Contos - Aventuras Mágicas escrita por Saaimee


Capítulo 20
Para trabalhar, é preciso


Notas iniciais do capítulo

Tema: Rotina.
Personagem: Virgil.

Boa Leitura!



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Outro dia...

Meu corpo estava flutuando suavemente no meio do nada. Tudo que meus olhos viam era escuro, mas mesmo assim não era impossível de distinguir as paredes do ar. Eu não sabia onde estava, porém também não tive medo. Sentia como se estivesse sendo abraçado no silêncio da solidão. Aquilo era... algo familiar para mim.

Foi no meio desse vazio que um cheiro adocicado invadiu minhas narinas. Era quente e, de certa forma, parecia saboroso. Uma fragrância impossível de ignorar me convidando a persegui-la ao ponto de me fazer abrir os olhos.

A dificuldade de me adaptar a luz que cegou minhas retinas no momento em que acordei era óbvia. Tinha esquecido a janela aberta novamente e o sol já se acomodava sobre mim a essa hora. Também não demorou muito para conseguir levantar a cabeça da mesa de madeira e me sentar de novo em postura reta.

Essa era a mesma sala que vim na noite passada finalizar mais um trabalho e acabei dando início a mais cinco aos quais estão agora descansando em um caixote de madeira bem ao meu lado. Minha decepção por notar que acabei pegando no sono antes de acabar com qualquer um deles ficou estampada no meu rosto.

Bocejei me ajeitando um pouco na cadeira quando encontrei a razão que me tirou daquele sonho apagado. Estava ali, em um prato de porcelana decorado em formas azuis, o café da manhã.

Ainda tinha fumaça saindo da xicara de chá e o recheio do pão cheirava a atum fresco — não do tipo que vem enlatado, mas aquele cortado na hora bem rosado e suculento.

Olhei para trás procurando por vestígios que trouxeram o prato até mim e mesmo vendo a porta fechada eu sabia quem possivelmente tinha acabado de passar por ali para me ver.

Levantei, indo até a janela tomando um longo suspiro daquele ar fresco e, olhando o céu, tomei um gole do chá antes de começar a comer.

Assim que terminei, juntei a bagunça e segui para fora.

A casa é enorme e mesmo com minha sala sendo ao lado da cozinha ainda levei alguns longos minutos para chegar lá.

Era tão comum o silêncio tomar conta dos cômodos pelas manhãs e, se parasse para pensar, esse era o único momento de calmaria por aqui. A maioria saía cedo para treinos matinais e completar as tarefas na vila logo de manhã. Não que eu odiasse a bagunça diária, mas o silêncio também me ajudava a trabalhar.

Foi entrando na cozinha que vi Raphael limpando a mesa. Parecia tão concentrado com seus produtos que não quis incomodar.

— Bom dia.

O som da porcelana na pia deve ter me denunciado. Sua voz não parecia animada e nem cansada, mas me chamou a atenção. Respondi no mesmo tom me virando para vê-lo e nesse momento o vi rir curto.

— O que aconteceu com seu rosto? Dormiu em cima do braço?

Sim, eu tinha feito isso, entretanto não tinha como minhas mãos de metal conferir se havia deixado marcas ali. Mas pela expressão que ele fazia pude imaginar que não foi um simples amasso.

— Ainda bem que o Vicent não está aqui senão você ia ouvir ele dizendo “eu disse para ir dormir” ou “você tem uma cama para se deitar, sabia?”

A imitação me fez sorrir. Os dois viviam brigando, mas era engraçado como sabiam exatamente o que cada um diria em qualquer situação.

— Mas não se preocupa que não vou falar pra ele.

— Obrigado.

— Tá. Agora vai lavar esse rosto e arruma esse cabelo, por favor!

— Tá bem.

Já estava me retirando dali. Precisava mesmo tomar um banho antes de voltar de uma vez para as peças de ontem.

— Ah, Virgil.

Sua voz me fez parar o encontrando apoiado na mesa como se tivesse lembrado de algo.

— Foi o Vicent que fez seu café. Ele não queria que dissesse, mas acho que tava meio óbvio toda aquela frescura no pão.

— Sim...

Acabei sorrindo com a forma incomodada que falava o vendo fazer o mesmo voltando para a limpeza.

Eu costumo passar muito tempo trancado na minha sala criando acessórios, novas joias ou qualquer outra coisa para trabalhar, mas me deixa feliz saber que quando saio de lá as coisas ainda estão iguais aqui.

