Rainha Das Trevas escrita por Iapsa


Capítulo 1
Prólogo


Notas iniciais do capítulo

Olá! Sejam bem-vindos a Rainha Das Trevas! Espero que vocês apreciem a leitura! Comentários e críticas são sempre bem-vindos, então sintam-se totalmente à vontade para falar comigo!



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Na mais distante nuvem, vivia a Progenitora

Com seus filhos dividia o céu, a grande criadora

Das estrelas da noite, das constelações desenhadas

Foi Daryan o primeiro a ter as histórias contadas

E das plantas, dos animais, da natureza cuidava Yvana

Herdada de sua mãe, sua bondade não engana

E da água nasceu Corin, com a proeza de navegar

À proteção dos pescadores e marinheiros o deus do mar

E os gêmeos da luta a brandir suas adagas

Lanot o deus da conquista, da expansão e das cruzadas

Com machados e pedras nas mãos, tomador de terras pela audácia

O lombo do cavalo, dividia com a irmã Phaschia

A deusa guerreira dos povos, face destemida e heroica

Forjada no fogo, forjada na força, com sua armadura brilhante, fortaleza estoica

Seron, depois, lutar tantas batalhas não sabia

Porém não perdia em tática e estudo, o deus da sabedoria

Mas foi pela última que os céus choraram sangue

Hanahra, sempre sombria, banida do sol ao mangue

No que a traição trouxe a discórdia, a Progenitora sentiu a dor

Ao ver inconsciente e aleijado o filho Lanot, que criara com tanto amor

E Daryan apagou sua luz, Yvana secou infértil

Corin trouxe maremotos, e Seron, cheio de vida, envelheceu como um réptil

Mas o grito de Phaschia soava, com raiva e inconformismo

No que Lanot acordava e via sua perna arrancada com tanto cinismo

“Foi Hanahra, minha mãe, a tentar matar meu irmão”

E a Progenitora então viu, nos olhos da última filha, a pura escuridão

“Deixe os céus!” a criadora ordenou, sua piedade levada às cegas

E assim Hanahra caiu ao submundo, tornando-se a deusa das trevas

Mas a dor de uma mãe não pode ser curada

A promessa do pior dos males ela fez, pois seu coração viu a desilusão alimentada

A Progenitora, então, conjurou a Energia

E do poder em suas mãos, nasceu Savinya

As árvores, o sol, o vento e o mar

Mas não se engane, o Komatose há de chegar

E do fim dos tempos, só um poderá nos salvar

Pois ele poderá, como nossa grande criadora

A energia conjurar

* * *

Oryna, território sul das Terras do Reino, ano 5475

A luz do fogo iluminou o céu, ofuscando as estrelas, que brilhavam naquela noite. Nas árvores que rodeavam o vilarejo, as chamas se espalhavam, tornando o verde, antes vivo, negro como as águas do além-mar. Por entre os gritos dos aldeões, o templo da pequena Oryna era consumido pelo calor, e sua estrutura fraca cedia conforme as lanças e machados a perfuravam.

—Não nos machuquem, por favor... – a voz aguda de uma jovem senhora soou mais forte que as demais. Junto a ela, outras mulheres e crianças eram levadas à rua principal, onde, banhadas pela luz alaranjada, assistiam ao templo vir abaixo.

De cima de um cavalo malhado de creme e castanho, ele as mirava por trás da máscara de couro que o identificava como guerreiro, vermelha e branca, costurada com penas e dentes de lobo da Mancha. A seu lado, um cavalo marrom escuro carregava uma mulher, que empunhava uma lança de cuja ponta o sangue ainda escorria. Ela levou sua mão livre ao rosto e ergueu sua máscara amarela, revelando um par de olhos castanhos e uma pele cravada com desenhos em negro de símbolos Maratt.

