com a cidade da única forma que tínhamos à disposição: proibimos a procriação. Assim, quando todos nós morrermos, acaba.”

— Então essa é sua última geração?

— Esse é até o lema da cidade. — Amanda sorriu com tristeza. — “Crianças não são permitidas”.


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