Fui logo para o banheiro no andar de cima que parecia estar há uma cidade de distância da cozinha. Tranquei a porta e me olhei no espelho. Meu rosto estava mais claro do que eu imaginava, porém ainda avermelhado com marcas do metal parecendo ser outra parte arrancada de mim.

Me afastei indo para a banheira e essa era a parte mais difícil. Para entrar no banho eu precisava retirar os dois braços se não quisesse danificar o metal. O problema era colocar de volta sem ter apoio de nenhum braço. Mas eu dava um jeito. Sempre foi assim.

Estava descendo as escadas pensando se ainda tinha o molde de um antigo anel quando vi Daichi parado no meio da sala com uma cesta pesada em mãos. Quando me viu mostrou quase instantaneamente aquele largo sorriso que parecia carregar o sol nele.

— Vem cá. Olha.

Com calma me aproximei vendo legumes e frutas recheando e colorindo o interior da cesta de palha. Pareciam frescos e só de olhar já era possível abrir o apetite.

— São todos da horta?

— Sim. Eu ia colher ontem, mas achei melhor esperar um pouco.

— Ah. – Esse era um assunto do qual não entendia nada, mas ouvir sua voz animada como uma criança me fez entender que se tratava de felicidade. — O cheiro está ótimo.

— Não é?

O orgulho estava transbordado nele como se esse fosse o trabalho de sua vida e que queria que todos vissem. Era até contagiante.

— O Mischief gosta de legumes então eu peguei o máximo e... Essas frutas... Quero mostrar para o Hayato.

— Ah... – Eram pequenos círculos coloridos que pareciam até um brinquedo. Pelo cheiro acreditei que fossem doces e estavam tão frescas quanto todo o resto, entretanto o rosto do mais velho estava inseguro. Talvez fosse uma preocupação exagerada, mas cuidar do Hayato com certeza expunha sua cautela em fazer tudo para agrada-lo. — Ele com certeza vai gostar.

Daichi não me respondeu, mas seu olhar feliz deixou claro seu alivio.

O acompanhei até a cozinha ouvindo contar sobre as sementes que ganhou e sobre toda ajuda que vem recebendo para cuidar do terreno.

Eu não estava aqui quando tudo começou, mas soube que ele iniciou o trabalho na horta porque precisavam de ajuda e como ele não tinha o que fazer resolveu se voluntariar. Mas, hoje, ele cuida como se fosse sua e precisasse faze-la dar certo.

Eu não entendo de hortas, mas essa necessidade de trabalhar me aproxima dele.

 

Voltei para a sala indo olhar o caixote. Peguei a primeira peça que estava jogada em cima de todas e a lixa sobre minha mesa. Precisava cuidar das extremidades pensando se deveria seguir o plano no papel ou criar outro.

Em meio a uma martelada e outra acabei me lembrando de como acidentalmente vim morar aqui. Já deve fazer um ano desde aquele encontro e mesmo depois de todo esse tempo as coisas continuam mudando. E, talvez, isso tenha me afetado um pouco.

Era estranho como passei anos morando em lugares luxuosos como este, mas essa era a primeira vez que não me sentia um intruso.

Batidas na porta me interromperam. Antes de poder me virar a porta já estava aberta revelando o rosto de Thony.

— Vamos almoçar.

Thony era o mais distante da casa e se não fosse por ocasiões como esta acho que nunca nos falaríamos.

Eu nem vi a hora passar, mas resolvi seguir para fora e os encontrar no salão onde a vila toda se juntava para as refeições.

Durante esse momento aproveitei para falar com Vicent sobre algumas peças que precisava comprar e, graças a isso, agora estávamos andando pela cidade em busca dos materiais.

— Tem certeza que somente essas pedras serão o suficiente?

Ele questionou curioso olhando a bolsa leviana que eu segurava. Acabei sendo levado pelo olhar dele a checar novamente os produtos.

— Sim... Sim, é ideal.

— Certo, mas você não quer pegar mais nada? Eu tenho o tempo que precisar e esse lugar tem pedras lindas.

Sua intenção estava óbvia para mim. Vicent não podia entrar em loja nenhuma sem querer levar tudo o que via. Ele tinha dinheiro e podia realizar esse desejo, mas, realmente, aquilo não era necessário hoje.

— Vicent, está ótimo assim.

Vi seus olhos decepcionados por não poder ir contra minhas palavras. Claro que não teria problemas comprar mais alguma coisa, entretanto para mim isso já era o suficiente. Ouvi seu suspiro e o balançar da cabeça me trouxe a sensação de que não tinha acabado aqui.

— Tudo bem. Porém ainda tem uma loja que eu preciso ir e gostaria que me acompanhasse.