Diversos cavalos galoparam até os dois, conduzidos pelos demais guerreiros, cujos gritos de vitória já superavam o barulho do fogo, com suas armas erguidas no ar enquanto abriam caminho para um cavalo rajado de preto e cinza, que carregava seu ancião.

As mulheres na rua principal secavam lágrimas nos aventais por cima de seus vestidos. O couro das armaduras dos Maratt parecia refletir o fogo em seus olhos, e elas os fechavam para evitar a luz, vinda do templo, das árvores e do que ainda há pouco era conhecido como Oryna.

O guerreiro do cavalo malhado se aproximou de onde estavam agrupadas. Uma delas, abraçando uma jovem que parecia recém deixar a infância, suplicou:

—Por favor, poupem a pureza de nossas filhas! Estarão arruinadas se lhes tirarem a inocência...

—Não fazemos isso. Não somos Gal. – não foi o dono do cavalo malhado a dizer, e sim a guerreira de máscara erguida que trotava a seu lado – Somos Maratt, e nossas lutas e conquistas são ganhas em nome de Phaschia.

Os Maratt soltaram seus gritos de guerra.

—Seus homens lutaram com honra. – disse o guerreiro do cavalo malhado – Adentrem a Muralha e avisem os homens do rei que este território agora pertence aos Maratt. Levem suas crianças e anciões.

As mulheres se entreolharam assustadas por alguns momentos, e então, as mais velhas se colocaram à frente para guiar as outras em direção à parte não incendiada da floresta. Em poucos minutos, todas desapareciam por entre as árvores.

Logo, toda a extensão das Terras do Reino seria posse dos Maratt, antes que os Gal pudessem sequer tentar tomá-las.

—Por Phaschia! – gritou o líder dos guerreiros, e seus companheiros repetiram a saudação, gloriosos por mais uma vitória. Porém, algo os interrompeu.

—Estão ouvindo isso? – a voz rouca do ancião fez os gritos se calarem. Nada parecia ser ouvido além do barulho do fogo, porém, ao prestarem atenção, os guerreiros escutaram um som agudo irromper de dentro de uma das casas em chamas; o choro de um bebê.

Eles se entreolharam. Agora em silêncio, perceberam que o choro era contínuo, e vinha de uma casa a alguns metros da rua principal.

Em um breve instante, a guerreira que antes erguera sua máscara agora a colocava de volta sobre o rosto e descia de seu cavalo.

—Varsya, o que está fazendo? – o líder lhe perguntou.

—O choro é forte, a criança ainda está viva! – disse Varsya, correndo em direção à casa que queimava.

—Deixe-a, Ewrock. Deixe-a. – as palavras do ancião foram a última coisa que ela pôde escutar antes que o som do fogo consumisse seus ouvidos ao entrar na casa.

Os móveis e até mesmo o piso queimavam, mas Varsya seguiu em frente, buscando pelo choro que se tornava mais alto. O calor era incessante contra sua pele, e o fogo parecia cegar seus olhos quando ela, por fim, avistou, em um quarto dos fundos, o bebê, embrulhado em um pano acinzentado que começava a ser banhado pelas chamas. No mesmo instante, Varsya correu em sua direção e tirou o bebê do pano que o encobria, pouco antes que o fogo o consumisse.

A casa parecia prestes a vir abaixo. Sem perder tempo, Varsya foi veloz até a porta e deixou que a construção desabasse, carregando o bebê, agora nu como viera ao mundo, até seu cavalo. Os demais guerreiros desmontaram e vieram em sua direção, junto a Ewrock.

—Ele está bem? – perguntou ele. Varsya mirou a criança em seus braços, procurando por queimaduras ou machucados, mas não havia nenhum. Sua pele branca estava lisa como se recém houvesse nascido, e, de fato, parecia não ter mais que alguns meses de vida.

—Sim, não tem um machucado sequer... Ela está bem... – embasbacada, a guerreira sibilou, olhando para seus companheiros. O ancião, em meio a eles, mirava fixamente a pequena menina.