— Ah... – Ele sempre dava um jeito de conseguir e agora era eu quem não podia ir contra. — Claro.

O passeio demorou muito mais do que era preciso, mas, graças a isso, ambos voltamos satisfeitos.

Eu queria ir direto para minha sala quando cheguei, mas ver Hayato sentado no sofá me fez mudar a direção e ir até ele.

— O que está fazendo?

— Ah... Nada.

Ele tentou esconder, mas para o azar dele eu fui mais rápido. Tive a certeza que era a boneca da Elizabeth ali.

— Hayato? – Tentou me ignorar como se eu não estivesse ali. Esse jeito teimoso dele me faz sorrir. — Hayato...

— O que?

— Eu também sei ser teimoso.

— Ah... – Deve ter se cansado ou queria evitar que os outros o vissem porque rapidamente se virou me mostrando a boneca. — Eu nem sei como ela fez isso, mas rasgou aqui. – Próximo ao pescoço de pano os fios haviam se soltado. — Daichi disse que ia consertar, mas ele também não sabia como.

— Deixa eu ver.

Era uma boneca simples de pano que tinha ganhado de presente de Natal. Elizabeth sempre foi muito delicada e dificilmente faria algo assim por isso estranhei a situação. Mas olhando mais de perto dava para perceber que a linha tinha se soltado sozinha.

— Ah. Aqui. Você precisa passar uma linha daqui até a parte de trás.

— Tá. – Ele olhava sério como se estivesse determinado a fazer isso ou, pelo menos, mostrar ao Daichi como fazer.

Isso me lembrou que ainda tinha coisas para fazer. Me retirando fui rápido pegar a sacola e partir direto para a sala na esperança de que agora conseguiria terminar os cinco projetos.

Eu imaginava que deveria ter se passado algumas horas desde que retomei tudo. Tinha terminado três peças, mas havia algo errado. Meu corpo estava mais cansado e eu já estava com fome de novo.

Batidas ecoaram no silêncio e com minha permissão a porta se abriu mostrando Elizabeth com seu pijama branco e um sorriso delicado em seu rosto de porcelana.

— Vim te dar boa noite.

— Já?

Rapidamente me virei para a janela vendo o céu escuro e entendendo o motivo do meu corpo agir assim.

— Já. – Estava do meu lado quando falou. — Não vai esquecer de dormir. – Sorri a vendo beijar minha bochecha contente. — Boa noite.

— Durma bem, Elizabeth.

A vi partir sentindo a positividade que ela transmitia se perder na sala. A inocência dela era um tipo de combustível que nos fazia seguir todos os dias.

Voltei para a mesa e resolvi terminar só mais uma antes de jantar. E foi essa decisão que me fez ficar ali por mais três horas. Só percebi que estava tarde quando novas batidas surgiram.

Me levantei espreguiçando e abri a porta vendo Vicent em seu roupão segurando duas xícaras nas mãos.

— Você não saiu nem para jantar, certo? – Seu tom era sério, mas não tinha raiva.

— Eu... ia agora.

— Sei.

Nem me permitiu explicar a situação e foi logo me entregando a xícara. Talvez não tenha questionado mais porque sabia que isso sempre acontecia comigo, mas isso também me fazia me perguntar se ele sempre vinha me ver por preocupação ou por teimosia.

Dei espaço para que entrasse e sem formalidade nos sentamos nas cadeiras simplórias da sala. Pela primeira vez no dia pude relaxar de verdade.

Vicent costumava sempre aparecer aqui e ter certeza de que eu estava bem. Às vezes me repreendia, às vezes suspirava, mas sempre ficava do meu lado.

Tomei um gole do chá, não era o mesmo que tomei de manhã. Esse era suave e me acalmava. Olhei para o céu e sorri. O dia já estava acabando e logo eu começaria tudo de novo. Apesar disso soar repetitivo ou até entediante eu me sentia bem. Era uma garantia de que poderia viver isso tudo mais uma vez.

E acho que foi esse pensamento que me fez acreditar que essa noite, talvez, eu tenha um sonho bom.

—Fim. XIX


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Notas finais do capítulo

Eu quis escrever um capítulo solo pra ele por ser um personagem mais distante. Porém ainda quis manter os outros na estória. Isso porque o Virgil não está mais sozinho ♥ E se você olhar bem, o texto ficou parecendo uma lista de tarefas do dia :D
Also, imagino o Vicent conversando com o Daichi ao saber que a boneca rasgou. “Isso é culpa sua por comprar essas coisas vagabundas!”
Obrigada por ler e espero que tenha gostado :)



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