—Sua mãe morreu na casa? – um dos guerreiros perguntou.

—Não havia ninguém. – respondeu Varsya, lembrando-se da construção que desabara. Estava vazia, e nenhuma das mulheres que há pouco haviam deixado o vilarejo parecera dar falta daquela criança.

—Sendo assim, vamos deixá-la. – disse Ewrock – A Progenitora há de prover para que alguém de seu povo a encontre, se for seu destino viver.

Varsya mirou-o com olhos confusos, mas não pôde falar, pois o ancião veio a ela. Na verdade, à bebê, que ainda chorava incessantemente. Repousando a mão sobre sua cabeça, ele disse:

—Devemos levá-la conosco.

Os demais Maratt fitaram seu ancião.

—Mas Gora, não criamos crianças que não sejam nascidas Maratt... – uma guerreira de máscara marrom hesitou.

—Ela mal é nascida, e já é uma sobrevivente. – disse o ancião, pegando a criança do colo de Varsya – Sobreviveu ao fogo sem ao menos um arranhão. Esta menina pode não ter vindo ao mundo por uma mãe Maratt, mas é uma alma Maratt que a habita.

—Como pode ter certeza? – questionou Ewrock. O ancião não se ocupou em olhá-lo nos olhos; ao invés disso, ergueu a criança com os braços, e quando a luz do fogo banhou-a por completo, em meio ao choro, Gora profetizou:

Forjada no fogo, forjada na força, com sua armadura brilhante, fortaleza estoica.— com os poucos segundos de citação dos escritos sagrados, a menina aquietou-se, deixando apenas o eco de seu choro no ar – O poema de Phaschia cala seu choro. Esta menina é uma protegida de Phaschia. Ela será uma de nós.

Mais uma vez, o movimento dos guerreiros foi de olhar uns para os outros, como se analisassem em conjunto as palavras de seu ancião. Ele, por sua vez, devolveu a criança a Varsya, que a segurou junto ao colo para que se aquecesse. Afinal, o fogo deixava quentes os restos de Oryna, mas as noites de Savinya eram frias naquela época.

—Qual deverá ser seu nome, Gora? – Ewrock perguntou, por fim. Gora novamente pôs a mão sobre a cabeça da menina, que, agora, abria seus olhos, azuis como o céu do verão.

—Freyja. Seu nome será Freyja.

* * *

Amatur, território norte das Terras do Reino, ano 5484

—Malditos! Izenys malditos!

O último grito da dona do lar para crianças abandonadas soou antes do sangue escorrer de sua garganta no que a espada curva dilacerou-a, tingindo o chão do celeiro de vermelho e arrancando gritos infantis apavorados.

—Todas as meninas já estão aqui? – a pergunta se repetia pela terceira vez, vinda de um homem alto de pele pálida, com longos cabelos negros que lhe escorriam pelo rosto de traços retangulares, enquanto um olho castanho mirava os arredores, e o outro, branco de tão cego, apenas refletia as pequenas meninas do lar dos desvalidos sendo enfileiradas em sua frente.

Foi naquele momento que um dos piratas arrastou para dentro uma garota esguia, também pálida de cabelos negros, que gritava alto e se debatia, suas roupas sujas se rasgando conforme ela deslizava com dificuldade no chão.

—Essa parece boa, Gunn. – riu o Izeny de cabelos longos, andando até a menina, que agora derramava lágrimas de desespero. As outras, amontoadas no canto do celeiro, apenas olhavam para ela – As casas da noite das terras do além-mar pagarão caro por elas.

As meninas gritaram. Porém, suas vozes se calaram ao ouvir o som dos piratas empunhando suas espadas e apontando-as em sua direção. Ao redor, o vilarejo de Amatur era devastado pelos Izenys, tendo seus mantimentos saqueados, homens mortos e mulheres violadas.

Porém, na mente da menina de cabelos negros, à altura de seus nove anos, era como se os gritos e súplicas por piedade fossem mil vezes mais altos.

—Levem-nas aos navios. – a ordem do pirata parcialmente cego fez seus companheiros se movimentarem. Ele, então, olhou para a menina à frente, levando a mão à lateral de seu rosto – Quem sabe eu mesmo não fique com uma de vocês em meus aposentos?

Com a risada do pirata, a pobre menina sentiu calafrios a dominarem, seus membros tremeram sem controle, e então, quando ela estava prestes a gritar, ouviu um grito ainda mais alto, vindo do homem bem a sua frente.

—Capitão Orivys?! – o outro pirata, Gunn, com sua pele escura e cabelos desgrenhados, correu na direção de seu capitão, conforme ele tirava a mão de perto da garota, e vinha ao chão, gritando e se contorcendo de dor.

As meninas amontoadas gritaram mais. Porém, a que se mantinha parada à frente do pirata apenas assistiu, pasma, o subordinado também vir ao chão e se debater contra uma dor tão súbita quanto a invasão Izeny àquele vilarejo. Foi ao virar a cabeça para os lados que a menina compreendeu o que se passava: todos os piratas ao redor agora se contorciam dolorosamente, enquanto as garotas os miravam incrédulas. Ela sabia o que eles fariam a todas elas. Ela queria que sentissem dor.

Em um instante que, em sua mente, durou horas, a menina pulou uma das janelas do celeiro e correu  para longe com a maior velocidade que suas pernas finas e fracas a possibilitavam. Não olhou para trás, nem mesmo quando outras meninas pularam pela janela, indo cada uma para uma direção diferente, e os gritos dos piratas cessaram, dando lugar à ordem do capitão:

—Traga aquela bastardinha de volta, Gunn!

—Recuperem as demais! – a voz de Gunn soou em meio aos gritos desenfreados do vilarejo, e a menina, então, finalmente permitiu que o canto de seus olhos enxergassem o que se passava atrás dela: o pirata vinha em sua direção, muito mais rápido do que ela poderia correr.

Desesperada, a menina tentou despistá-lo da forma que pôde: correu por entre mais piratas, desviou de alguns que, sob as ordens de Gunn, tentaram agarrá-la, saltou sobre corpos, como uma garota abandonada em uma casa para desabrigados ainda nos primeiros dias de vida sabia bem fazer. Porém, ainda ouvia os passos de Gunn em sua cola.

Afastando-se do vilarejo, ela adentrou a floresta, procurando sem sucesso por um esconderijo até avistar uma clareira escura. No maior silêncio que pôde, ela se embrenhou pelas árvores até alcançar a construção e entrar por uma das janelas.

Era uma casa de poucos móveis, e a única luz que adentrava era a da lua, e o resquício da iluminação de Amatur. A pequena cozinha dava entrada a um quarto, mais afastado da entrada, e foi para lá que a menina correu, pensando poder se esconder com mais facilidade. Porém, no que passou pela porta, trombou com uma figura alta e esguia, que vestia uma velha capa escura.

A colisão fez com que a garota caísse, e seus olhos puderam apenas assistir ao capuz da figura em sua frente se abaixar, revelando pele e cabelos negros, desfiados e trançados, de uma mulher.

—O que faz aqui? – perguntou ela, se aproximando da menina. No mesmo momento, ouviu-se o som de passos vindo naquela direção, de fora da casa. A menina sentiu seu coração disparar ainda mais.

—Por favor, não deixe que ele me leve! – ela sussurrou, o mais baixo que pôde – Os Izenys iam nos vender para casas da noite do além-mar... Muitas não conseguiram fugir...

—Como você escapou? – perguntou a mulher, estranhamente calma. A menina estremeceu. Podia ouvir o som de sua própria respiração ofegante.

—Eles... Começaram a se contorcer de dor... Acho que eu os fiz sentirem dor...

Ela sentiu seus membros tremendo novamente, sem parar, quando a mulher fitou-a com espanto. A menina temeu que ela não acreditasse. Ela mesma não acreditava, aquilo era realmente possível? Nunca havia sequer ouvido histórias de seres que fizessem os outros sentirem dor daquela forma...

De repente, a porta da frente se abriu, e ambas viram Gunn entrar bruscamente na cozinha, junto a outro pirata.

—Aí está você! – caçoou ele. Ainda tremendo, a menina se escondeu atrás das pernas da mulher que recém-conhecera – Me dê esta criança, mulher. Ela pertence a mim.

—Pode levá-la. – disse a mulher, mais uma vez, calma.

—Não, não! – protestou a menina, tentando correr novamente, mas o outro pirata agarrou-a pelo braço.

—Segure bem esta menina. – ordenou Gunn, andando de seu jeito abrutalhado em direção à mulher – Esta outra me dará um pouco de diversão antes de voltarmos ao capitão.

A mulher sorriu.

—Mas é claro. – disse. Os olhos da menina viram, marejados de lágrimas, a mulher ir até Gunn dar-lhe um beijo nos lábios, e depois, sussurrar algo ao pé de seu ouvido. Foi neste momento que os membros do pirata começaram a sacudir sem controle, e diante de todos, sua pele transformou-se para um cinza sujo e ele veio ao chão, seco como um cadáver antigo.

No mísero segundo em que a menina arregalou os olhos no pirata morto, o que a segurava apontou sua espada curva para a mulher. No entanto, ela apanhou a espada de Gunn mais rápido, e lançou-a na direção do pirata que ainda vivia, penetrando seu peito com precisão, e ele também tombou morto.

—Venha! – a mulher chamou a garota, que, ainda trêmula e sem acreditar no que via, porém certa de que os piratas iriam capturá-la se continuasse ali, obedeceu.

A mulher segurou-a pela mão, pegando a espada do segundo pirata e prendendo-a em sua cintura, e então saiu pelos fundos da casa, indo até uma tora de madeira onde um cavalo negro como a noite aguardava. Ela montou-o.

—Suba, vamos. Segure-se em mim e não solte, entendeu?

Ignorando sua tremedeira, a menina obedeceu mais uma vez, e, em poucos segundos, o cavalo galopava veloz para longe dali, deixando os arredores de Amatur e as vozes dos Izenys para trás.

Agarrada à mulher com a máxima força que podia, a menina ainda sentia seu coração bater forte, e respirava rápido, com medo. Mas aquela mulher, fosse quem fosse, havia salvado sua vida. De uma forma tão estranha quanto a que ela se salvara poucos minutos antes, se é que podia chamar apenas de “estranha”. Ela não sabia nada quanto a fazer pessoas sentirem dor, mas matar um homem apenas com palavras tinha um nome em Savinya: bruxaria.

—Para onde está me levando? – a menina perguntou. A mulher se virou para ela por um momento. Seu nariz sangrava, manchando toda a parte de baixo de seu rosto.

—Para um lugar onde ninguém irá apanhá-la. – respondeu.

—Por que está sangrando?

—Feitiços de morte sempre têm um preço.

—Mas bruxaria é proibida...

—Não na Cidade dos Mortos. – disse a mulher, confirmando os pensamentos da garota. O cavalo ainda galopava, então ela não perguntou mais nada; apenas se segurou e deixou a madrugada passar. Foi já após o dia amanhecer que ela avistou, pendurados nos galhos de uma árvore, esqueletos. A anunciação da entrada da Cidade dos Mortos; o território mais estéril de Savinya, abandonado pelo reino, e ocupado pelas bruxas.

A menina estava cansada, e sentia dores em seu corpo por ter corrido tanto, mas não conseguiu nem ao menos fechar os olhos quando o chão em que o cavalo galopava começou a se tornar seco e rachado, sem mais árvores vivas ou grama, apenas vegetação retorcida e de aparência morta. Alguns quilômetros depois, algumas casas e pessoas começaram a surgir no caminho; todas com vestes escuras, porém, diferente do que a menina imaginava, não tinham as feições sombrias e tampouco maléficas que eram descritas quando se falava em bruxos.

—Estamos perto. – a mulher anunciou. Conforme o cavalo corria, mais construções improvisadas em madeira apareciam em todo lugar, e seus moradores próximos a elas, carregando algumas caças, por vezes com pequenas plantações, de poucos vegetais realmente comestíveis. Quase nada crescia na Cidade dos Mortos.

Afinal, ela não ganhara este nome à toa.

Foi após mais alguns minutos que as construções se tornaram menos espaçadas, e cada vez mais pessoas se juntavam para olhar o cavalo que passava.

—É Devehrya, ela está de volta! – algumas diziam. A menina prestou atenção no caminho, conforme ruas começavam a se formar, levando a uma grande construção, que ela inicialmente pensou ser uma casa, mas logo se deu conta de que se tratava de um templo.

Por fim, o cavalo parou, próximo às escadas da construção central. De imediato, uma mulher de cabelos loiro-escuros e vestes negras se aproximou.

—Vi você chegando, mas tudo estava obscuro... – ela começou a dizer, porém, a mulher a interrompeu, descendo do cavalo e andando em sua direção – Devehrya, quem é esta menina?

A menina assistiu à bruxa que a resgatara sussurrar algo à recém-chegada, que a fez arregalar os olhos, como se visse uma aparição divina.

—Preciso falar com a Mãe, Carmina. – disse Devehrya. A outra bruxa assentiu, olhando para a menina.

—Desça, criança. Está segura aqui. – disse ela. Devehrya ajudou a menina a descer do cavalo, e as duas atravessaram juntas a porta do templo.

Havia ruído do lado de fora, porém, ali dentro, tudo era muito silencioso. A garota estivera em um templo apenas uma vez na vida, quando implorava por comida pelas ruas de um vilarejo qualquer, e conseguira ficar no local por alguns dias antes de ser levada para a casa de desvalidos de Amatur. Se lembrava das paredes brancas, velas acesas e uma grande imagem da Progenitora, esculpida em uma pedra clara como a neve do inverno. Ali também havia velas, porém as paredes eram escuras, e a imagem no ponto mais alto do salão principal não era da Progenitora; os cabelos longos e negros escorrendo pelos ombros esguios e os olhos verdes como esmeraldas mostraram a imagem mais clara de Hanahra, a expulsa dos ceús. A deusa das trevas.

—Não se assuste, não há nada a temer aqui.

Ironicamente, a voz fez a menina dar um pulo de susto, porém Devehrya acalmou-a conforme ela prestava atenção no salão e via uma grande mesa redonda, com bancos de toras de madeira, e uma cadeira larga, onde se sentava uma idosa de pele muito escura e cabelos muito brancos. Seu corpo ocupava toda a largura da cadeira, e ela vestia uma túnica negra. Seus olhos castanhos miravam a menina, a qual ficara tão presa à imagem de Hanahra que sequer percebera o resto do salão.

—Qual é seu nome, filha? – a senhora perguntou. A menina olhou para Devehrya antes de responder, e com seu assentimento, a criança fixou seus olhos acinzentados na idosa, e, finalmente, respondeu:

—Athalia.

A senhora assentiu.

—Como Devehrya lhe encontrou, Athalia? – questionou. Athalia estremeceu.

—Izenys queriam vender a mim e outras órfãs para casas da noite do além-mar. Ela me salvou.

Mais uma vez, só o que a senhora fez foi assentir.

—Isso foi tudo? – perguntou ela. Os olhos de Athalia não a deixaram, porém, a menina não conseguiu falar – Carmina, nossa maior vidente, não pôde ver-lhe junto a uma das nossas, mas há algum tempo ela profetiza uma mudança na vida de todos na Cidade dos Mortos. Acha que tem algo a ver com isso?

—Por que eu teria?... – Athalia perguntou, em resposta. A senhora levou alguns segundos para voltar a falar:

—Você já fez algo especial? Algo que outras crianças não fazem?

Mais um calafrio se espalhou pela espinha de Athalia, no que ela se lembrou do que fizera ao capitão dos Izenys e seus companheiros.

—Eu... Fiz pessoas sentirem dor...

Athalia abaixou os olhos por alguns momentos, sem saber se teria mais medo da reação daquela senhora, ou da pergunta que pairava em sua cabeça ainda infantil no momento.

—Isso significa que sou uma bruxa? – ela, por fim, questionou. A senhora balançou a cabeça em negativa.

—Não nascemos bruxas; nos tornamos. Você só será uma bruxa se assim desejar. – disse. Athalia olhou para Devehrya, ainda parada a seu lado.

—O que você fez significa algo muito mais importante que isso, Athalia. – disse ela. Athalia mirou a idosa sentada à mesa novamente.

—De fato, significa. – ela confirmou – Tão logo Carmina me contou que via Devehrya retornando, eu pude sentir que a profecia estava próxima de se realizar.

—Profecia? – perguntou Athalia.

—Conhece a Profecia da Salvação, certo? – foi Devehrya a questioná-la. Athalia se sentiu confusa.

—Conheço, mas... Por que eu seria a Profecia da Salvação? Por que eu seria capaz de conjurar a Energia?...

Naquele momento, a senhora se levantou de sua cadeira, e andou, com certa dificuldade, até Athalia.

—A Energia está presente em tudo e todos neste mundo. – murmurou – Da energia, Savinya nasceu, e a Energia permeia desde as plantas que nascem, os mares e rios que molham a terra, até o limite dos seres-humanos. Diga-me, Athalia: qual o limite de um homem?

A pergunta podia ser estranha, mas Athalia sabia a resposta. Melhor: havia visto a resposta com seus próprios olhos, algumas horas atrás.

—O máximo de dor que ele pode aguentar.

—Exatamente. – confirmou a idosa – Você não pode conjurar a Energia. Não ainda. É necessário um ritual sagrado para isso. Mas, antes de tudo, é preciso escolher um lado: a luz, ou as trevas.

Os olhos de Athalia foram para baixo novamente. Ela, uma órfã qualquer, que nunca havia conhecido seus pais ou algum parente, não tinha sangue nobre, tampouco dinheiro, seria a salvação de Savinya? Por que ela iria querer salvar Savinya, em primeiro lugar? O que aquele mundo algum dia lhe dera?

Um pensamento cortou as indagações de Athalia; o mundo podia não ter lhe dado nada até então, mas, na noite anterior, lhe dera uma alma que se arriscara para salvá-la, que lhe trouxera para um lugar onde poderia ficar. Sim, bruxas e bruxos eram caçados e queimados nos quatro cantos de Svinya. Mas onde estavam os homens do rei para proteger um vilarejo das Terras do Reino de um ataque Izeny? Quem a teria salvado, senão a bruxa Devehrya?

Talvez houvesse um lugar para Athalia. Talvez a salvação para o reino hipócrita estivesse onde ele menos esperaria – em meio aos renegados. Aos pés da própria deusa expulsa dos céus.

Foi olhando para a imagem de Hanahra que Athalia disse:

—Eu escolho as trevas.


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Notas finais do capítulo

E aí, gente, gostaram do prólogo? O que acham que vai acontecer na história dessas duas?

Se quiserem acompanhar o processo de escrita, curiosidades e novidades sobre Rainha Das Trevas, acessem o blog da história! Eu posto sempre lá pra vocês poderem ficar pertinho desse mundo de fantasia!

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Um beijo e até o próximo capítlo!



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